Material para evangelização e catequese
Atividades práticas - Passo a passo
Abordagem segmentada por faixa etária e/ou temas prioritários
Links para áudios, vídeos, podcasts, entre outros.
Materiais autorais ou não, com links quando aplicável.
Obs.: O Blogger tem alterado as formatações dos textos. Logo, não estranhe as diferenças nos tamanhos e algumas cores de fontes. Cansei de tentar resolver isto...
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[Nota do Blog: Eis um trecho bom para uma catequese que aborde os serviços ecossistêmicos e como estes são importantes na manutenção da casa comum e as possíveis analogias com a construção de uma alma sadia - Tópicos a explorar: cadeias tróficas, relações ecológicas, espécies exóticas, populações, etc.]
Trecho do discurso de Dom Giuseppe Petrocchi em 19.08 no evento
"De Celestino a Francisco: uma Igreja de misericórdia e esperança”,
por Tiziana Campisi (Vatican News)
“É precisamente o perdão que preserva a ecologia da alma, como a boa gestão da própria interioridade e das suas ideias e emoções. A rivalidade, o estilo da vingança, o ressentimento e a agressão representam uma patologia da alma: são as bactérias que infectam e condicionam o modo de pensar, sentir e agir. Onde estes módulos cognitivos e afetivos predominam o pensamento perde a sua capacidade de ser objetivo, em relação a si mesmo e aos outros. Além disso, o coração também deixa de pulsar por amor, porque não o recebe e, por conseguinte, não pode transmiti-lo. Se no coração não houver amor, dá-se uma espécie de asfixia da alma, porque o amor é o oxigênio da alma”.
(22.08.2022)
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[Nota do Blog: Lendo sobre justiça ambiental e como as mulheres são as mais afetadas, por muitas vezes serem o arrimo de família e viverem em condições de extrema vulnerabilidade econômica, onde isto as leva a impactar o meio ambiente, como forma de garantir a sobrevivência própria e a das suas famílias, humilhando-se de formas inimagináveis.
Ao também ler este artigo da Arquidiocese do Rio de Janeiro, logo lembrei destas e como, pelas ruas, muitas vezes passamos sem enxergá-las ou nos fazendo de surdos ao que clamam, seja por medo, indiferença ou mesmo pré-julgamentos diversos. Elas pedem nossas migalhas de atenção, mas se puder, dê inteiro o pão do auxílio tão caro à DSI e presentes em tantos documentos da Igreja.
Este pequeno texto pode ser utilizado como base formadora de um diálogo sobre a justiça socioambiental, numa catequese que abranja o papel e a dignidade da mulher, suas lutas, sua importância na transformação de nossa casa comum tanto para o bem quanto para o mal, propostas de atividades em comunidades locais ATHIS, reciclagem solidária, hortas familiares, fornos solares, acesso à saneamento e abrigo, CAR, acesso à defensoria pública, etc.]
A Mulher dos Cachorrinhos,
por Vanice Fonte (ArqRio)
O quanto de desespero e dor é capaz de existir no grito de uma mulher? O quanto de muito mais é capaz de existir no seu silêncio? Eu não sei a resposta e acho que você também não sabe…
No entanto, duas coisas é preciso ter em mente: fique atento ao grito de uma mulher e desconfie sempre do seu silêncio. Nos dois casos, há algo de muito errado. Mas hoje eu não quero falar sobre o silêncio.
Quero falar sobre a coragem do grito. De gritar as dores, as necessidades mais profundas, de perturbar a ordem vigente, reivindicar direitos em uma sociedade que desde que o mundo é mundo teima em silenciar as mulheres e seus direitos mais básicos.
Longe de mim querer levantar bandeiras aqui. Assim como a mulher que fala no poema “Com licença poética”, de Adélia Prado, eu também acredito que “carregar bandeira é fardo muito pesado para mulher, esta espécie ainda envergonhada”.
E gritar, eu digo, não para qualquer pessoa. O que quero tratar brevemente aqui, mais do que sobre nós, mulheres, é sobre a pessoa de Jesus que não só não nos silencia, como nos dá voz, nos escuta, através de tantas viúvas, amigas, idosas, mães, filhas, nos Evangelhos, como o de Mateus 15, 21-28.
Não há uma leitura que eu faça desse texto que eu não me emocione. Eu até o apelidei afetuosamente de “A mulher dos cachorrinhos”, para ficar mais fácil de eu não esquecer. Penso que foi através dele que eu entendi quem era Jesus para mim, quando O senti se “comunicando” comigo, com meus gritos, internos e externos, e meus destemperos às vezes. Foi quando me vi sendo amada por Deus do jeito que eu sou.
O episódio se passa na região de Tiro e Sidônia. Certamente a mulher cananeia que conta a história, estrangeira, ficou sabendo do desembarque de Jesus por aquelas terras, depois de sair de Genesaré, lugar onde, para variar, o Senhor havia se estressado com alguns fariseus e doutores da Lei de Jerusalém, acusando-os de hipócritas, guias de cego, etc. (Mateus 15, 1-20).
Imaginem, cansado da viagem, mal havia desembarcado, e uma mulher aparece aos gritos dizendo: “Senhor, Filho de Davi, tem piedade de mim”. A Sagrada Escritura não diz, mas gosto de acreditar que os gritos iam aumentando, à medida que ela ia atrás de Jesus e contando a sua história. “Minha filha está sendo cruelmente atormentada por um demônio”.
Demônio que passou, simbolicamente, a ser dela também, tamanho o sofrimento de sua filha e de sua família. Só uma mulher muito sofrida e de muita coragem é capaz de enfrentar o demônio para salvar quem ama, não sozinha, mas ao lado daqu’Ele que tudo pode contra ele, Jesus Cristo!
Nosso Senhor não lhe dá resposta. Talvez pelo cansaço da viagem, talvez por estar cercado pelos discípulos e por muitas outras pessoas, mas, principalmente, porque quem naquela época daria ouvidos a uma mulher e ainda estrangeira?! Tanto que os discípulos incomodados pedem para que Jesus mande a mulher ir embora, “porque ela vem gritando atrás de nós” (grifo nosso).
Jesus dá uma resposta assertiva. Não acolhendo o pedido dos discípulos, claro, mas como que falando consigo mesmo: “Eu fui mandado somente para as ovelhas perdidas do povo de Israel”. A mulher era pagã, mas tinha um diferencial para além de sua origem; a coragem não apenas de ser forte na luta contra o mal, mas de naquele contexto reconhecer Jesus não só como uma personalidade moral e religiosa, mas alguém que realiza um projeto concreto: restaurar os homens na vida total.
Penso que de algum modo ela sabia que Jesus, mesmo sem compreender ao certo quem era Ele, exerce sua missão em benefício de todos, sem distinção, e não de acordo com os critérios e interesses de privilegiados, por isso ajoelha-se diante d’Ele e começa com o próprio Deus um pequeno grande diálogo.
– “Senhor, ajuda-me”.
– “Não é certo tirar o pão dos filhos e jogá-los aos cachorrinhos”.
– “Sim, Senhor, é verdade; mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos”.
– “Mulher é grande a sua fé! Seja feito como você quer”.
A Palavra diz que a mulher “começa a implorar”. Perceba que situação indigna para uma mulher; primeiro gritando para ser ouvida e, depois, ajoelhada no meio da rua para um homem na frente de tantos outros.
No entanto, ela não estava na frente de qualquer homem, mas do Filho do Homem, corajosamente argumentando com o próprio Deus, sendo ouvida por Ele, o único para quem devemos implorar e nos humilhar.
Jesus, na sua condição humana, sabe do poder da escuta e da presença, mais do que isso, sabe exatamente quem é aquela mulher, sua sinceridade, sua determinação, o amor por sua filha, conhece o seu coração muito mais do que ela.
Gosto de pensar que ao proferir em voz alta, ainda que para si mesmo: “Eu fui mandado somente para as ovelhas…” Jesus já estava operando a cura na filha da mulher cananeia. E que a frase “Não é certo tirar o pão dos filhos e jogá-los aos cachorrinhos” é apenas uma provocação para que ela manifeste diante d’Ele, e de si mesma, toda a sua capacidade, dignidade, a sua inteligência, força e coragem, a fim de valorizá-la.
Com efeito, seriam no mínimo estranhas falas preconceituosas e excludentes de alguém que anteriormente havia dito “as coisas que saem da boca e vêm do coração, e essas é que tornam o homem impuro” (Mateus 15, 18). A pessoa humana no projeto de Jesus está acima de qualquer lei, qualquer preconceito. Deus deseja igualdade, fraternidade e não humilhação, divisão.
Neste sentido, a fé da mulher reconhece em Jesus o Senhor e Jesus reconhece nela um ser humano digno, capaz de ser amada e livre como qualquer outro, e não viver escravizada, mendigando atenção, buscando afeto de outros que não seja Ele.
O Senhor poderia, na sua humanidade, agir como um homem qualquer do seu tempo, silenciando a mulher, impedindo que ela se aproximasse e contasse a sua dor, mas ele rompe com os padrões da época, porque quer que as pessoas tenham vida e não morte, não os quer escravizados e alienados.
Ao implorar a Deus o seu milagre, em tom profético e de denúncia também, a mulher é atendida por Deus. Não foi fácil chegar até Jesus, não foi fácil buscar a sua dignidade e, consequentemente, da filha, mas a mulher não desistiu. Sua decisão corajosa mudou o rumo da sua vida e de sua família, mudou a história.
Todos aqueles que levaram Jesus a sério, santos ou não, não O vendo apenas como um profeta ou um curandeiro, mas como O próprio Deus, todos os que afastaram de si a ideia de uma relação bancária com o Senhor, de toma lá dá, foram capazes de mudar não o mundo inteiro, mas o seu próprio mundo, a sua história. O Senhor ama gratuitamente e é assim que Ele espera que nós saibamos amar.
Se nós quisermos transformar a nossa vida e passar a tomar decisões moldadas por Jesus, que honrem a Deus e influenciem positivamente de alguma forma a nossa realidade, também precisamos ter coragem.
Para obedecer às Escrituras, ouvir a voz do Senhor, seguir as dicas do Espírito Santo e escolher o caminho estreito, gritando ou silenciando quando preciso, é necessária muita coragem. Como disse o Papa Francisco, “a coragem é um dom do Espírito Santo” e nós a temos dentro de nós, basta acessar, como a mulher dos cachorrinhos.
Paz e bem!
(17.08.2022)
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Questão de ADN
por Papa Francisco
Retorno às origens para compreender quem é o homem e, sobretudo, aos olhos de Deus (...) refletindo sobre a criação e acerca do grande amor que o Senhor nutre pelo homem, repito um dos versículos do salmo responsorial: «Ó Senhor, nosso Deus, como é glorioso o teu nome em toda a terra!» para recordar que nestes dias a Igreja «nos incentiva a louvar muito o Senhor». Prosseguindo na leitura do Salmo 8 — «Que é o homem, digo-me então, para pensares nele? Que são os filhos de Adão, para que te ocupes deles?» — evidencio que isto exprime «a admiração face à ternura, ao amor de Deus, porque te comportas assim conosco? Nada somos, e tu és grande...».
A resposta a esta pergunta está na primeira leitura, na narração da criação tirada do Gênesis (1, 20 – 2, 4). De fato, lê-se no final do sexto dia: «Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus...”. E Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. Deus os abençoou: “Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar...”». Isto é, «Deus concede tudo ao homem. E a criação do homem e da mulher é a coroação de toda a criação do mundo, é o final». Mas, «o que nos concede Deus» a ponto de nos fazer dizer no salmo: «Que é o homem, digo-me então, para pensares nele? Que são os filhos de Adão, para que te ocupes deles?».
Antes de tudo deu-nos o ADN, isto é, fez-nos filhos, criou-nos à sua imagem, à sua imagem e semelhança, como ele. Que lhe assemelhe muito ou pouco, é filho: recebeu a identidade. Trata-se de um vínculo que permanece. E «se o filho se torna bom, o pai orgulha-se daquele filho» e diz «como é bom!». Da mesma forma, se o filho «é um pouco feio», contudo o pai dirá: «é bonito!», porque «o pai é assim, sempre». E «se é malvado, o pai justifica-o, espera-o...». De resto, o próprio Jesus «ensinou-nos que o pai sabe esperar os filhos». Enfim, Deus «deu-nos esta identidade de filhos». Até podemos dizer: «Somos “como deuses”, porque somos filhos de Deus». E Deus «está contente, porque tem um filho na terra, assim como outro no céu. O Senhor sente-se feliz: “Isto é bom”, diz a si mesmo». Portanto, a identidade foi a primeira coisa que Deus concedeu ao homem na criação.
A segunda é um «dom» e ao mesmo tempo uma «tarefa». Ou seja, «deu-nos a terra inteira». De fato, na Escritura lê-se: «Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra». E Deus disse aos homens: «Enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar e sobre todos os animais». Isto é, Deus deu a realeza: o homem é um rei. É quem domina. Assim deseja o Senhor: não o quer escravo mas senhor. O que significa este senhorio? «A tarefa de levar em frente a Criação», isto é «uma obra».
Assim como ele trabalhou na criação, deu-nos o trabalho, a obra de levar em frente a criação. Não de a destruir, mas de a fazer crescer, cuidando-a, preservando-a e levando-a em frente. Há um fato curioso: Deus «deu tudo», mas «não nos deu dinheiro». Não é por acaso que as «avós dizem que o diabo entra pelos bolsos...».
O último dom pode ser encontrado prosseguindo a leitura do Gênesis: «Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher». Isto é: «a terceira coisa que nos concedeu foi o amor». Deus disse: «Não é bom que o homem esteja só. E deu-lhe a companheira». Às vezes, quando ouço alguma música que tenta dizer isto, gosto de pensar que poderia ter sido «aquele primeiro diálogo, quando os dois se olhavam; o diálogo entre o homem e a mulher, o diálogo do amor».
Resumindo, Deus disse ao homem: «Tu és o filho, deves fazer assim: cuidar da criação, trabalhar, ir em frente. E amar. Porque eu sou amor e concedo-te isto». Então vem a vontade de exclamar com a Escritura: «És grande, Senhor, és grande! Que é o homem para pensares nele? Que são os filhos de Adão, para que te ocupes deles? Entretanto, tu o fizeste pouco inferior a Deus, de glória e honra o coroaste. Deste-lhe poder sobre as obras das tuas mãos, submetendo-lhe todo o universo. Ó Senhor, nosso Deus, como é glorioso o teu nome em toda a terra!».
Deus concedeu-nos a identidade: temos a mesma identidade de Deus, somos filhos de Deus. Fomos criados à sua imagem e semelhança. Deu-nos o dom da terra, da criação: “Tudo é teu, mas para a levar em frente, para a cuidar, não para a destruir!”». E isto faz-se com o trabalho que é um dom de Deus; e quando alguém não tem trabalho, sente-se sem dignidade, falta-lhe algo que vem de Deus. Por fim, Deus deu-nos o amor: que começa aqui, no homem e na mulher.
Portanto, demos graças ao Senhor por estes três dons que nos concedeu: a identidade, o dom-tarefa e o amor. E peçamos a graça de preservar esta identidade de filhos, de aperfeiçoar o dom que nos concedeu e de levar em frente este dom com o nosso trabalho, e a graça de aprender todos os dias a amar mais.
Poema: Espírito Santo
por Frei Kater Vinícius dos Santos, OFMCap
Vinde Espírito Santo
Descei dos céus com tua luz
Renovai todas as coisas
E ao bem nos conduz
Com tua companhia
Se dobrará tudo que é duro
Sei que contigo
Sempre estarei mais seguro
Libertai pois os corações
Dos que padecem no mal e na solidão
Consolai a todos
Com seus dons e proteção
Santo Espírito
Vinde fortalecer meus desejos
Sussurra no meu coração as alegrias
Que do céu tu trazes em seus lampejos
Conduza-me a santidade
Incendeia a minha alma com tua graça
Para que mesmo no escuro
Não caia na desgraça
Aquece no meu coração
Cada traço de Deus que o mundo apagou
Para que eu tenha felicidade
Aquela que o mundo desprezou
E quando tudo parecer perdido
Seja tu meu doce alivio
Não seja só hospede, mas morador perene
Atendei de minha alma esse pedido de convívio
Tu podes renovar o mundo
Renovai a mim por inteiro
Fé, esperança e amor
E tudo o que falte pelo meio
Fonte: Adaptado de Vatican News (2017) https://www.vatican.va/content/francesco/pt/cotidie/2017/documents/papa-francesco-cotidie_20170207_questao-de-dna.html & https://www.capuchinhos.org.br/blog/poema-espirito-santo
(14.07.2022)
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As épocas do coração a dinâmica espiritual da vida carmelitana
por John Welch, O. Carm.
(Tradução por Ir. Davi Rufino, OTCarmo)
[Nota da autora: Aproveitando que estamos na novena preparatória para a festa de Nossa Senhora do Carmo, trago este belo texto sobre a espiritualidade carmelitana que é aplicável também a nós, leigos e leigas, em nossa jornada na Criação]
A tradição carmelitana pode ser entendida como um comentário de oitocentos anos ao Cântico dos Cânticos. Esta antiga história de amor da escritura hebreia é a narração básica que capta a experiência de muitos carmelitas. “A voz de meu amado! Vejam-no aqui chegar, saltando pelos montes, brincando pelas colinas". Pensavam que buscavam um Deus difícil de encontrar, e voltavam de sua procura com a convicção de que Ele os estava acompanhando com seu amor ao longo de todo o caminho. O desejo profundo do coração do carmelita tem se revelado como um convite: “Levanta, amada minha, formosa minha, e vem” (Cant 2,10).
Os escritores carmelitas se detiveram com frequência na história de amor do Cântico dos Cânticos para encontrar palavras que possam expressar sua experiência. São João da Cruz tomou da história e das imagens dos Cânticos para compor seu poema de amor Cântico Espiritual. Teresa de Ávila escreveu um comentário ao Cânticos. E Teresa de Lisieux se identificou com esta história, porém diferente do amante dos Cânticos, que espera o amado, ela o encontrava sempre em sua cama.
As palavras dos Cânticos aparecem consciente ou inconscientemente nas histórias carmelitas. Os carmelitas contam muitas histórias, porém a história do amante inquieto que espera o Amado aparece como tema comum. A união amorosa e a retirada para a solidão encontram expressões equivalentes na história dos carmelitas. João da Cruz encontrou nas palavras de Oséias uma expressão de sua experiência: “Por isso eu vou seduzi-la, levá-la ao deserto e falar-lhe ao coração’’ (2,16). Respondendo ao convite de uma presença misteriosa presente na vida daqueles que estão à procura, os carmelitas têm sido arrastados até uma relação que os transforma para sempre: “… o inverno já passou, as chuvas cessaram. A terra se cobre de flores, chega a estação da canções …”(Cânt 2,11-12).
Os temas fundamentais da espiritualidade carmelitana aparecem nesta história do coração humano. Estes temas revelam um dinamismo espiritual no núcleo da vida carmelitana que podem ser descritos como “Épocas do coração”. A intenção deste tema é repassar estas “épocas do coração” numa tentativa de identificar a dinâmica espiritual da vida carmelitana.
Há cinco “épocas” descritas neste tema:
1. Um coração desejoso (nosso desejo de Deus);
2. Um coração escravizado (culto ao falso Deus);
3. Um coração que escuta (a vida contemplativa);
4. Um coração preocupado (o trágico da vida);
5. Um coração puro (a transformação do desejo).
Estas “épocas do coração” e a resposta que lhes dá o Carmelo, estão entre as realidades que dão origem à tradição carmelitana, estabelecendo-as como um dos maiores caminhos para os cristãos.
I – UM CORAÇÃO DESEJOSO: NOSSO DESEJO DE DEUS
Queremos tudo
“Nossos corações estão inquietos”, escreveu Santo Agostinho, e esta verdade permanece como algo fundamental à condição humana. A inquietude, o desejo humano parece que nunca serão completamente satisfeitos. Podemos ver a inquietude humana expressa na imagem de um bebê que começa a engatinhar e a explorar seu ambiente. A viagem dos primeiros carmelitas que deixaram suas casas para congregar-se num Vale do Monte Carmelo foi movida por este mesmo desejo. Somos verdadeiramente peregrinos.
Nós, os humanos, nunca estamos satisfeitos com o que temos pois, como diz Santa Tereza de Lisieux, queremos tudo. E não descansaremos até consegui-lo. A tradição carmelitana reconhece esta fome do coração humano e diz que fomos feitos desta maneira. Fomos feitos para procurar e explorar, desejar e sofrer até que o coração finalmente encontre algo ou alguém que possa harmonizar ou estar em consonância com a profundidade do seu desejo, até que o coração possa encontrar alimento suficiente para satisfazer sua fome. Chamamos a este alimento, a esta realização, a esta meta do desejo humano, Deus. Durante oitocentos anos os carmelitas têm intencionalmente perseguindo esta realização misteriosa e difícil de encontrar. “desejava viver” escreveu Santa Teresa de Ávila, “e não tinha quem me desse vida…”
Acreditamos, ainda que não o digamos, que todo ser humano está nesta procura. Podemos afirmar isto: cada estudante de nosso colégio, cada membro de nossa paróquia, cada peregrino a nosso santuário, cada candidato em nosso instituto está aberto ao mistério transcendente a que chamamos Deus. Por algum tempo o desejo pode ser negado, a fome temporariamente satisfeita, o desejo afogado, atordoado, debilitado. Mas sabemos que está aí e que de um momento a outro aparecerá. Nossa tradição tem a força, a linguagem, as imagens que nos ajudam a iluminar o que as pessoas estão experimentando no profundo do seu ser.
A tradição carmelitana tenta dar nome a esta fome, dar palavras ao desejo e expressar que o final da viagem está em Deus. O coração humano precisa ter clareza sobre estes seus desejos. O Carmelo sempre tem desejado o mesmo e está disposto a caminhar e acompanhar aqueles com os quais se encontrar neste caminho. Não podemos satisfazer sua fome, mas podemos ajudá-los a encontrar palavras para ela e saber para onde aponta. Temos feito isso na arte, na poesia e na canção, no aconselhamento e no ensinamento, na simples escuta e compreensão. E podemos advertir as pessoas que, no final, as palavras falham e somente fica o desejo em si mesmo.
Um autor contemporâneo diz que o problema sério da espiritualidade hoje em dia é a ingenuidade a respeito do desejo ou da energia que nos move. Nosso desejo espiritual dado por Deus, que pode expressar-se de diversas maneiras, incluindo a energia criadora e erótica, pode ser perigoso para nós se não o soubermos conduzir com cuidado. Somos muito engenhosos a respeito deste nosso profundo desejo e não estamos muito atentos ao perigo. Sem uma atitude de respeito para com esta energia, buscando o modo adequado de assumi-la e administrá-la, muitos adultos se movem entre a alienação deste fogo, isto é, ignoram a existência do desejo e vivem em depressão, ou se deixam ser consumidos por ele e vivem num estado de inflação.
Depressão, neste sentido, significa a incapacidade de desfrutar da vida como um menino, de sentir o verdadeiro prazer. A inflação se refere a nossa tendência de, por momentos, nos identificar-nos com este fogo, com este poder dos deuses; “…estamos tão cheios de nós mesmos que somos uma ameaça para nossas famílias, amigos, comunidades e para nós mesmos”. Incapazes de conduzir esta energia, ou nos sentimos mortos interiormente ou, pelo contrário, somos hiperativos e inquietos. “A espiritualidade trata sobre as maneiras como podemos ter acesso a essa energia e como podemos contê-la”.
Desejos dos Carmelitas
Este dilema encontrará sua compreensão nos santos do Carmelo. No encontro com esta chama profunda os santos se deixaram queimar e purificar por ela. Teresa de Ávila a entende como a água que Jesus ofereceu à samaritana. Mais fogo que água, esta chama inflama o desejo. “Mas com que sede se deseja ter esta sede!” João da Cruz começa seu poema do Cântico Espiritual com uma queixa: “Onde é que te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido? Como o cervo fugistes, havendo-me ferido; saí, por ti clamando, e eras já ido". João da Cruz compreende nossa humanidade como o despertar no meio de uma história de amor. Alguém tocou nossos corações ferindo-os e fazendo-os penar por causa disto. Quem tem nos fez tal coisa e para onde foi? Estas perguntas perseguem a cada ser humano ao longo de sua viagem e o impulsionam a cada passo, desde o engatinhar do bebê à peregrinação do papa à Terra Santa, incluindo todo o esforço humano que é feito nesta busca.
João da Cruz diz que nossos desejos são como meninos. Se lhes damos atenção, acalmam-se por algum tempo. Mas logo despertam e rompem com seu barulho a paz do lar. Nossos desejos são também como um dia longamente desejado de estar com o amado; mas esse dia termina numa grande desilusão. Nossa humanidade tem uma fome que somente Deus pode satisfazer.
Teresa de Lisieux procurou explicar seus profundos desejos com a imagem do céu: o céu como o Domingo sem fim, o retiro eterno, a fonte eterna. A ribeira eterna é uma expressão particularmente evocadora do desejo do seu coração. ela queria tudo na sua vida, e esta imagem é expressão de todos os seus desejos. Mas não há imagem ou conceito que possa expressar seus desejos:
"Sinto o quanto sou impotente para expressar em linguagem humana os segredos do céu, e depois de escrever página após página vejo que ainda não comecei. Há tantos horizontes diferentes, tantos nuances de infinita variedade…" (SS. 189).
Saímos ao encontro disto ou daquilo seduzidos por uma promessa de realização, mas terminamos por ser decepcionados mais uma vez. Usando a imagem de Terezinha chegamos a muitas fontes, mas não percebemos que não é a fonte eterna.
O espírito e a psique habitam a mesma região da mente. O espírito é esse dinamismo que há em nós, que nos impulsiona à plenitude do ser, ao conhecer tudo, ao amar tudo, a ser um com todos. A psique expressa estes desejos com imagens primordiais tiradas do corpo e do mundo. A psique conecta os órgãos do corpo com seu enraizamento no cosmos, com a transcendência do espírito e seu desejo de plenitude. Nossas imagens esperançosas, tais como “a ribeira eterna”, são expressão tanto da psique como do espírito.
As imagens da psique são movidas pelos desejos do espírito. Elas podem mover e expressar nossas ânsias de paz e de justiça, podem nos abrir a um profundo arrependimento, podem lançar luz sobre nossa existência e iluminar o nosso caminho, podem criar cenários de esperança sobre nosso futuro depois desta vida, como fez Teresa de Lisieux. Mas nenhuma delas é suficiente para expressar completamente nossos desejos mais profundos, sobretudo o desejo que somos. Nosso desejo profundo de conhecer e amar, de ser unificado com tudo o que se é, nunca será realizado. Nossa fome profunda nunca encontra suficiente alimento nesta vida. Expressamos nossas necessidades, mas, o que queremos na realidade?
O teólogo Bernard Lonergan acreditava que se nós seguirmos o caminho de nossos desejos profundos, expressando-os na verdade, confrontando-nos com eles e respondendo ao seu apelo em nossas vidas, dessa forma poderíamos experimentar conversões. Nossas necessidades e nossos desejos se purificarão na medida em que desejemos o que Deus deseja até que nosso desejo seja harmonizado com o de Deus.
Que desejam os homens e mulheres de nossas paróquias, de nossas casas de retiro, que buscam nossos conselhos e orientação? Tudo! Contem com isto e isto lhes dêem. Nós dizemos a nós mesmos e dizemos a eles que a fome dentro de nós é tão profunda e poderosa que, reconhecida ou não, só Deus é o alimento que a pode saciar. Quando Jesus pregou sobre o Reino de Deus presente e vindouro, se referia precisamente aos desejos profundos, ao santo desejo que aninhava o coração de seus ouvintes.
Em 24 de março de 2000, foi celebrado o vigésimo aniversário do assassinato do Arcebispo Oscar Romero em El Salvado. Foi assassinado durante a celebração da Eucaristia em uma capela carmelita. Enquanto celebrava os funerais daqueles que tinham sido assassinados pelos poderosos e lia os nomes dos desaparecidos, percebeu que era seu dever emprestar sua voz aos sem voz. E assim se produziu sua conversação de um padre tradicional, profissional e piedoso se converte num pastor valente e defensor de seu povo. Entregou-se à tarefa de denunciar os desejos oprimidos do povo e assim com sua presença valiosa dar vida ao desejo santo que viu refletido nos rostos das pessoas do povo salvadorenho.
Escutar as pessoas, expressar seu desejo profundo e ajudá-las a dar nome ao seu desejo, é parte do ministério carmelita. Os primeiros carmelitas estabeleceram em seu pequeno vale as condições que colocariam ordem em seus múltiplos desejos. Cada um habitava em uma cela e estas rodeavam a capela na qual recordavam diariamente o desejo de Deus para eles. Teresa de Ávila fundou comunidades de clausura nas quais as freiras puderam abrir-se completamente à força de seus desejos numa amizade afetuosa com o Senhor e entre elas. Ela as animou a que se deixassem seduzir pela atração de suas profundidades enquanto seus desejos fragmentados iam encontrando sanção e reorientação. Tanto ela como Teresa de Lisieux acreditavam firmemente que se Deus nos havia dado esses desejos, Ele mesmo os levaria à sua plenitude.
Resumo
A tradição carmelitana reconhece que há uma fome de Deus muito profunda no coração do homem. Este desejo e esta ânsia nos impulsiona ao longo de toda nossa vida enquanto buscamos a realização do desejo de nosso coração. Este desejo profundo de Deus em nossas vidas é o fruto do seu amor primeiro, do seu desejo anterior por nós. Deus, o primeiro contemplativo, nos olhou e nos fez encantadores e atraentes para Ele. A tradição carmelitana não fala do aniquilamento do desejo, mas sim da transformação dos desejos para que mais e mais desejemos o que Deus deseja, numa consonância de desejo. Como Teresa de Ávila disse simplesmente, eu quero o que Você quer.
Perguntas para reflexão
Como experimento esse desejo, esta ânsia, esta fome que no fundo é de Deus?
Estou consciente dessa inquietude fundamental?
Encontro um lugar na minha vida em que este desejo esteja se expressando?
O que produz em mim gozo e prazer profundo?
Em que momento me sinto mais criativo(a) e mais vivo(a)?
Tento rejeitar, ignorar, suprimir o fogo dentro de mim ou procuro formas de valorizá-lo?
Como expresso os meus desejos mais profundos?
Que atividades os incluem e me deixam desejando sua realização profunda?
Como as pessoas com as quais trabalho expressam os desejos profundos do seu coração?
Como eu, junto com elas, encontro a linguagem para este desejo e o celebro como um dom que eleva até Deus?
II – UM CORAÇÃO ESCRAVIZADO: O CULTO AO FALSO DEUS
Convivendo com os ídolos
Um segundo tema constante na espiritualidade do Carmelo é a necessidade de decidir a que Deus seguir. Nossa tradição nasce no Monte Carmelo, o lugar da luta entre os seguidores Yahvew e os seguidores de Baal. Elias exortou o povo a fazer com segurança sua escolha do verdadeiro Deus. Os carmelitas, tanto em comunidade como individualmente, têm que lutar sempre contra as forças da desintegração e da fragmentação que trazem os interesses pelos ídolos.
Nicolas Gálico em sua obra intitulada Ignea Saggita, acusou os membros da Ordem de perder o caminho enquanto iam migrando do deserto à cidade e iam se acostumando a seus atrativos. Acusou-os de seguir seus próprios desejos desordenados, com a desculpa de um ministério necessário. As reformas de Albi, Mantua, Juan Soret, Teresa de Ávila e Tureme continuamente recordavam aos carmelitas que deviam ter um só Deus, e servir a esse Deus com todo o coração.
Os santos de nossa tradição sabiam o quanto é difícil encontrar e seguir a esse Deus verdadeiro e distingui-lo entre os falsos deuses que nos são oferecidos. Esta presença no profundo de nossas vidas, nós a encontramos no mundo ao nosso redor. No Cântico Espiritual, João da Cruz diz: “E todos quantos vagam, de ti me vão mil graças relatando…” Teresa de Ávila aconselhou: "Deixem que as criaturas lhes falem de seu criador”
Em nossa exuberância pedimos à criação de Deus que seja mais do que é. Com regularidade colocamos os desejos de nossos corações em alguma parte da criação de Deus e pedimos que seja a realização daquilo que procuramos. Pedimos a alguma parte da criação que não seja criada. Tomamos um bem e pedimos que se converta em um deus.
O coração, cansado de sua contínua peregrinação, procura assentar-se e construir para si uma casa, negando-se a seguir adiante. Convive com os deuses menores, encontrando gozo, paz, identidade, segurança e outros alívios para seus desejos. Este consolo temporal mascara um problema espiritual e também um problema de desenvolvimento humano. João da Cruz estava convencido que quando a pessoa se centraliza em algo ou alguém que não é Deus, a personalidade se desequilibra.
Estas “prisões” criam uma situação de morte. Nenhuma coisa ou pessoa a quem eu peça que seja meu deus, e que realize meus desejos mais profundos, pode corresponder a esta expectativa. O ídolo ao qual eu peço que seja meu “tudo”, começará a derrubar-se sob essa pressão. E porque não podemos crescer mais do que nossos deuses, um deus menor significa um ser humano menor. Em consequência, aquilo a que estou “atado” morre ante minha necessidade, e eu morro junto com ele, porque meus desejos mais profundos não podem encontrar nada nem ninguém que possa estar no seu grau de elevação e intensidade.
O dinamismo auto transcendente de nossa humanidade nos impede concluir que já chegamos ao final da viagem. Afirmar prematuramente a vitória, enquanto estamos apegados aos ídolos, nos levaria a deixar de exercitar-nos numa autêntica autotranscedência. Em outras palavras, o coração já não é livre para escutar e seguir o convite do amado. Esta escravidão do coração é o resultado do desejo desordenado. A solução está na libertação do coração que não consegue aniquilar o desejo senão reorientando-o.
Relação desordenada
Quando nossa tradição fala sobre “prisões”, ou apegos desordenados, isto não significa que a relação com o mundo seja um problema. Certamente, algumas vezes o mundo é um problema. Mas temos que nos relacionar com o único mundo que temos. A relação com o mundo não é o problema fundamental desses apegos, mas sim o modo como nós nos relacionamos com ele é que se converte em problema. Nossos santos falam a pessoas adultas cujos corações foram escravizados por alguém ou por alguma coisa que ocupou o lugar de Deus. Não é necessariamente a pessoa ou a coisa o problema, mas sim a maneira como nos relacionamos com elas, o modo desordenado com que expressamos nossos desejos.
É irrelevante se o ídolo é valioso ou não. A relação é o fator crítico. Um incidente na vida de João da Cruz pode ser ilustrativo. Um dos frades de João tinha uma simples cruz feita de palma. João a tomou. O frei tinha pouco mais, e a cruz certamente não era valiosa, mas João percebeu que ele estava apegado a ela de forma desordenada. Aquela cruz tinha-se convertido em algo não-negociável, indicando que a relação do frade com ela era desviada.
João observou que a um pássaro preso não importa se está atado por uma corda ou por uma linha fina, de qualquer forma está preso. O coração que está escravizado pelos seus ídolos já não é livre para ouvir o convite do amado. João identifica uma pessoa enfeitiçada com os ídolos com uma pessoa pobremente sintonizada com Deus. Ele estava convencido de que uma pessoa se converte naquilo que ama. Este falso deus fomentará um falso ser.
É importante enfatizar que a tradição carmelitana não é partidária do abandono do mundo. Mas insiste numa correta relação com o mundo criado por Deus. Sem uma boa interpretação, pode-se entender que o Carmelo está dizendo que envolver-se com o mundo é um obstáculo para a relação com Deus. Pelo contrário, é no mundo criado por Deus onde nos encontramos com Ele.
A tradição carmelitana se dirige a aqueles cujos corações vão ao mundo procurando sua realização e se dispersam e se dividem nessa procura. Isto ocorre quando o cristão coloca os desejos do coração nas posses e nas relações que não podem preencher a intensidade desses desejos e então começa a experimentar uma paralisia na sua vida. Esta é uma situação destruidora. Este mundo ao qual o cristão é tentado a agarrar-se freneticamente está reduzindo sua a vida através das expectativas. E o cristão se ajusta aos ídolos, e não se transforma em Deus.
Um tema de nossos dias que se relaciona com o tema tradicional do apego é a afeição. Percebemos que todos, de uma forma ou de outra, somos presos afetivamente, e que só a graça de Deus pode nos liberar de nossas afeições. Podemos ser ligados a coisas obviamente destrutivas, mas podemos ser também afeiçoados à Igreja, ao Papa, às práticas religiosas, e ainda afeiçoados ao Carmelo e a Deus, mas a um deus criado por nós.
Em outras palavras, podemos pedir a alguma criatura para que se transforme em alimento para nossa fome profunda como indivíduos e como povo. Estamos pedindo à criação aquilo que só Deus pode nos dar. Nossa tradição insiste em que nada, nenhuma parte da criação pode substituir a Deus. Só aquele que é nada (nenhuma coisa e ao mesmo tempo tudo) pode ser suficientemente alimento para nossa fome.
Quando João da Cruz desenhou a montanha estilizada para projetar a viagem da transformação, desenhou três caminhos que levam até seu cume. Os dois caminhos de fora, um dos bens do mundo, o outro dos bens espirituais, nenhum chega lá em cima. Só o caminho do meio, o dos nadas, alcança o cume do Carmelo. Ele explica em texto o ensinamento do desenho. As linhas do texto foram variações do mesmo tema, “Para possuir tudo, não possuir nada”.
O texto explicativo na parte baixa do desenho nos ajuda a entender a compreensão básica que tem João do itinerário espiritual. Ele está de acordo em que fomos feitos para possuir tudo, saber tudo, ser tudo, etc. Mas também entende que nunca teremos o tudo se pedirmos a uma parte da criação que sacie nossa fome. Seu conselho de possuir o nada para possuir tudo é um estímulo para que nunca peçamos que alguma coisa, (parte da criação) seja tudo. Só aquele que é nenhuma coisa pode ser nosso Tudo.
Este ascetismo pode soar difícil a menos que entendamos que João está se dirigindo aos homens e mulheres que tentaram outros caminhos na vida para encontrar sua realização. Seus corações saíram à procura daquele que os ama e se viram aprisionados, e com os corações partidos e divididos. Os conselhos de João são palavras de vida para as pessoas que estão morrendo por falta de alimento. Ele está mostrando o caminho da vida àqueles peregrinos que o perderam.
Um caráter profético
Um escritor sugeriu que a vocação carmelita é estar suspenso entre o céu e a terra, sem encontrar apoio em nenhum dos lugares. Esta é uma forma dramática de dizer que no fundo nossa fé, nossa esperança e nossa confiança em Deus tem que ser seu próprio apoio e Deus nos conduz mais além de nossos feitos mundanos e espirituais. No final de sua vida Teresa de Lisieux achou que a esperança pelo céu sustentada em toda sua vida se esvaía. João da Cruz nos lembrou as observações de São Paulo: "Se já temos aquilo que esperamos, já não é esperança; a esperança está naquilo que não possuímos". A espiritualidade de João da Cruz tem sido descrita como uma contínua interpretação da natureza de Deus.
Será que esta suspeita que temos quanto às intenções e as construções humanas nos converte, a nós carmelitas, em uns eternos estressados? Ou, ao contrário, nos permite fazer uma avaliação inteligente do coração humano e de sua tendência a criar ídolos? Não será isto realmente um exercício de libertação que vai nos libertando de todas as formas em que nos escravizamos e nos entregamos aos ídolos? Não é a crítica carmelita um desafio para não nos apegarmos a nada, para que nada seja o centro de nossa vida, além do mistério que a envolve. E nessa pureza de coração, somente conseguida pela ação do Espírito de Deus, somos capazes de amar aos outros e viver neste mundo sabiamente. O desafio carmelita é cooperar com o amor de Deus, algumas vezes obscuro, que nos vivifica e nos cura.
Esta contínua escuta para aproximar-nos de Deus, por meio de todas as palavras e estruturas que conseguimos, é a tarefa profética do Carmelo. Que Deus seguimos? O deus de nossas afeições? O deus das ideologias ou das teologias ilimitadas? Os deuses opressores dos sistemas econômicos e políticos? Os deuses de todos os “ismos” de nosso tempo? Ou é nosso Deus o Deus que transforma, cura, liberta e vivifica?
O arcebispo Oscar Romero foi um clérigo tradicional, cuidadoso e estudioso. Era um bom homem, reservado, piedoso, orante. Mas sua conversão chegou quando viu no outro o rosto de Cristo, um rosto diferente do Cristo de sua piedade e de sua oração, um rosto diferente de sua teologia, um rosto diferente do Cristo familiar à hierarquia de El Salvador. Era o rosto de Cristo no rosto do povo de El Salvador; era o rosto de Cristo verdadeiramente encarnado na história e nas lutas do povo. Romero disse:
"Aprendemos a ver o rosto de Cristo – o rosto de Cristo que é também o rosto do ser humano que sofre, o rosto do crucificado, o rosto do pobre, o rosto do santo e o rosto de cada pessoa – e amamos a cada um com o critério pelo qual seremos julgados: “tive fome e me deste de comer”.
Os ídolos de nosso tempo não são somente os amores pessoais e as possessões, mas especialmente os ídolos do poder, do prestígio, do controle e o domínio que deixam a maior parte da humanidade fora do banquete da vida. Romero comentou:
"A pessoa pobre é aquela que se converteu a Deus e põe toda a sua fé NELE, e a pessoa rica é aquela que não se converteu a Deus e põe sua confiança nos ídolos: dinheiro, poder, bens materiais… Nosso trabalho deve procurar converter-nos a nós mesmos e a todo povo para este autêntico significado da pobreza".
Muitas de nossas províncias tem participado na confrontação com os ídolos de nosso tempo através dos movimentos de libertação em muitas regiões do mundo, que incluem Filipinas, América Latina, América do Norte, África, Indonésia e o Leste da Europa. Hoje em dia as diferenças entre o norte e o sul apontam para os ídolos dos “ismos” que mantém a maioria do mundo em uma condição de marginalização.
Resumo
A fome do nosso coração nos lança ao mundo em busca de alimento. De muitas formas perguntamos ao mundo. Viste aquele que fez isto em meu coração e o deixou chorando? Nosso coração vai se dispersando sobre a terra enquanto vamos perguntando a cada pessoa, a cada objeto de posse e a cada atividade que nos diga mais a respeito do Mistério que está no centro de nossas vidas.
A alma apaixonada pelos mensageiros de Deus, confunde-os com Deus mesmo. Tomamos as coisas boas de Deus e lhes pedimos que sejam deuses. O coração, cansado de sua peregrinação, tenta assentar-se e construir um lar para si. Coloca seus desejos mais profundos nas relações, posses, planos, atividades, metas e pede a tudo isto que sacie sua fome profunda. Pedimos muito e como nada pode corresponder às nossas expectativas, começam a desmoronar-se. Mais e mais os santos carmelitas nos lembram que só Deus é o alimento que pode saciar a fome do nosso coração.
Perguntas para reflexão
Quais são os ídolos, os não-negociáveis, que se transformam em parte da minha vida? Quais são essas coisas sem as quais não posso passar?
Eu as estou prejudicando com meu apego?
Onde e como tenho me tornado uma pessoa sem liberdade na vida?
Sinto-me livre para seguir meus desejos mais profundos?
Sou livre para escutar as necessidades da minha comunidade?
Tenho estado inconscientemente construindo meu próprio reino no lugar de estar preocupado pelo reino de Deus?
Sem perceber, tenho tirado Deus do centro da minha vida e tenho colocado nesse centro meus objetivos, meu trabalho profético, minha compreensão das exigências do reino?
Ao longo dos anos tenho me esquecido de perguntar: o que é que Deus quer?
As paixões que me trouxeram ao Carmelo têm sido domesticadas ou vão se desvanecendo?
Tenho me transformado numa pessoa compulsivamente ativa, talvez me sentindo mais como um(a) funcionário(a) de uma instituição do que como um(a) discípulo(a) do Senhor?
III – UM CORAÇÃO QUE OUVE: A VIDA CONTEMPLATIVA
Deus sempre presente
Uma das mensagens mais impressionantes de nossos santos carmelitas tem sido a compreensão de que Deus nos ama como somos. Pensando que buscavam a um Deus ausente e que a vida era a procura desse Deus, eles regressavam de seus esforços testemunhando que Deus os procurava ao longo de todo caminho. Que a história de nossas vidas não seja a procura de Deus, mas sim o desejo e a procura de Deus por nós. A fome do nosso coração, o desejo do que somos, é o fruto de Deus nos ter desejado e amado primeiro. Com o tempo, nossa transformação pode ser tão grande que viveremos numa consonância de desejo: nosso desejo humano participando plenamente do desejo de Deus.
Certa vez Teresa de Ávila escutou estas palavras enquanto orava: “Procura-te em mim”. Ela perguntou a muitos de seus amigos e diretores em Ávila o significado dessas palavras; “Procura-te em mim”. Entre os consultados estavam Francisco de Salcedo, um diretor espiritual leigo, seu irmão Lorenzo de Cepeda e João da Cruz. Estes cavalheiros se reuniram para discutir suas respostas, mas Teresa não estava presente. Por isso decidiram enviar-lhe suas respostas.
Imitando a moderação acadêmica praticada em algumas escolas, Teresa alegremente decidiu encontrar falta em cada resposta e muito sutilmente se livrou de cada uma. Não temos suas respostas, mas sim temos as rejeições de Teresa a essas respostas. Um dos que respondeu foi Francisco de Salcedo que com frequência citava a São Paulo e termina sua resposta dizendo que tem “escrito estupidezes”. Teresa o repreende por considerar as palavras de São Paulo “estupidezes”. Disse-lhe que tinha em mente denunciá-lo à Inquisição.
João da Cruz respondeu que o significado de “Procura-te em mim” requer estar morto para o mundo para poder procurar Deus. Teresa respondeu com uma oração na qual pedia para ser libertada de pessoas tão espirituais como João da Cruz. Além do mais lhe disse, sua resposta era boa para os membros da Companhia de Jesus, mas não para aqueles a quem ela tinha em mente. A vida não é tão longa que nos permita morrer ao mundo antes de encontrar a Deus. Teresa lembrou os Evangelhos e observou que Maria Madalena não estava morta ao mundo antes de encontrar-se com Jesus; a mulher cananeia também não estava morta ao mundo antes de pedir as migalhas da mesa. E a mulher samaritana também não morreu ao mundo antes de encontrar-se com Jesus no poço. Ela era quem era e Jesus a aceitou. Teresa termina sua resposta a João da Cruz agradecendo-lhe por responder ao que ela não havia perguntado.
A experiência de Teresa é que Deus se encontra conosco e nos aceita tal como somos e nos acolhe no lugar que estamos em nossas vidas. Somos aceitos por Ele ao longo de todo o caminho. O desafio para nós é aceitar a aceitação, e permitir a essa presença que nos transforme. A realidade desse abraço é a base de nossa oração. Orar, portanto, é entrar nessa relação com confiança sentindo-a como o fundamento de nossas vidas. É muito fácil falar sobre isto, mas muito difícil vivê-lo no dia-a-dia.
Um teólogo resumiu a mensagem de Teresa desta maneira: a melhor cooperação que podemos oferecer a Deus que reorienta nossas vidas, é prestar uma fiel e duradoura atenção a nossas profundidades e ao nosso centro.
Atraídos pelo amor
A tradição carmelitana pode ser mal interpretada. Pode parecer que o Carmelo está dizendo às pessoas que um rigoroso ascetismo pode leva-las `a união com Deus; que os ídolos de nossas vidas podem ser derrubados por nossos valentes esforços e por nosso viver isolado e severo. Quando de fato a mensagem do Carmelo às pessoas é a necessidade que têm da graça de Deus e a boa notícia é que a graça está sempre disponível. Tudo o que temos a fazer é abrir nossas vidas a essa graça.
Na subida do Monte Carmelo, João da Cruz oferece alguns conselhos para nos ajudar a desapegar dos ídolos que nos submetem a seu serviço. Os conselhos, num primeiro momento, podem parecer restritivos e desequilibrados. Mas João é rápido em afirmar que a força de vontade e o ascetismo por si só não podem libertar o coração escravizado pelos ídolos. O ídolo ao menos lhe dá algum alimento ao coração faminto de Deus. O ídolo talvez proporcione alguma alegria, alguma identidade, alguma segurança ao peregrino faminto. O coração, por si mesmo, não é capaz de afastar-se desse alimento e entrar num vazio afetivo e esperar pelo Senhor.
João afirma que é somente quando o coração tem uma oferta melhor é que pode desprender-se daquilo a que esteve preso durante toda sua vida. Só quando Deus entra numa vida e acende um amor no profundo da pessoa e a afasta dos amores menores, pode a pessoa abrir-se ao desprendimento dos ídolos. Com o convite de um amor como este, o que antes era impossível (deixar os ídolos) se faz possível, enquanto os ídolos vão se desvanecendo. O coração então vai passando de um amor a outro. Porque João está convencido de que Deus é o centro da alma, a tarefa não é encontrar um Deus distante, mas despertar para a realidade desse Deus “que está sempre presente”.
“Tudo é graça” disse Teresa de Lisieux. Ela expressou está convicção enquanto morria de tuberculose, rodeada de uma espiritualidade que desconfiava da natureza humana, que acreditava que tínhamos que merecer o amor de Deus, e pedia “almas vítimas” para acalmar a ira de Deus. Quando lhe disseram que não podia receber a comunhão, ela simplesmente disse que era uma graça quando a podia receber e agora que não podia continua sendo uma graça. “Tudo é graça”.
Teresa de Lisieux estava convencida de que Deus estava sempre presente nela, que Deus a amava e que este amor era gratuito; sem mérito algum. Falando do mérito simplesmente dizia: “não tenho nenhum”.
Teresa conhecia a justiça de Deus, e estava consciente de que as pessoas devotas se ofereciam como vítima e essa justiça de maneira que os pecadores fossem perdoados e Deus aplacado. Contudo este Deus não era familiar a Teresa. Nenhum dos rostos de Deus em sua vida exigia que o aplacasse, nem sua mãe, nem seu pai, nem Paulina, nem Celina, nem Maria, nem o Deus da Bíblia hebreia que amava aos pequenos, nem Jesus que chamou os pequenos a vir a Ele, nem o Amado do Cântico dos Cânticos ou nas poesias de João da Cruz. Ela acreditava que Deus é justo, mas que essa justiça leva em canta a nossa pequenez.
Teresa de Lisieux uma vez foi descrita como “o Vaticano em miniatura”. A recente atenção que tem sido dada a sua mensagem nos lembra que deve-se dar prioridade não a nossos méritos e esforços, mas ao viver em confiança. Teresa começa sua autobiografia com as palavras de São Paulo aos Romanos: “Portanto, não se trata de querer ou correr, senão de que Deus tenha misericórdia”.
Teresa se antecipou à Teologia de nossos dias que entende a graça como graça incriada, a presença amorosa e salvadora do Pai, do Filho e do Espírito. Quando falamos de contemplação, simplesmente estamos estimulando uma abertura a este amor gratuito. Deus continuamente está vindo a nós e convidando-nos a entrar na profundidade de nossas vidas, a uma liberdade mais ampla, e a uma relação de amor. Contemplação é estar abertos a esse amor transformante, não importa como venha.
A contemplação re-focada
Um dos recentes desenvolvimentos na compreensão do carisma carmelitano tem sido voltar a situar a contemplação entre nossas prioridades. Sempre falamos da oração, da comunidade e do ministério como os três pilares de nosso carisma. A contemplação era vista como uma forma de oração superior ou mais profunda, e algumas vezes em nossa história parecia que havia uma competição entre o ministério e a contemplação. Não obstante, aqui temos uma descrição da contemplação que se encontra no documento sobre a formação na Ordem Carmelita:
"Nesta progressiva e contínua transformação em Cristo realizada em nós pelo Espírito, Deus nos atrai até Ele num caminho interior que conduz da periferia dispersante da vida à cela mais interior do nosso ser, na qual Ele mora e nos une com ele. Estamos entendendo agora que a contemplação fundamenta e une a oração, a comunidade e o ministério. A porta é a oração, mas o amor de Deus nos é oferecido de várias maneiras nestas realidades de nossas vidas através das quais podemos entrar na abertura contemplativa desses três caminhos. Eles não são opostos, mas sim janelas abertas para a realidade transcendente que está no profundo de nossas vidas e nos oferecem um contato com esse Mistério".
É importante acentuar esta perspectiva porque o Carmelo tem oitocentos anos de ministério como resposta à Igreja e ao povo de Deus, e certamente, pela graça de Deus terá muitos séculos mais de serviço desinteressado. E nada disto é contrário a uma vida contemplativa. Muitos carmelitas tem se transformado nas pessoas mais cheias de amor através do contato com o povo de Deus, por meio dos múltiplos ministérios.
O arcebispo Romero foi transformado e convertido pelo amor de Deus não somente na solidão de sua oração, mas também em seu compromisso com o Senhor da História, nos duros esforços do povo por encontrar seu lugar no banquete da vida. A contemplação deveria ser a fonte de compaixão para o mundo. O contemplativo é aquele que faz a experiência da extrema pobreza e impotência de uma alma sem Deus. O contemplativo aprende assim a esperar junto com todos aqueles que também esperam a misericórdia de Deus. Nesta escuta contemplativa aprendemos a dizer: “Nós, os pobres”.
Nossa vida contemplativa, nossa abertura ao amor de Deus que vem a nós nos bons e nos maus momentos é o dom que temos para compartilhar com os demais. O que aconteceu na vida dos santos do Carmelo no passado, está acontecendo nas vidas dos carmelitas de hoje, e na vida de cada um. Daremos melhor testemunho se mantivermos o enfoque em quem somos: uma fraternidade contemplativa em meio ao povo.
Falando à Congregação Geral da Ordem em 1999 um carmelita alemão acentuou este carisma contemplativo:
"Acredito firmemente que nossa primeira tarefa é colocar bastante de nossa energia, tempo, talentos e capacidades pessoais no processo de uma crescente relação com o Deus da vida e do amor. Nosso crescimento humano e espiritual como também nosso futuro como Ordem depende de quanto nós, como indivíduos e como comunidade nos submetemos e desenvolvemos nesta amizade íntima com Deus, de maneira que Ele possa transformar-nos segundo a imagem de Cristo que atua através de nós pela causa da Igreja e do mundo".
Resumo
A história do Amado que vem ao encontro do amante para atrair seu coração até uma profunda união é a história arquetípica que os carmelitas tem ensaiado através do tempo. Nossas vidas não podem ser forçadas à submissão a menos que não sejam levadas pelo amor. Não conseguimos deixar nosso apego aos ídolos, até que Deus acenda um amor mais profundo em nossa alma. O coração então tem um lugar aonde ir e pode com confiança soltar suas amarras, suas afeições, seus ídolos. O amor de Deus, sempre presente e oferecido, atrai o coração até às profundezas de Deus: “Entremos mais a fundo na esperança”, e aí nos encontraremos com o sofrimento do mundo. Nossa postura contemplativa não nos afasta das preocupações do mundo, ao contrário, nos lança com força a lutar no mundo.
Perguntas para reflexão
Como “sentinela na noite”, me mantenho alerta à chegada do amor de Deus?
Onde na minha vida me sinto chamado(a) a uma escuta mais profunda?
Onde encontro os desafios contínuos para minha mente e meu coração?
Estes desafios são convites para entregar-me ao amor transformante de Deus de uma maneira mais profunda?
Entre os sinais do amor de Deus atuando está uma crescente confiança na misericórdia de Deus, uma crescente liberdade diante daquilo que escraviza o coração. Experimento esta crescente confiança?
Sou consciente de uma maior liberdade?
Na realidade tenho me entregado ao mistério que se aninha no centro de minha vida ou continuo lutando por garantir minha própria existência?
Tenho visto o rosto de Cristo no rosto do povo que sirvo?
Posso reconhecer o convite do amor transformante de Deus presente numa cultura?
Na minha comunidade e no meu ministério, como posso ajudar a criar condições para um coração que escuta?
"(...) Ton amour a conquis mon cœur - Seu amor conquistou meu coração
Tu m’as touché par ta douceur - Você me tocou pela sua doçura
Comment ne pas t’aimer et t’adorer - Como não amar você e adorar você
Tout consacrer à cet amour - Dê tudo a esse amor
Qui a dérobé mon cœur - Quem roubou meu coração
M’a pardonné, guéri mes peurs - Perdi-me, curou meus medos
Toute gloire appartient à celui qui - Toda a glória pertence àquele que
M’a tout donné, qui m’a choisi - Deu-me tudo, quem me escolheu (...)"
[Comunidade Católica Shalom - Clique na imagem e ouça a música]
IV – UM CORAÇÃO PREOCUPADO: O TRÁGICO NA VIDA
Os sofrimentos da humanidade
Um dos aspectos que tornam atraente a tradição carmelitana é sua luta honesta com os problemas e as forças obscuras que atacam o corpo e o espírito. O Carmelo não evita o trágico na vida, mas o enfrenta diretamente. O sofrimento é uma grande parte da experiência do povo, e uma espiritualidade que não reconheça o sofrimento será ignorada. Os santos do Carmelo compartilham as dificuldades da vida.
Edith Stein e Tito Brandsma experimentaram a profundidade da crueldade humana e do mal inexplicável. Teresa de Lisieux em sua curta e escondida vida experimentou uma grande quantidade de sofrimento. Teresa de Lisieux conheceu o sofrimento produzido pela luta tanto no interior como no exterior de sua alma. A forte reputação de João da Cruz, seu mesmo nome, e sua imagem da “noite escura” falam de uma espiritualidade que leva a sério assumir um compromisso com o lado obscuro da vida. Pensemos também nos primeiros carmelitas que foram à periferia da sociedade e aí, sem distrações, abriram suas vidas à luta interior entre os bons e os maus espíritos.
As pessoas se sentem atraídas para uma espiritualidade que encontra palavras para seus sofrimentos mais profundos, e ao mesmo tempo oferece uma esperança ao coração nestes tempos escuros. Os santos do Carmelo, nos diferentes séculos e culturas, compartilharam os sofrimentos comuns da humanidade. Um peregrino de qualquer época pode relacionar-se com os sofrimentos dos santos do Carmelo e desejar tê-los como companheiros de caminho neste vale de sofrimentos. É bom voltar a recordar suas dificuldades.
Por exemplo, hoje em dia muitas pessoas podem identificar-se com os problemas de Teresa de Lisieux. Quando menina experimentou, não somente a perda de sua mãe, mas também a perda das seguintes mães que cuidaram dela. Frágil continuou e conheceu o sofrimento das neuroses e a debilitação causada pelas doenças psicossomáticas. Observou impotente a deterioração mental de seu pai, uma figura heroica em sua vida, e seu internamento num asilo. O Carmelo foi para ela como um deserto e em sua última doença mental e física, conheceu a tentação do suicídio. Sua aparência doce nunca enganou aos devotos de Teresa. Reconheciam nela uma companheira de sofrimentos que sabia por experiência o difícil que pode ser a vida. No entanto, deu testemunho do amor que estava presente em tudo e nunca a abandona.
Teresa expressou seu desejo de toda vida: sofrer. Sentia uma atração tão misteriosa pelo sofrimento que se não o tivesse relacionado com o amor, seria suspeito. Desde que entrou no Carmelo, Teresa começou a experimentar secura no coração e permaneceu nesta condição através do resto do breve tempo que esteve ali. E, assombrosamente, sua autobiografia com seu atraente manuscrito “B” foi escrito enquanto ela estava passando por uma terrível noite escura do espírito e quando tudo estava em dúvida. A ideia do céu que tinha inspirado toda sua vida na qual acreditava e se afastava dela. Intelectual e afetivamente não tinha certeza alguma em relação à direção de sua vida. Ao mesmo tempo escrevia essa linda passagem a respeito de ser o amor no coração da Igreja e enviava cartas inspiradoras a seus irmãos missionários.
Teresa estava experimentando sua própria transformação no forno de um amor obscuro. O único que ficava era o centro de sua fé, sua confiança, seu amor. Quando ela nos anima a confiar e a acreditar que “tudo é graça” não o faz a partir de uma posição de deleites tangíveis da presença amorosa de Deus, mas a partir de sua experiência da ausência de Deus e das rejeições de sua mente. O Cardeal Daneels se perguntava se Teresa poderia ser chamada a “Doutora da esperança” devido a seu testemunho na possibilidade humana de continuar adiante quando todos os apoios desapareceram.
O amor obscuro de Deus
Teresa de Ávila advertiu que as lutas dentro de nossos frágeis psiquismos são muito mais difíceis que as externas. Teresa teve que vencer muitos obstáculos em sua reforma. Teve que lutar com os opositores, com a compra de casas adequadas para suas comunidades, contratar operários para reformá-las, arrecadar fundos para sua manutenção, recrutar membros para a comunidade, relacionar-se com vários eclesiásticos que não a apoiavam, viajar pelos difíceis caminhos da Espanha em más condições e enfrentar algum litígio com a corte.
Não obstante, ela comunicou que estas batalhas não se comparam com as batalhas enfrentadas em sua alma, enquanto ela se ocupava de suas profundidades na oração. “…Escutar Sua voz dá mais trabalho que não a escutar”. Pode parecer que a reflexão de Teresa sobre o “entrar em si mesmo” seria como ir para casa; que as batalhas de fora são uma coisa, mas dentro da alma tudo é harmonia. Entretanto, foi o contrário, pois ao entrar em seu interior, verificava que estava em guerra consigo mesma.
A oração lança luz sobre aspectos de nossa alma que anteriormente não tínhamos examinado. As compulsões, os apegos, as maneiras não autênticas de viver, o falso eu, e os falsos deuses, tudo sai à luz enquanto a pessoa vai se afinando mais na verdade. Esta desagradável experiência pode conduzir ao medo, à debilidade do coração e à tentação de abandonar o itinerário existencial. O chamado de Teresa à valentia e a determinação através de uma vida de oração não é demasiadamente dramática. Aquilo de que a alma necessita, escreveu Teresa, é do conhecimento de si mesma. E a porta desse conhecimento de si mesma, a porta ao interior do castelo, é a oração e a reflexão.
Sem um esforço orante, nos manteremos desesperançosamente fechados na periferia de nossas vidas perguntando aos outros e à criação o que somente Deus pode nos dizer, isto é, quem somos. Sem um verdadeiro centro que emerja de nossas vidas, viveremos com muitos “centros”, fragmentados e dispersos, pedindo a cada um deles que realize os desejos do nosso coração. O único antídoto contra a morte certa que decorre do apego aos ídolos, é a dolorosa batalha que supõe entrar em si mesmo através da oração.
Os leitores modernos podem simpatizar com Teresa enquanto ela enumera as dificuldades de sua vida que são, ter sido elogiada demais, injustamente criticada, tendo além de tudo que sofrer as contradições de homens bons que pensavam que suas experiências de oração vinham do demônio e diariamente tinha que enfrentar-se a sua saúde precária.
Porém sua experiência mais difícil surgiu justamente quando sua relação com o Senhor era mais íntima. Ela começou a questionar todo seu itinerário existencial, perguntando se tudo não fora criado por sua imaginação, ou, se era de fato a presença de Deus em sua vida. Teria imaginado que Deus tinha sido bom com ela no passado? Ela própria tinha sido boa no passado ou tinha imaginado isso? Em outras palavras, quando se esperaria que a amizade com Deus fosse base sólida, então surgiram as dúvidas. Há alguém em casa, no centro? Tendo entregado sua vida e sua melhor energia ao seguimento dessa “chama”, ela começou a perguntar-se se tudo era ilusão.
A pergunta também seria feita de outra maneira: O final será todo bom? Tudo isso: a criação, o plano da salvação, o próprio Deus, é para nós? Ou somos uma paixão inútil? O imenso desejo de nosso coração, a fome da alma, serão frustrados no final de tudo? Ou existe uma realidade, um amor do tamanho do nosso desejo? Todas estas perguntas estão no coração do peregrinar humano.
O tempo, a perseverança, e a graça de Deus, deram a Teresa a resposta às suas dúvidas. Mais tarde ela nos fala da ausência dessas dúvidas que lhe corroíam a alma, e da certeza de uma relação profunda, mas não preocupante com o Senhor. Porém, ainda nessa condição que ela identifica com o “desponsório espiritual” diz que confia mais no sofrimento. Ainda nos momentos em que estava presa na periferia da vida, ela sabia que o discípulo de Jesus levaria a cruz e que através desta surgiria a vida. Ela não construía cruzes artificiais em sua vida, mas também não fugia das cruzes que a vida lhe apresentava. Ela tinha aprendido a confiar nesse, às vezes, obscuro amor de Deus.
Noites escuras
A metáfora da noite escura de João da Cruz nos lembra que a experiência de amor de Deus, não é sempre uma experiência pronta da união de toda criação. Na noite escura o amor de Deus se aproxima de uma maneira que parece negar-nos, parece que Deus está contra nós. Mas João afirma que nada no amor é escuro ou destrutivo, mas por causa da nossa necessidade de purificação, é que experimentamos o amor como escuro.
João nos dá uma descrição convincente sobre os momentos da vida em que se desvanecem as consolações e orar é impossível. O desejo está ainda presente, mas se esgotou no esforço para libertar-se dos ídolos. O teólogo Karl Rahner comentou que todas as sinfonias da vida permanecem sem conclusão. Em cada relação, em cada posse sempre haverá um momento em que surgirá a sensação de carência. Esta frustração do desejo e a atração por algo mais além, é a inquietude que causa o contínuo convite de Deus para uma união mais profunda.
Quando os deuses morrem durante a noite, se eclipsa a personalidade. Carl Jung, o psicólogo, disse que não podia distinguir os símbolos dos deuses que representam o ser humano. Quando uma pessoa perde seu Deus-símbolo a personalidade começa a desintegrar-se. Esta afeição obscura permanece até que emerja um novo símbolo-Deus antigo.
O conselho que dá João da Cruz durante esta crise na vida é de muita ajuda. Ele nos dá certeza de que o amor de Deus está em algum lugar presente no meio dos restos da vida, mas que inicialmente não será experimentado como amor. João aconselha paciência, confiança e perseverança. Esta atividade amorosa de Deus nos liberta dos ídolos e restabelece a saúde de nossas almas. Os “deuses” morrem na noite e a alma necessita passar por um processo de sofrimento. O caminho incorreto seria solucionar ou curar esta condição artificialmente, ou nega-la totalmente. João aconselha a enfrentar a condição, entrar nela com paciência, e ali onde o coração estiver lutando com mais força, ficar atentos à chegada do amor. João nos convida a uma “atenção amorosa” na escuridão; é tempo de ser um guardião na noite. A contemplação é uma abertura ao amor transformante de Deus, especialmente quando Ele aparece disfarçado.
A intensa experiência que João chama a noite do espírito é simultaneamente uma forte experiência de nosso pecado, da finitude de nossa condição humana, e a sempre emergente transcendência de Deus. Enquanto se está nesta condição as palavras carecem de significado. João escreve que é tempo de “moer o pó”. Tudo o que cada um pode fazer é realizar o próximo ato de amor que se apresente. No deserto o peregrino continua sua viagem existencial, apoiado numa verdadeira fé bíblica. João está convencido de que somente no contexto desta fé purificada é pode acontecer a relação com Deus. Como aconteceu com Teresa de Lisieux que seu pensamento sobre o céu se desvaneceu, ao peregrino que já não possui o objeto de sua esperança, recorda que a esperança é aquilo que ainda não se possui.
Os escritos de João não se limitam ao sofrimento. Sua poesia e seus comentários, foram escritos a partir do outro lado das lutas. A noite se converteu numa experiência iluminadora e num guia mais seguro que o dia. A chama que uma vez doeu agora é cauterizada e curada. E a ausência que o levou `a procura do Amado se revela como uma Presença compassiva escondida no seu desejo.
Uma nova espiritualidade
As testemunhas contemporâneas do Carmelo que testemunharam sua fé no meio de um sofrimento monstruoso, são as vítimas dos campos de concentração, Titus Brandsma e Edith Stein. Brandsma resistiu à propaganda nazista e Stein se identificou com seu povo perseguido. Eles foram presos na poderosa corrente do mal social do Século 20. Na experiência de serem despojados de toda segurança e apoio, estes carmelitas deram testemunho de uma vida de fé, esperança e amor no meio das condições mais difíceis. No reconhecimento de seu testemunho a Igreja confirma a autenticidade de suas vidas e os coloca entre aqueles arriscaram tudo no seguimento de Cristo. A regra do Carmelo conduz a várias formas de ser discípulo, mas todas levam a abraçar a Cruz.
Os Gerais das duas Ordens Carmelitas nos chamam a uma ”nova espiritualidade” para complementar a “nova evangelização”. Esta nova espiritualidade surgirá do crescente conhecimento que o Carmelo vai tendo sobre a realidade mundial que as pessoas experimentam? Enquanto o rosto do Carmelo vai mudando e entram novos membros na ordem, especialmente vindos dos países, mas povoados e pobres, a situação das massas empobrecidas do mundo chegarão às portas do primeiro mundo. A internacionalidade da ordem e o vínculo internacional da família carmelitana nos oferecem uma oportunidade única para escutar o Espírito nos diversos contextos, e esta escuta nos desafia a dar uma resposta.
João Paulo II ampliou a imagem da noite escura de João da Cruz para incluir os sofrimentos do mundo moderno:
"Nossa época conheceu tempos de sofrimento que nos tem feito compreender melhor esta expressão e dar-lhe um certo caráter coletivo. Nossa época fala do silêncio ou da ausência de Deus. Conheceu tantas calamidades, tantos sofrimentos infligidos pelas guerras e por matanças de tantos seres inocentes. Usamos agora o termo noite escura para todos os aspectos da vida e não somente par uma fase da viagem espiritual. Recorremos à doutrina do santo como resposta a este mistério do sofrimento humano".
Faço referência específica ao mundo do sofrimento. Sofrimento físico, moral, espiritual, como as doenças, como as pragas da fome, a guerra, a injustiça, a solidão, a falta de sentido da vida, a fragilidade da existência humana, o doloroso conhecimento do pecado, a aparente ausência de Deus; são para o crente experiências purificadoras, às quais se podem chamar noite da fé.
A esta existência São João da Cruz deu o nome simbólico e evocador de noite escura e se refere explicitamente à inquietante obscuridade do mistério da fé. Ele não tenta dar resposta ao terrível problema do sofrimento na ordem especulativa; mas à luz das Escrituras e da experiência descobre algo da maravilhosa transformação que Deus efetua na escuridão, posto que, “…de modo tão sábio e formoso sabe ele tirar dos males bens” (Cant. B 23: 5). Finalmente, nos dispomos a viver o mistério da morte e a ressurreição de Jesus em toda sua verdade.
Resumo
O Carmelo não tem resposta para o mistério do mal. Mas o Carmelo fez a experiência do caminho difícil e oferece uma palavra de esperança para o peregrino que sofre. O sofrimento profundo e as experiências do trágico na vida fazem parte da caminhada de cada pessoa. As limitações de nossa condição humana e as forças destrutivas presentes no mundo com frequência atacam nossa fé. Apesar da evidência contraria, o Carmelo testemunha que o amor de Deus está sempre presente ainda nos restos de nossas vidas.
O Carmelo nos oferece uma análise particular e poderosa do impacto do amor de Deus no espírito e na personalidade humana. Convidando para uma relação mais profunda, ele desafia o peregrino a largar todos os apoios e a caminhar com confiança para o futuro de Deus. O cristão com frequência experimenta ataques tanto no espírito como na psique, enquanto vai desenvolvendo o ambiente divino. O Carmelo oferece uma linguagem e umas imagens expressivas para estes sofrimentos, e é muito eloquente ao recomendar uma vigília silenciosa para esperar a chegada de Deus.
Os santos do Carmelo confiaram no sofrimento e com frequência expressaram seu desejo de levar a cruz em seu discipulado. Entretanto, este desejo de sofrimento só tem significado no contexto de resposta amorosa às iniciativas do amor de Deus. O sofrimento de Jesus na Cruz nasceu do seu amor ao Pai e aos irmãos e não do amor ao sofrimento.
Perguntas para refletir
Qual tem sido minha experiência de caminhar pelo caminho escuro?
Tenho deixado outros caminhos para ser conduzido por um caminho não escolhido por mim?
O que mais me ajudou?
Como devo proceder quando o caminho não está claro?
Que consolo ou orientação o Carmelo oferece às pessoas que vivem situações dolorosas?
Como a Ordem do Carmo responde à noite escura que sofre tanta gente no mundo? Poderia ser isto parte da nova espiritualidade a que nos chamam os Gerais de nossas Ordens?
V – UM CORAÇÃO PURO: A TRANSFORMAÇÃO DO DESEJO
União com Deus
A espiritualidade carmelitana, com frequência, tem sido apresentada como profunda, rara e somente para uns poucos escolhidos. Ás vezes, também é apresentada como uniões elevadas e extáticas, ou como fortes sofrimentos mais intensos que os problemas normais da vida. Vem a minha mente imagens da estátua de Bernini da “transverberação” de Teresa, sua visão de ser atravessada pelo dardo de ouro; junto à sua agonia e seu êxtase.
O austero desenho que faz de João da Cruz de Cristo crucificado, na perspectiva do Pai que olha das alturas o seu Filho na cruz, evoca a infatigável determinação do santo. Imaginamos o desenho de João mostrando o caminho até o Monte Carmelo. Os caminhos das posses materiais e espirituais não chegam ao cume. Somente o caminho do meio dos nadas se abre ao cume onde Deus é nada e tudo. O Carmelo parece representar uma viagem heroica, inclusive épica, até Deus. Uma viagem a ser feita somente pelos montanhistas experientes que se atrevem a escalar sua altura.
Se a subida ao monte Carmelo é uma façanha épica, o que estamos fazendo nós, os Carmelitas ordinários? Sentimos que, aos poucos, estamos informando sobre acontecimentos de segunda mão sobre a terra do Carmelo, mas que na realidade nunca estivemos lá? Como resultado de nossa transformação no amor, “nos fazemos bons”. João da Cruz proclama energicamente: “com que pouca frequência se celebra esta divinização em nossa tradição”.
Um despertar
Depois de viajar através da noite ou subir a montanha, João utiliza outra imagem para descrever a viagem. Escreve que “o centro da alma é Deus” e que nossa viagem na vida é até esse centro. Mas no lugar de conceber um centro distante que requer uma árdua viagem. João diz que ainda com o primeiro grau de amor estamos nesse centro. Com um grau de desejo, de esperança, ainda que seja difícil expressá-los.
Nossa teologia hoje reforça esta observação de João. Estritamente falando não existe o mundo natural. O que existe é um mundo cheio de graça, desde o começo, criação e redenção vão juntas de mão dadas. Em outras palavras, nossas vidas estão impregnadas da presença amorosa, vivificante e salvadora de Deus, ou seja, da graça incriada. No lugar de procurar um centro escondido e distante, esse centro tem se aproximado de nós.
Então, o que é viagem? A viagem – disse João – é entrar na profundidade de Deus. Mas já estamos unidos com Deus ao longo de todo o caminho porque a divinização é um processo continuo. Assim, a meta descrita por nossos autores carmelitas é tal que vai se realizando em cada alma que deseja mais.
“E agora acordas no meu coração, onde em segredo moras”, escreveu João da Cruz. Mas no seu comentário ele se corrige e diz que não fostes tu quem acordou, mas fui eu quem acordou para o amor sempre presente e sempre ao meu alcance. Este despertar, e a mudança que se produz na vida da pessoa é o chamado do Carmelo. Podemos chegar à conclusão de que muitos Carmelitas e tantas outras pessoas têm chegado ao cume do Carmelo. E se chega ao cume, não somente quando uma pessoa se extasia na Igreja, senão quando sua vida expressa mais e mais a vontade de Deus.
Querer o que Deus quer
O propósito da oração é conformar-se com a vontade Deus, escreveu Teresa de Ávila. A pessoa orante está cada vez mais em união com Deus e esta união se expressa no fato de a pessoa desejar mais e mais aquilo que Deus deseja. Nós não nos fazemos mais fortes através da ascética, lutando para submeter nossa vontade à vontade de Deus. Não, o amor de Deus nos convida à transformação de nosso desejo para que nós desejemos o que Deus deseja; queremos o que Deus quer, disse João, “Assim, o que tu queres que peça, peço, e o que não queres, não quero, inclusive nem posso, nem me passa pelo pensamento querer.”
A divinização é a participação gradativa no conhecimento e no amor de Deus. O peregrino fica tão transformado que todo o seu modo de viver se converte em expressão da vontade de Deus. Se podemos interpretar o que Jesus disse, que a vontade de Deus é o bem-estar da humanidade, então a pessoa orante vive mais do que esse bem-estar. Em outras palavras, a pessoa transformada e divinizada vive de tal forma que coopera com o Reino de Deus presente e vindouro.
Estas pessoas são difíceis de se identificar. O Mestre Eickhart nos previne que uma pessoa que vive a partir do seu centro, vive na vontade de Deus. Diz que enquanto outros jejuam, eles comem; enquanto outros estão em vigília, eles dormem; enquanto outros oram eles estão em silêncio. Pois, qual é o propósito da vigília, da oração, do jejum senão o viver do centro da alma que é Deus? É claro que ele está exagerando ao expressar sua compreensão, já que nosso peregrinar nunca acaba deste lado da morte. O que ele quer expressar é a absoluta humanização da pessoa transformada.
Teresa nos disse que estas pessoas não estão continuamente conscientes de sua vida espiritual. A interioridade se converte cada vez menos num ponto de enfoque. Nem Deus lhes preocupa, porque o modo como vivem expressa sua relação com Deus. A meta nunca foi chegar a ser um contemplativo, ou um santo, ou ter uma vida espiritual. A meta sempre foi querer o que Deus quer numa consonância de desejo.
Na conclusão da Regra Carmelitana, Alberto, Patriarca de Jerusalém e o legislador escrevem: “É isto que, com brevidade, lhes escrevemos determinando a forma de conduta, segundo a qual vocês deverão viver. Se alguém fizer mais do que o prescrito, o Senhor mesmo lhe retribuirá quando voltar.” Kees Waaijman do Instituto Tito Brandsma de Nimega vê nesta afirmação uma clara alusão à passagem do Bom Samaritano. O Carmelita assume o papel do hospedeiro. Seus planos e a ordem de sua casa se vêm alterados quando um forasteiro traz um homem machucado para que cuide dele. O forasteiro pede ao hospedeiro que cuide daquele homem machucado e se gastar algo mais, isto é, se fizer mais, o forasteiro na volta o pagará.
O forasteiro, Cristo, pede ao Carmelita que cuide de sua gente durante sua ausência. Ainda que o hóspede não seja esperado e a ordem da casa fique alterada, o hospedeiro obedientemente se ocupa do homem ferido, talvez sem envolver-se emocional ou pessoalmente, e com pouca satisfação. Kees conclui que toda entrega autêntica é essencialmente obscura. A presença que se encontra no profundo do coração do Carmelita é uma noite que guia, uma chama que cura, uma ausência reveladora.
Os frades não têm necessidade de desculpar-se por não ser autênticos carmelitas. Nossa espiritualidade não é de um ascetismo heroico, mas do amor de Deus que conquista e toca cada coração e o faz adoecer, de outro modo não estaríamos aqui.
Assumindo que no cume do Monte Carmelo nos sentimos em casa, quer dizer, nos braços de Deus, e ao mesmo tempo sempre necessitamos de sua misericórdia, nosso ministério é fazer acessível a tradição do Carmelo para ajudar a nossos irmãos e irmãs a ver e ouvir a presença de Deus em suas vidas.
Para manter viva esta chama nos outros, pareceria correto que primeiro nós a tivéssemos acolhido em nossas vidas. Se escutarmos nossos corações, conheceremos os corações das pessoas com as quais trabalhamos e assim as serviremos melhor. Tiremos a poeira de qualquer vocação carmelita e ali encontraremos uma brasa esperando tornar-se uma chama, uma chama que deseja a totalidade, a paz, a segurança, o gozo, a unidade e que encontra sua melhor expressão no serviço aos irmãos e irmãs. Para isso viemos. Para isso estamos aqui.
Resumo
“Entrar no Carmelo” não é simplesmente entrar em um edifício, unir-se a uma comunidade, e assumir um ministério, seja este contemplativo ou apostólico. Pode ser isso certamente, porém, “entrar ao Carmelo” é também entrar em um drama que se realiza no profundo de cada vida humana. O drama do encontro de espírito humano com o espírito de Deus é essencialmente inefável.
Os carmelitas são exploradores do lugar secreto onde Deus habita, esse lugar do espírito humano onde o Mistério se dirige ao espírito. O Carmelo honra essa primeira e privilegiada relação entre criatura e Criador. Os místicos carmelitas têm usado as imagens dos desposórios e, com frequência, a história de amor do Cântico dos Cânticos para captar a intimidade do encontro. A paisagem dos Cânticos começa a dar forma à “terra do Carmelo”
O propósito da oração é a conformidade com a vontade de Deus, nos disse Teresa de Ávila. Nesta relação os desejos do peregrino são transformados de tal maneira que cada vez mais o cristão expressa em sua vida aqueles desejos que estão conformes com os desejos de Deus. Se dissermos que a meta do amor de Deus é o bem-estar da humanidade, então o cristão transformado vive de uma maneira que naturalmente coopera com o Reino de Deus.
Perguntas para reflexão
Quem são as pessoas verdadeiramente santas na minha experiência?
Como são?
Entendo a vida espiritual como um crescimento heroico, ou como um despertar para um amor que brota do centro do meu ser?
Estou disposto(a) a confiar, de um modo prático, que o amor de Deus é gratuito, impossível de ser conquistado?
Existem maneiras sutis em que tento assegurar meu valor?
“Descanse, tudo já foi feito”, disse um teólogo da graça. O que pode significar esta frase?
(09.07.2022)
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O Amor que abraça o Mundo
[A Criação 2]
por Marco Vanzini & Carlos Ayxelá
Após ter refletido sobre os relatos da criação, podemos nos perguntar outra vez: em que sentido é racional falar de criação hoje?
Para muitas pessoas, dizer que o amor ocupa um lugar central na realidade é uma ideia bonita e inspiradora. Mas talvez frequentemente se trate uma convicção nostálgica: o mundo seria um lugar melhor se todos nos guiássemos por esse princípio. É o que dizem a si mesmos. A experiência do mal, das injustiças, da imperfeição do mundo, parecem fazer do amor mais um ideal a que aspirar do que a base sobre a qual se levanta o próprio edifício da realidade. “De fato, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não tem nada a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade” [1].
“Nada mais oculto que Ele, nada mais presente;
dificilmente se encontra onde está,
mais difícil onde não está."
(Santo Agostinho)
Por contraste, a fé cristã encontra, na origem do universo, um Amor pessoal e infinitamente criativo, que chegou ao ponto de entrar ele mesmo, como mais um em sua criação, para salvá-la. “Eu te amo com amor de eternidade; por isso, guardo por ti tanta ternura” (Jer 31, 3).
Muitas pessoas que trabalham com entusiasmo para melhorar o mundo reconhecem a grandeza desta visão da realidade, mas não podem deixar de ver a ideia de um ser pessoal e eterno – um ser que precede o mundo – como algo que no fundo corresponde a um modo de pensar “mítico e contrário ao sistema” [2]: uma ideia que não pertence à estrutura racional que pode ser compartilhada, baseada em nossa experiência comum do mundo.
Depois de ter refletido sobre os relatos da criação no Gênesis, podemos nos perguntar agora, mais uma vez: é racional falar de criação hoje?
Onde está Deus?
É frequente ouvir, inclusive entre pessoas com fé, a consideração de que, enquanto a ciência baseia as suas afirmações em provas seguras, a ideia de Deus se basearia em tradições ou suposições não verificáveis. À primeira vista, parece difícil contradizer essa ideia. No entanto, se considerarmos que “provas seguras” significa aqui “evidências empíricas”, compreende-se que essa segurança tem um alcance limitado pela própria ciência, que deliberadamente se concentra nos aspectos empíricos e mensuráveis da realidade.
Essa decisão estratégica permitiu à ciência crescer exponencialmente, mas também implica que seu estudo não pode embarcar toda a realidade, ou pelo menos não pode descartar que a realidade seja mais ampla. Por outro lado, como toda disciplina – também a teologia –, a ciência experimental tem pontos de partida que ela mesma não pode demonstrar.
Um deles é a existência da realidade que estuda, que requer, necessariamente, uma reflexão racional de outro tipo. Entende-se assim que a revelação cristã não questione o método da ciência nem seus êxitos evidentes: na realidade, precede esta metodologia e lhe abre horizontes mais amplos.
É verdade que o modo peculiar com que Deus se faz presente no mundo, às vezes, pode fazê-lo parecer um grande ausente. Santo Agostinho escrevia: “Nada mais oculto que ele, nada mais presente; dificilmente se encontra onde está, mais difícil onde não está” [3]. Esse paradoxo, este cruzamento de sim e não, que parece um curto-circuito, fala pelo contrário da necessidade de abrir a racionalidade a outro nível [4].
Deus não é uma realidade como outras neste mundo, nem intervém necessariamente nos processos naturais verificáveis empiricamente. Deus atua em um nível muito mais profundo, sustentando o próprio ser das coisas, fazendo que as coisas sejam. Ao falar Dele, inclusive para negar sua existência, a linguagem vai sempre além do âmbito de rigor da ciência experimental, e se insere em uma linguagem distinta, que a própria ciência pressupõe, e que tem também um rigor próprio: a linguagem filosófica ou metafísica.
Por isso, o deus que fosse obrigado a revelar-se através de instrumentos de observação científica não seria o verdadeiro Deus, mas uma caricatura d’Ele. E o verdadeiro Deus não interfere na ciência, porque está num nível de realidade anterior à própria ciência. Deus não cabe nas leis da física, porque é melhor dizer que as leis da física é que “cabem” n’Ele [5].
"Uma ciência sem Deus não libertaria o mundo dos mitos,
porque sempre ficariam, inevitavelmente,
fendas que seriam preenchidas com outras explicações."
A contribuição da ciência foi decisiva para tornar o homem consciente da grandeza do universo, da sua evolução dinâmica; para compreender as suas leis, assim como a trajetória evolutiva, que forma uma espécie de pré-história biológica da aparição do homo sapiens sobre a terra. Entretanto, a ciência não pode explicar completamente a origem do universo, porque este evento não entrelaça dois “estados” da mesma realidade.
Explicar a “lei” com a qual se passou do nada à primeira forma embrionária do universo está fora das possibilidades da ciência, porque o nada não pode ter uma representação científica. Toda teoria cosmológica assume uma estrutura espaço-temporal como ponto de partida; e o nada em sentido radical, ou seja, o não ser, fica fora dessa estrutura: o limiar que separa o ser o nada é metafísico [6].
Entende-se, por isso, que o diálogo entre a ciência e a teologia não só é desejável mas também necessário, e que requer a mediação da filosofia, no papel de interlocutor capaz de compreender o alcance e as possibilidades de ambas as disciplinas, mais que como um árbitro para pôr paz entre partes em litígio.
No coração do real
Mesmo que se aproxime da origem do universo, pois, a ciência fica sempre do lado de cá da realidade, dentro do ser. Há muitos cientistas que, ao identificar esse limiar, percebem a necessidade de empreender uma reflexão filosófica, a partir da qual é possível chegar a compreender a necessidade de um Criador na origem do universo. “A própria formosura da criação é, sem dúvida, um grande livro. Contempla, olha, lê sua parte superior e inferior. Deus não fez letras de tinta, mediante as quais pudesses conhecê-lO: pôs diante dos teus olhos essas coisas que fez. Por que buscas uma voz mais potente? A ti clamam o céu e a terra: ‘Deus me fez’” [7].
No entanto, a própria filosofia encontra perguntas limite: por que existe o ser e não o nada? Por que existo? Nesse sentido, a fé cristã contribui com “uma nova imagem de Deus, mais elevada do que a que poderia ser forjada ou pensada pela razão filosófica. Mas a fé não contradiz a doutrina filosófica de Deus; (...) a fé cristã em Deus aceita em si a doutrina filosófica sobre Deus e a consuma” [8]. Diante da pergunta sobre o porquê, o sentido último da existência – pergunta que se torna decisiva para todos em algum momento da vida –, faz-se o silêncio. Então a fé cristã se levanta, e responde sinceramente: Deus estava aí antes do mundo, pensou nele, e o criou com amor.
Essa simples afirmação produz, na realidade, o contrário do que, às vezes, é atribuído à noção de criação: desmistifica o universo. Compreender o mundo como criação de Deus é “a ‘Iluminação decisiva da história (...), a ruptura com os temores que tinham reprimido os homens. Significa a libertação do Universo pela razão, o reconhecimento da sua racionalidade e de sua liberdade” [9]. Mesmo que a ciência seja capaz de ler uma parte importante da lógica interna da natureza, uma ciência sem Deus não libertaria o mundo dos mitos, porque sempre ficariam, inevitavelmente, fendas que seriam preenchidas com outras explicações [10].
Não é possível, pela autolimitação da ciência ao empírico, que ela própria cubra algum dia todas essas fendas. E o homem não deixará de se perguntar por elas, porque o próprio ato de fazê-lo – como o próprio exercício da ciência – mostra que o ser humano transcende o nível empírico. O espírito humano, que se manifesta entre outras coisas no fato de que cada um de nós percebe sua identidade diante do mundo, no fato de nos perguntarmos por essas fendas, e inclusive no fato de que alguém possa considerar estúpido perguntar-se por elas… Tudo isso manifesta, mesmo do ponto de vista meramente filosófico, que nós mesmos – apesar de ser um microcosmos, que compartilha com o universos seus mesmos elementos – somos algo mais que simples mundo.
A liberdade pessoal e a autoconsciência, pelas quais uma pessoa percebe que é distinta do mundo, são por isso também grandes fendas através das quais o homem pode vislumbrar a transcendência: falam do Deus pessoal que é ainda mais radicalmente distinto do mundo, e que o cria livremente. E vice-versa, no reconhecimento de que a realidade tem sua origem nessa Liberdade criadora se joga o próprio reconhecimento da liberdade humana, e, portanto, da dignidade de cada pessoa [11].
Este é um dos sentidos fundamentais nos quais o Gênesis diz que “Deus criou o homem à sua imagem” (Gn 1,27): nós mesmos somos um espelho no qual se pode vislumbrar a Deus. Por isso o Bem-Aventurado John Henry Newman identificava na consciência “nosso grande mestre interior de religião” [12], um “princípio de conexão entre a criatura e o criador” [13].
A fé na criação, pois, não acrescenta de fora o “mundo do espírito” ao mundo material: afirma decididamente que Deus abraça inteiramente o universo material. A intuição poética de Dante o expressou de modo imortal: Deus é “o amor que move o sol e as outras estrelas” [14]. No coração do real está Deus, e Deus ama o mundo, e cada um: “aberta sua mão com a chave do amor, surgiram as criaturas" [15]. Neste sentido um pensamento recorrente em São Josemaría tem grande profundidade teológica; ao atuar, costumava dizer, este é “o motivo mais sobrenatural de todos: porque nos apetece” [16].
A liberdade e o amor, como a racionalidade do mundo, falam de Deus. Por isso, Santo Agostinho reconhecia Deus no livro da natureza, encontrava-O também na intimidade de sua alma: “Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! (...) Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira” [17].
O milagre do mundo
A realidade dos milagres corresponde a esta mesma prioridade que a liberdade, o amor e a sabedoria de Deus têm sobre o mundo. Com seu peculiar estilo paradoxal, Chesterton dizia: “Quem acredita numa lei natural inalterável não pode acreditar em nenhum milagre em nenhuma época. Quem crê em uma vontade anterior às leis, pode crer em qualquer milagre de qualquer época” [18].
Os três Evangelhos sinóticos falam de um leproso que se aproxima de Jesus, pedindo a sua cura. Jesus responde: “Quero, sê limpo” (Mt 8, 3). Deus cura àquele homem porque quer, da mesma forma que criou o mundo, e criou cada pessoa, porque quer, por amor. Comentando o relato de outro milagre, a cura de um cego, Bento XVI observava: “Não é por acaso que o comentário conclusivo das pessoas, depois do milagre, recorda a avaliação da criação no início do Gênesis: 'Ele fez bem todas as coisas’ (Mc 7, 37). Na obra curadora de Jesus sobressai de modo claro a oração, com o seu olhar voltado para o Céu. A força que curou o surdo-mudo é, sem dúvida, provocada pela compaixão por ele, mas provém do recurso ao Pai. Encontram-se estas duas relações: a relação humana de compaixão para com o homem, que entra em relação com Deus, tornando-se assim cura” [19].
"Vivemos por milagre: cada instante da nossa vida diária
acontece no meio do milagre de um mundo
que existe por amor."
Os milagres, pois, não são exceções que põem em questão a solidez e a racionalidade do mundo, mas indicam a própria raiz dessa solidez: manifestam o verdadeiro milagre, que é a própria existência do Universo e da vida. O verdadeiro milagre – miraculum, algo diante de que só cabe se admirar – é a criação de Deus. A abertura da razão a este início dos inícios não só torna os milagres razoáveis, mas sobretudo torna o próprio mundo razoável. “A uniformidade e a generalidade das leis naturais (...) levam a pensar que a natureza se basta a si mesma. E, no entanto, não há solução de continuidade entre a criação e o acontecimento mais habitual e banal. O milagre intervém para nos convencermos disso” [20].
Às vezes, se diz que “vivo por milagre”, para se referir à forma surpreendente como certos problemas ou perigos são resolvidos. Na realidade, a expressão recolhe uma verdade radical: cada instante da nossa vida diária acontece no meio do milagre de um mundo que existe por amor. “Cada um de nós, cada homem e cada mulher, é um milagre de Deus, é desejado por Ele e conhecido pessoalmente por Ele” [21].
Como dizia São Paulo aos que o escutavam no Areópago de Atenas, “nele vivemos, nos movemos e somos” (At 17, 28). Por isso, “na tradição judaico-cristã, dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado” [22].
***
“Eu te louvo porque me fizeste maravilhoso” (Sl 139,14): a fé na criação se manifesta em uma atitude de profundo agradecimento. Apesar da dor e do mal presentes no mundo, a realidade inteira – e especialmente a nossa vida e a dos que nos rodeiam – aparece como uma promessa de felicidade: “Todos que estais com sede, vinde buscar água! Quem não tem dinheiro venha também! Comprar para comer, vinde, comprar sem dinheiro vinho e mel” (Is 55,1).
O homem tem consciência de ser inerme – porque realmente o é –, mas destinatário de uma generosidade infinita que o chama a viver, e a viver para sempre. Santo Irineu sintetizou esta ideia em uma máxima célebre: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus” [23]. Com este modo de ver, a vida não é uma simples luta pelo sucesso ou pela sobrevivência, nem sequer em condições extremas: é espaço para agradecimento, para a adoração, na qual o homem encontra seu verdadeiro descanso [24].
“Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós: ‘Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia’ (Jr 1, 5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, ‘cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário’” [25].
[4] É neste sentido que Bento XVI falou da “valentia para se abrir à amplitude da razão” (Discurso na Universidade de Ratisbona, 12-09-2006).
[5] “Albert Einstein disse que nas leis da natureza ‘se revela uma razão tão superior que toda a racionalidade do pensamento e dos ordenamentos humanos em comparação é um reflexo absolutamente insignificante’ (...). Portanto, um primeiro caminho que leva à descoberta de Deus é a contemplação da criação com um olhar atento.” (Bento XVI, Audiência, 14-11-2012).
[6] Nesse sentido, São Tomás de Aquino explica que para tirar o ser do nada é necessária uma “potência infinita” (cfr. Summa Theologica I, q. 45,5, ad 3): uma capacidade que não pode ser comunicada a nenhuma criatura, precisamente porque – como podemos perceber em nossa própria existência – as criaturas são contingentes, ou seja, poderiam nunca ter sido (Summa Theologica I, q. 104,1).
[8] J. Ratzinger, Der Gott des Glaubens und der Gott der Philosophen (O Deus da fé e o Deus dos filósofos).
[10] Muitos cientistas pensam assim; basta mencionar Einstein, que, com uma ideia peculiar de Deus chegou a dizer que “a ciência sem a religião está coxa; a religião sem a ciência é cega” (Pensieri, idee, opinioni [1934-1950], Newton Compton, Roma 1996, p. 29); e Georges Lemaître, sacerdote e físico, que pôs as bases do mais adiante se chamaria, a princípio com ironia, e depois mais seriamente, o Big Bang.
[11] Cfr. J. Ratzinger, A festa da fé, 25-26: “Se, partindo da realidade, a personalidade não é possível ou não existe, tampouco pode existir em lugar algum. A liberdade ou é possível partindo da realidade ou não existe”.
[12] Bem-Aventurado John Henry Newman, An Essay in Aid of a Grammar of Assent, Longmans Green and Co., Londres 1903, 389.
[13] Ibidem, 117.
[15] São Tomás de Aquino, Commentum in secundum librum Sententiarum, Prologus (citado em Catecismo da Igreja Católica, 293).
[24] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, 347. Criação, milagre, adoração, agradecimento… Não é coincidência que esses motivos convirjam no mistério eucarístico: “A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração” (Francisco, Laudato si’, 236).
[25] Francisco, Laudato si’, 65; cfr. Bento XVI, Homilia no solene início do ministério petrino (24-04-2005).
(11.07.2022)
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A Criação
por Santiago Sanz
A doutrina da Criação constitui a primeira resposta às indagações fundamentais sobre nossa origem e nosso fim.
Introdução
A importância da verdade da criação vem de que é “o fundamento de todos os projetos divinos de salvação; (...) o início da história da salvação, que culmina em Cristo” (Compêndio, 51). Tanto a Bíblia (Gn 1, 1) como o Credo começam com a confissão de fé no Criador.
Diferentemente dos outros grandes mistérios da nossa fé (a Trindade e a Encarnação), a criação é “a primeira resposta às questões fundamentais do homem acerca sua própria origem e do seu fim” (Compêndio, 51), que o espírito humano se propõe e, em parte, pode também responder, como mostra a reflexão filosófica e os relatos das origens pertencentes às culturas religiosas de tantos povos (cf. Catecismo, 285); não obstante, a especificidade da noção de criação só foi de fato entendida com a revelação judaico-cristã.
A criação é, pois, um mistério de fé e, ao mesmo tempo, uma verdade acessível à razão natural (cf. Catecismo, 286). Esta peculiar posição entre fé e razão faz da criação um bom ponto de partida na tarefa de evangelização e de diálogo que os cristãos estão sempre – particularmente em nossos dias [1] – chamados a realizar, como já fizera São Paulo no Areópago de Atenas (At 17, 16-34).
Costuma-se distinguir entre o ato criador de Deus (a criação active sumpta) e a realidade criada, que é efeito de tal ação divina (a criação passive sumpta) [2]. Seguindo este esquema, são expostos a seguir os principais aspectos dogmáticos da criação.
1. O ato criador
1.1. “A criação é obra comum da Santíssima Trindade” (Catecismo, 292)
A Revelação apresenta a ação criadora de Deus como fruto da sua onipotência, da sua sabedoria e do seu amor. Costuma-se atribuir a criação ao Pai (cf. Compêndio, 52), assim como a redenção ao Filho e a santificação ao Espírito Santo. Ao mesmo tempo, as obras ad extra da Trindade (a primeira delas é a criação) são comuns às três Pessoas, e por isso, faz sentido perguntar-se pelo papel específico de cada Pessoa na criação, pois “cada Pessoa divina cumpre a obra comum segundo a sua propriedade pessoal” (Catecismo, 258). Este é o sentido da igualmente tradicional apropriação dos atributos essenciais (onipotência, sabedoria, amor) respectivamente ao agir criador do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
No Símbolo Niceno-Constantinopolitano, confessamos a nossa fé “em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”; “em um só Senhor Jesus Cristo (...) por ele todas as coisas foram feitas”; e no Espírito Santo, “Senhor que dá a vida” (DH 150). A fé cristã fala, portanto, não somente de uma criação ex nihilo, do nada, que indica a onipotência de Deus Pai; mas também de uma criação feita com inteligência, com a sabedoria de Deus – o Logos por meio do qual tudo foi feito (Jo 1, 3) -; e de uma criação ex amore (GS 19), fruto da liberdade e do amor que é o próprio Deus, o Espírito que procede do Pai e do Filho. Consequentemente, as processões eternas das Pessoas estão na base de seu agir criador [3].
Assim, como não há contradição entre a unicidade de Deus e o seu ser três Pessoas, de modo análogo não se contrapõe a unicidade do princípio criador com a diversidade dos modos de agir de cada uma das Pessoas.
“Criador do céu e da terra”
“No princípio, Deus criou o céu e a terra. Três coisas são afirmadas nestas primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno pôs um começo a tudo o que existe fora dele. Só ele é Criador (o verbo “criar” – em hebraico, “bara” – sempre tem como sujeito Deus). Tudo o que existe (expresso pela fórmula “o céu e a terra”) depende daquele que lhe dá o ser” (Catecismo, 290).
Somente Deus pode criar em sentido próprio [4], o que significa dar origem às coisas do nada (ex nihilo), e não a partir de algo pré-existente; para isso, requer-se uma potência ativa infinita que só Deus possui (cf. Catecismo, 296-298). É congruente (adequado), portanto, apropriar a potência criadora ao Pai, já que Ele é, na Trindade – segundo uma expressão clássica – fons et origo, quer dizer, a Pessoa de quem procedem as outras duas, princípio sem princípio.
A fé cristã afirma que a distinção fundamental, de fato, é a que se dá entre Deus e as criaturas. Isto supôs uma novidade nos primeiros séculos, nos quais a polaridade entre matéria e espírito dava motivo a visões inconciliáveis entre si (materialismo e espiritualismo, dualismo e monismo). O cristianismo rompeu estes esquemas, principalmente com sua afirmação de que também a matéria (do mesmo modo que o espírito) é criatura do único Deus transcendente.
Mais tarde, São Tomás desenvolveu uma metafísica da criação que descreve a Deus como o próprio Ser subsistente (Ipsum Esse Subsistens). Como causa primeira, é absolutamente transcendente ao mundo; e ao mesmo tempo, em virtude da participação de seu ser nas criaturas, está presente intimamente nelas, as quais dependem, em tudo, de quem é fonte do ser. Deus é superior summo meo (maior do que o que há de maior em mim) e, ao mesmo tempo, intimior intimo meo (mais íntimo do que o que há de mais íntimo em mim) (Santo Agostinho, Confissões, 3, 6, 11; cf. Catecismo, 300).
“Por Ele todas as coisas foram feitas”
A literatura sapiencial do Antigo Testamento apresenta o mundo como fruto da sabedoria de Deus (cf. Sab 9, 9). “O mundo não é o produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso” (Catecismo, 295), mas tem uma inteligibilidade que a razão humana, participando na luz do entendimento divino, pode captar, não sem esforço e em espírito de humildade e de respeito ante o Criador e sua obra (cf. Jo 42, 3; cf. Catecismo, 299).
Este desenvolvimento chega à sua expressão plena no Novo Testamento: ao identificar o Filho, Jesus Cristo, com o Logos (cf. Jo 1, 1ss), afirma que a sabedoria de Deus é uma Pessoa, o Verbo encarnado, por quem tudo foi feito (Jo 1, 3). São Paulo formula esta relação do criado com Cristo, esclarecendo que todas as coisas foram criadas nele, por ele e para ele (Col 1, 16-17).
Há, pois, uma razão criadora na origem do cosmos (cf. Catecismo, 284) [5]. O Cristianismo tem, desde o começo, uma grande confiança na capacidade da razão humana de conhecer; e uma enorme segurança em que jamais a razão (científica, filosófica etc.) poderá chegar a conclusões contrárias à fé, pois ambas provêm da mesma origem.
Não é raro encontrar pessoas que apresentam falsos dilemas, como, por exemplo, entre criação e evolução. Em realidade, uma epistemologia adequada não só distingue os âmbitos próprios das ciências naturais e da fé, mas, ainda, reconhece, na filosofia, um elemento necessário de mediação, pois as ciências, com seu método e objeto próprios, não cobrem todo o âmbito da razão humana; e a fé, que se refere ao mesmo mundo do qual tratam as ciências, necessita, para formular-se e entrar em diálogo com a racionalidade humana, de categorias filosóficas [6].
É lógico, portanto, que a Igreja, desde o início, buscasse o diálogo com a razão: uma razão consciente de seu caráter criado, pois não se deu a si própria a existência, nem dispõe completamente de seu futuro; uma razão aberta àquilo que a transcende, em suma, a Razão originária. Paradoxalmente, uma razão fechada sobre si, que acredita poder achar dentro de si a resposta às suas interrogações mais profundas, acaba por afirmar a falta de sentido da existência, e por não reconhecer a inteligibilidade do real (niilismo, irracionalismo, etc.).
“Senhor que dá a vida”
“Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participarem de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade: "Pois tu criaste todas as coisas; por tua vontade é que elas existiam e foram criadas" (Ap 4, 11) (...) "O Senhor é bom para todos, compassivo com todas as suas obras” (Catecismo, 295). Em consequência, “Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: "E Deus viu que isto era bom... muito bom": Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21. 31). Pois a criação é querida por Deus como um dom...” (Catecismo, 299).
Este caráter de bondade e de dom livre permite descobrir na criação a atuação do Espírito – que “movia-se sobre as águas” (Gn 1, 2) –, a Pessoa Dom na Trindade, Amor subsistente entre o Pai e o Filho. A Igreja confessa sua fé na obra criadora do Espírito Santo, que dá a vida e é fonte de todo bem [7].
A afirmação cristã da liberdade divina criadora permite superar a estreiteza de outras visões que, atribuindo uma necessidade a Deus, acabam por sustentar um certo fatalismo ou determinismo. Não há nada, nem “dentro”, nem “fora” de Deus, que o obrigue a criar. Qual é então o fim que o move? O que se propôs ao criar-nos?
1.2. “O mundo foi criado para a glória de Deus” (Concílio Vaticano I)
Deus criou tudo “não para aumentar sua glória, mas para manifestá-la e comunicá-la” (São Boaventura, Sent., 2, 1, 2, 2, 1). O Concílio Vaticano I (1870) ensina que “por sua bondade e pela sua virtude onipotente, não para aumentar a sua felicidade nem para adquirir sua perfeição, mas para a manifestar essa perfeição por meio dos bens que prodigaliza às criaturas, Deus, com vontade plenamente livre, criou simultaneamente no início do tempo ambas as criaturas do nada: a espiritual e a corporal” (DS 3002; cf. Catecismo, 293).
“A glória de Deus consiste em que se realize esta manifesta e esta comunicação de sua bondade em vista das quais o mundo foi criado. Fazer de nós "filhos adotivos por Jesus Cristo: conforme o beneplácito de sua vontade para louvor à glória da sua graça" (Ef 1, 5-6): "Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus" (Santo Irineu, Adversus haereses, 4, 20, 7)” (Catecismo, 294).
Longe de uma dialética de princípios contrapostos (como ocorre no dualismo de tipo maniqueísta, como também no idealismo monista hegeliano), afirmar a glória de Deus como fim da criação não comporta uma negação do homem, mas uma condição indispensável para a sua realização. O otimismo cristão tem as suas raízes na exaltação conjunta de Deus e do homem: “somente se Deus é grande, o homem também é grande” [8]. Trata-se de um otimismo e uma lógica que afirmam a absoluta prioridade do bem, mas que não são, por isso, cegos ante a presença do mal no mundo e na história.
1.3. Conservação e providência. O mal
A criação não se reduz aos começos; uma vez realizada a criação, “Com a criação, Deus não abandona sua criatura a ela mesma. Não somente lhe dá o ser e a existência, mas também a sustenta a todo instante no ser, dá-lhe o dom de agir e a conduz a seu termo” (Catecismo, 301). A Sagrada Escritura compara esta atuação de Deus na história com a ação criadora (cf. Is 44, 24; 45, 8; 51,13).
A literatura sapiencial explicita a ação de Deus que mantém suas criaturas na existência. “Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis querido, e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada?” (Sab 11, 25). São Paulo vai mais longe e atribui esta ação conservadora a Cristo: “Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele” (Col 1, 17).
O Deus dos cristãos não é um relojoeiro ou arquiteto que, após ter realizado sua obra, se desentende dela. Estas imagens são próprias de uma concepção deísta, segundo a qual Deus não se imiscui nos assuntos deste mundo. Mas isto supõe uma distorção do autêntico Deus criador, pois separa drasticamente a criação da conservação e governo divino do mundo [9].
A noção de conservação “faz o papel de ponte” entre a ação criadora e o governo divino do mundo (providência). Deus não só cria o mundo e o mantém na existência, mas, além disso, “conduz as suas criaturas para a perfeição última, à qual Ele mesmo as chamou” (Compêndio, 55). A Sagrada Escritura apresenta a soberania absoluta de Deus e testemunha constantemente o seu cuidado paterno, tanto nas coisas pequenas como nos grandes acontecimentos da história (cf. Catecismo, 303). Neste contexto, Jesus se revela como a providência “encarnada” de Deus, que atende, como Bom Pastor, as necessidades materiais e espirituais dos homens (Jo 10, 11.14-15; Mt 14, 13-14, etc.) e nos ensina a abandonar-nos aos seus cuidados (Mt 6, 31-33).
Se Deus cria, sustenta e dirige tudo com bondade, de onde provem o mal? “Para esta pergunta tão premente quão inevitável, tão dolorosa quanto misteriosa, não há uma resposta rápida. É o conjunto da fé cristã que constitui a resposta a esta pergunta (...). Não há nenhum elemento da mensagem cristã que não seja, por uma parte, uma resposta à questão do mal” (Catecismo, 309).
A criação não está terminada desde o princípio, mas Deus a fez in statu viae, isto é, em direção a uma meta última por alcançar. Para a realização dos seus desígnios, Deus se serve do concurso das criaturas, e concede aos homens uma participação da sua providência, respeitando sua liberdade, ainda quando atuem mal (cf. Catecismo, 302, 307, 311). Aquilo que realmente surpreende é que Deus “em sua onipotente providência pode tirar um bem das consequências de um mal” (Catecismo, 312). É uma misteriosa e grandíssima verdade que “todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28) [10].
A experiência do mal parece mostrar uma tensão entre a onipotência e a bondade divinas em sua atuação na história. Aquela recebe resposta, certamente misteriosa, no evento da Cruz de Cristo, que revela o “modo de ser” de Deus, e é, portanto, fonte de sabedoria para o homem (sapientia crucis).
1.4. Criação e salvação
A criação é “o primeiro passo para a Aliança do Deus único com seu povo” (Compêndio, 51). Na Bíblia, a criação está aberta à atuação salvífica de Deus na história, que tem a sua plenitude no mistério pascal de Cristo, e que alcançará sua perfeição final no fim dos tempos. A criação foi feita com vistas ao sábado, o sétimo dia, em que o Senhor descansou, dia em que culmina a primeira criação e que se abre ao oitavo dia em que começa uma obra ainda mais maravilhosa: a Redenção, a nova criação em Cristo (2 Cor 5, 7; cfr Catecismo, 345-349).
Assim, fica patente a continuidade e unidade do desígnio divino de criação e redenção. Entre ambos, não há qualquer hiato, mas um vínculo, pois o pecado dos homens não corrompeu totalmente a obra divina. A relação entre ambas – criação e salvação – pode expressar-se dizendo que, de um lado, a criação é o primeiro evento salvífico; e por outro lado, que a salvação redentora possui as características de uma nova criação. Esta relação ilumina importantes aspectos da fé cristã, como a ordenação da natureza à graça, ou a existência de um único fim sobrenatural do homem.
2. A realidade criada
O efeito da ação criadora de Deus é a totalidade do mundo criado, “céus e terra” (Gn 1, 1). Deus é “Criador de todas as coisas, das visíveis e das invisíveis, espirituais e corporais; que por sua virtude onipotente, desde o princípio dos tempos e simultaneamente, criou do nada a uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, a angélica e a material, e depois a humana, como comum, composta de espírito e de corpo” [11].
O cristianismo supera tanto o monismo (que afirma que a matéria e o espírito se confundem, que a realidade de Deus e do mundo se identificam), como o dualismo (segundo o qual a matéria e o espírito são princípios originários opostos).
A ação criadora pertence à eternidade de Deus, mas o efeito de tal ação está marcado pela temporalidade. A Revelação afirma que o mundo foi criado como mundo com um início temporal [12], isto é, que o mundo foi criado com o tempo, o qual é indício muito coerente com a unidade do desígnio divino de revelar-se na história da salvação.
2.1. O mundo espiritual: os anjos
“A existência dos seres espirituais, não-corporais, que a Sagrada Escritura habitualmente chama anjos, é uma verdade de fé. O testemunho da Escritura é tão claro quanto a unanimidade da Tradição” (Catecismo, 328). Os dois testemunhos mostram os anjos em sua dupla função de amar a Deus e ser mensageiros de seu desígnio salvador. O Novo Testamento apresenta os anjos em relação a Cristo: criados por Ele e para Ele (Col 1, 16), rodeiam a vida de Jesus desde o seu nascimento até a Ascensão, sendo os anunciadores de sua segunda vinda, gloriosa (cf. Catecismo, 333).
Da mesma forma, também estão presentes desde o início da vida da Igreja, que se beneficia de sua ajuda poderosa, e em sua liturgia se une a eles na adoração a Deus. A vida de cada homem está acompanhada desde seu nascimento por um anjo que o protege e conduz à Vida (cf. Catecismo, 334-336).
A teologia (especialmente São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico) e o Magistério da Igreja aprofundaram no estudo da natureza desses seres puramente espirituais, dotados de inteligência e vontade, afirmando que são criaturas pessoais e imortais, que superam em perfeição a todas as criaturas visíveis (cf. Catecismo, 330).
Os anjos foram criados em estado de prova. Alguns se rebelaram irrevogavelmente contra Deus. Caídos no pecado, Satanás e os outros demônios – que haviam sido criados bons, mas por si mesmos se fizeram maus – instigaram nossos primeiros pais para que pecassem (cf. Catecismo, 391-395).
2.2. O mundo material
Deus “criou o mundo visível em toda a sua riqueza, diversidade e ordem. A Sagrada Escritura apresenta a obra do Criador, simbolicamente, como uma sequência de seis dias "de trabalho" divino, que terminam com o "descanso" do sétimo dia (Gn 1, 1 - 2, 4)” (Catecismo, 337). “Repetidas vezes a Igreja teve de defender a bondade da criação, inclusive do mundo material (cf. DS 286; 455-463; 800; 1333; 3002)” (Catecismo, 299).
“Pela própria condição da criação, todas as coisas estão dotadas de firmeza, verdade e bondade próprias e de uma ordem” (GS 36, 2). A verdade e bondade da criação procedem do único Deus Criador, que é, ao mesmo tempo, Trino. Assim, o mundo criado é um certo reflexo da atuação das Pessoas divinas: “em todas as criaturas encontra-se uma representação da Trindade, na forma de um vestígio” [13].
O cosmos tem uma beleza e uma dignidade enquanto obra de Deus. Há uma solidariedade e uma hierarquia entre os seres, o que deve levar a uma atitude contemplativa de respeito para com a criação e as leis naturais que a regem (cf. Catecismo, 339, 340, 342, 354). Certamente, o cosmos foi criado para o homem, que recebeu de Deus a ordem de dominar a terra (cf. Gn 1, 28). Tal ordem não é um convite à exploração despótica da natureza, mas um convite para participar no poder criador de Deus: mediante seu trabalho, o homem colabora no aperfeiçoamento da criação.
O cristão participa das justas exigências que a sensibilidade ecológica tem manifestado nas últimas décadas, sem cair em uma vaga divinização do mundo, e afirmando a superioridade do homem em relação aos outros seres, como “ponto culminante da obra da criação” (Catecismo, 343).
2.3. O homem
As pessoas humanas gozam de uma peculiar posição na obra criadora de Deus, ao participar, simultaneamente, da realidade material e da espiritual. Somente do homem a Escritura nos diz que Deus o criou “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26).
Ele foi colocado por Deus como cabeça da realidade visível, e goza de uma dignidade especial, pois, “De todas as criaturas visíveis, só o homem é "capaz de conhecer e amar seu Criador" (216); ele é a "única criatura na terra que Deus quis por si mesma" (217); só ele é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus. Foi para "este fim que o homem foi criado, e aí reside a razão fundamental da sua dignidade” (Catecismo, 356; cf. ibidem, 1701-1703).
Homem e mulher, em sua diversidade e complementaridade, queridas por Deus, gozam da mesma dignidade como pessoas (cf. Catecismo, 357, 369, 372). Em ambos, ocorre a união substancial do corpo e da alma, sendo esta a forma do corpo. Sendo espiritual, a alma humana é criada imediatamente por Deus (não é “produzida” pelos pais, nem é pré-existente), e é imortal (cf. Catecismo, 366).
As duas características (espiritualidade e imortalidade) podem ser mostradas filosoficamente. Portanto, é um reducionismo afirmar que o homem procede exclusivamente da evolução biológica (evolucionismo absoluto). Na verdade, há saltos ontológicos que não podem ser explicados só pela evolução. A consciência moral e a liberdade do homem, por exemplo, manifestam sua superioridade sobre o mundo material, e são sinais de sua especial dignidade.
A verdade da criação ajuda a superar tanto a negação da liberdade (determinismo) como o extremo contrário da exaltação indevida da mesma: a liberdade humana é criada, não absoluta, e existe em mútua dependência da verdade e do bem. O sonho de uma liberdade como puro poder e arbitrariedade corresponde a uma imagem deformada, não só do homem, mas também de Deus.
Mediante sua atividade e seu trabalho, o homem participa do poder criador de Deus [14]. Além disso, sua inteligência e sua vontade são uma participação, uma faísca da sabedoria e do amor divinos. Enquanto o resto do mundo visível é mero vestígio da Trindade, o ser humano constitui uma autêntica imago Trinitatis.
3. Algumas consequências práticas da verdade sobre a criação
A radicalidade da ação divina criadora e salvadora exige do homem uma resposta que tenha esse mesmo caráter de totalidade: “amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda tua alma, com todas as tuas forças” (Dt 6, 5; cf. Mt 22, 37; Mc 12, 30; Lc 10, 27).
Nesta correspondência encontra-se a verdadeira felicidade, a única coisa que torna plena a liberdade. Por sua vez, a universalidade da ação divina tem um sentido tanto intensivo como extensivo: Deus cria e salva a todo homem e a todos os homens. Corresponder à chamada de Deus para amá-lo com todo nosso ser está intrinsecamente unido a levar o seu amor a todo o mundo [15].
O conhecimento e a admiração do poder, sabedoria e amor divinos levam o homem a uma atitude de reverência, adoração e humildade, a viver na presença de Deus, sabendo-se seu filho. Ao mesmo tempo, a fé na providência leva o cristão a uma atitude de confiança filial em Deus, em todas as circunstâncias: com agradecimento pelos bens recebidos, e com abandono simples diante daquilo que pode parecer mal, pois Deus, dos males, tira bens maiores.
Consciente de que tudo foi criado para a glória de Deus, o cristão procura comportar-se em todas as ações de modo a buscar o fim verdadeiro que enche sua vida de felicidade: a glória de Deus, não a própria vanglória. Esforça-se para retificar a intenção em suas ações, de modo que se possa dizer que o único fim de sua vida é este: Deo omnis gloria![16].
Deus quis colocar o homem à frente de sua criação, outorgando-lhe o domínio sobre o mundo, de maneira que a aperfeiçoe com seu trabalho. A atividade humana pode ser, portanto, considerada como uma participação na obra divina da criação.
A grandeza e a beleza das criaturas suscitam nas pessoas admiração e desperta nelas a pergunta pela origem e destino do mundo e do homem, fazendo-as entrever a realidade de seu Criador. O cristão, em seu diálogo com os que não têm fé, pode suscitar estas perguntas para que as inteligências e os corações se abram à luz do Criador. Da mesma forma, em seu diálogo com pessoas de diversas religiões, o cristão encontra, na verdade da criação, um excelente ponto de partida, pois trata-se de uma verdade em parte compartilhada, e que constitui a base para a afirmação de alguns valores morais fundamentais da pessoa.
[1] Entre muitas outras intervenções, cf. Bento XVI, Discurso aos membros da Cúria Romana, 22-12-05; Fé, Razão e universidade (Discurso em Regensburg), 12-09-06; Ângelus, 28-01-07.
[2] Cf. São Tomás, De Potentia, q. 3, a. 3, co.; o Catecismo segue este mesmo esquema.
[3] Cf. São Tomás, Scriptum Super Sententiis, lib. 1, d. 14, q. 1, a. 1, co.: “são a causa e a razão da processão (procedência) das criaturas”.
[4] Por isso se diz que Deus não tem necessidade de instrumentos para criar, já que nenhum instrumento possui a potência infinita necessária para criar. Decorre daí, também, que quando se fala, por exemplo, do homem como criador, ou, inclusive, como capaz de participar do poder criador de Deus, o emprego do adjetivo “criador” não é analógico, mas metafórico.
[5] Este ponto aparece com frequência nos ensinamentos de Bento XVI, por exemplo, na Homilia de Regensburg, 12-09-06; Discurso em Verona, 19-10-2006; Encontro com o clero da diocese de Roma, 22-02-2007, etc.
[6] Tanto o racionalismo cientificista como o fideísmo científico necessitam uma correção por parte da filosofia. Além disso, há que evitar, da mesma forma, a falsa apologética de quem vê forçadas concordâncias, buscando nos dados fornecidos pela ciência uma verificação empírica ou uma demonstração das verdades da fé, quando, na verdade, como dissemos, trata-se de dados que pertencem a métodos e disciplinas distintas.
[8] Bento XVI, Homilia, 15-08-2005.
[9] O deísmo implica em um erro na noção metafísica de criação, pois esta, enquanto doação do ser, leva consigo dependência ontológica por parte da criatura, que não é separável de sua continuação no tempo. Ambas constituem um mesmo ato, ainda que possamos distingui-las conceitualmente: “a conservação das coisas por Deus não se dá por uma ação nova, mas pela continuação da ação que dá o ser, que é certamente uma ação sem movimento e sem tempo” (São Tomás, Summa Theologiae, I, q. 104, a. 1. ad 3).
[10] Em continuidade com a experiência de tantos santos da história da Igreja, esta expressão paulina se encontrava frequentemente nos lábios de São Josemaría, que vivia e animava assim a viver em uma gozosa aceitação da vontade divina (cf. São Josemaría, Sulco, 127; Via Sacra, IX, 4; Amigos de Deus, 119). Por outro lado, o último livro de João Paulo II, Memória e Identidade, constitui uma profunda reflexão sobre a atuação da providencia divina na história dos homens, segundo aquela outra asserção de São Paulo: “Não te deixes vencer pelo mal; antes, vence o mal com o bem” Rm 12, 21).
[11] Concílio Lateranense IV (1215), DH 800.
[12] Assim o ensina o Concílio Lateranense IV e, referindo-se a ele, o Concílio Vaticano I (cf. respectivamente DH 800 e 3002). Trata-se de uma verdade revelada, que a razão não pode demonstrar, como ensinou São Tomás na famosa disputa medieval sobre a eternidade do mundo: cf. Contra Gentiles, lib. 2, cap. 31-38; e seu opúsculo filosófico De aeternitate mundi.
[14] Cf. São Josemaría, Amigos de Deus, 57.
[15] Que o apostolado é a superabundância da vida interior (cf. São Josemaría, Caminho, 961) se manifesta como o correlato da dinâmica ad intra-ad extra do agir divino, isto é, da intensidade do ser, da sabedoria e do amor trinitário que se extravasa para as criaturas.
(04.07.2022)
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Criação: amor de Deus em excesso
por Centro Loyola de Fé e Cultura de Goiânia
“Ao ver uma planta, uma pequena erva, uma flor, uma fruta, um pequeno verme ou qualquer outro animal, Santo Inácio contemplava e levantava os olhos aos céus, penetrando no mais interior e no mais remoto dos sentidos” (P. Ribadaneira).
Cada criatura é uma irradiação de Deus, uma faísca da divindade, um transbordamento do amor de Deus. Tudo vem de Deus e tudo volta para Deus. Tudo fala de Deus, tudo revela o seu Amor. Cada vida, seja animal ou vegetal, é um dom e uma revelação da presença divina. Na Criação encontramos as “impressões digitais” das mãos providentes e criativas de Deus.
Tudo pode ser lugar de encontro com Deus em meio a Criação, tudo é sacramento (Deus nos fala a linguagem das coisas, dos acontecimentos, das pessoas, das alegrias). Para Inácio, tudo está “amorizado”, ou seja, cheio de Amor, tudo está cristificado e cheio de sentido. O mundo significava para ele um espaço de totalidade, onde a Graça, depois de consolá-lo, enchia seu coração de um desejo sempre maior de servir a Deus e ao próximo.
As criaturas são morada do Criador
“A maior consolação que descobrira então era contemplar o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto sentia em si um muito grande esforço para servir a Nosso Senhor” (Santo Inácio).
Inácio vê uma bondade e uma beleza presentes em todas as manifestações do mundo visível. O Amor se faz presença, se faz visível, se manifesta em cada detalhe da Criação. A originalidade de Santo Inácio está em olhar e vislumbrar a natureza a partir de Deus, com os olhos do Amor. A partir de Deus, o ser humano encontra seu lugar e sua comunhão com toda a natureza.
As criaturas existem e são sustentadas pela força onipotente de Deus, Ele continua operando, re-criando, fazendo tudo novo. O universo se transforma no espaço e no lugar de manifestação da divindade, que se faz presente em todos os seres, tudo é sagrado. Cresce a sensação de que todos os lugares da Mãe-Terra pelos quais caminhamos são territórios sagrados. Segundo a Bíblia, a Terra é um jardim onde Deus tem prazer em caminhar. Por isso, descuidar, destruir, romper e profanar a natureza é impedir que Deus se faça vivo por nós em todas as coisas criadas.
O universo é sinfônico
Quando, a partir do nosso coração, ficarmos atentos à natureza que nos cerca, ouviremos a mensagem no silêncio que nos cerca e veremos a marca do Criador. A beleza da Criação nos cativa e sua grandeza nos assusta, sua imensidade nos fascina e nos desafia.
Essa harmonia de sons é diversidade de mensagens. Todas as coisas falam por si. Estamos mergulhados num mundo formado por uma multiplicidade de notas, sons, sinais e mensagens diferentes. O conjunto da vida é uma melodia.
A natureza nos encanta e nos faz sonhar acordados. Ela nos convida, constantemente, à admiração e ao cuidado. Ao mesmo tempo ela nos recorda que somos “terra que canta, que sente, que se abre ao Criador”. Trata-se de uma atitude contemplativa na qual a beleza, o que fascina e o diferente cativam os nossos olhos, enchem a nossa interioridade de louvor e admiração.
Essa é a dimensão contemplativa da vida
O mundo inteiro é um enorme templo da presença de Deus. Contemplar é descobrir Deus em tudo. É sentir-se sempre em Deus. Contemplação é amar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. É sentir-se amado por Deus em todas as coisas e amar a Deus em todas elas.
Texto Bíblico: Dn 3, 50-90 / Gn 1.
(03.07.2022)
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Saber esperar...
por Pe. Antônio José
“Esperando, esperei no Senhor, e inclinando-se ouviu meu clamor.
Canto novo ele pôs em meus lábios, um poema em louvor ao Senhor.”
( Sl 39, 1)
Ao ler esse pequeno versículo do Salmo 39, um jovem estudante poderia se perguntar se não existe um erro, uma redundância, na expressão “esperando, esperei no Senhor”. Veremos, contudo, que na gramática da vida existem muitas maneiras de esperar, mas a única correta é essa, ensinada pelo salmo.
Saber esperar é uma virtude que traz paz e serenidade para a alma. Mas isso acontece somente quando se espera “esperando”... O que se faz enquanto estamos no aguardo de um futuro melhor é determinante para nossa felicidade cotidiana.
Acreditar que aquilo que está por vir é melhor do que o que vivemos hoje é uma característica das pessoas esperançosas. Pessoas apegadas a velhas fórmulas ou acomodadas a qualquer tipo de situação (podemos nos acomodar até mesmo aos fracassos!) não fazem idéia do que Deus pode lhes reservar para o futuro e, por isso, não se abrem com otimismo para o dia de amanhã.
De uma maneira ou de outra, todos desejamos mudanças para melhor. Mas, o que torna uma pessoa esperançosa diferente é que cada dia ela se prepara para as novas bênçãos que virão, acreditando que elas são reais, chegando mesmo a antecipá-las.
A pessoa esperançosa espera “esperando”. Ela sabe, com muita confiança, que o Pai tem planos para cada momento de nossas vidas e sempre está pronto para realizá-los na hora mais apropriada. Ela levanta as mãos para o céu em oração, louvor e gratidão, preparando-se para receber as graças que, certamente, chegarão.
A pessoa pessimista, acomodada, incrédula, de alguma maneira também deseja que algo venha a mudar. Mas ela espera “reclamando”, “amaldiçoando”, “agredindo”... Por isso, quando as oportunidades chegam, quando as portas se abrem, muitas vezes tudo se perde, pois ela não está preparada, numa posição de fé, para agarrar as graças de Deus.
Que tipo de pessoa você tem sido, querido(a) irmão(ã)? Uma pessoa esperançosa, que aguarda maravilhas vindas de Deus, preparando-se para elas em oração? Ou uma pessoa pessimista, acomodada, que até desejaria uma mudança para melhor, mas nunca está em posição para começá-la? Como você tem esperado? Você espera “esperando”, louvando, preparando-se para o melhor? Ou você espera reclamando, brigando, duvidando do que pode vir?
Sua maneira de esperar determina seu bem-estar hoje e desencadeia as graças de amanhã. Espere esperando e, certamente, você será visitado(a) por uma grandiosa paz vinda de Deus. Vamos orar, para que o Senhor lhe conceda as graças da esperança e da paciência:
"Amado Pai, confio em Teus planos para minha vida. Sei que há um momento para cada gesto de amor vindo de Ti. Por isso, Senhor, encho-me de esperança novamente. Creio que tens um futuro de graça e de bênção eterna para mim e, por isso, vou esperar por ele numa posição de fé, louvando e agradecendo. Não quero mais esperar reclamando ou praguejando. Quero esperar com toda confiança e certo da Tua constante companhia ao meu lado. Obrigado(a), Senhor, porque me dás paciência para enfrentar as tribulações e saber que elas serão superadas, em Nome de Jesus. Amém."
O acompanhamento da oração
Esperar pelas bênçãos de Deus não significa assumir uma postura de passividade diante da vida. Saber esperar significa estar atento a todas as oportunidades que o Senhor oferece a cada dia. Significa também orar especificamente pelas situações que desejamos que sejam transformadas pela intervenção de Deus. Na sua carta aos cristãos filipenses, Paulo nos ensina uma importante lição a respeito da oração confiante. Em Fl 4, 6 diz: “Em todas as circunstâncias apresentai a Deus as vossas preocupações, mediante orações e súplicas, acompanhadas de ação de graças”.
Através dessa passagem, o Espírito Santo nos convida a apresentar a Deus as coisas que nos preocupam, antes mesmo de apresentá-las a outras pessoas. Além disso, Paulo nos ensina que nossas súplicas devem ter um acompanhamento que dá o verdadeiro sabor à oração: ação de graças. Palavras de gratidão e reconhecimento a Deus, mesmo enquanto estamos orando e intercedendo por situações difíceis, tornam nossa oração um clamor confiante e ousado; assim deve ser o clima no nosso coração para enfrentar as batalhas da vida.
Sua oração e seus pedidos têm sido acompanhados de louvores ou de murmurações? Você acompanha seus clamores com palavras de reconhecimento à grandeza de Deus ou com proclamações de derrota? Espere as bênçãos de Deus criando o ambiente certo para a manifestação da Sua glória.
(05.11.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 10, Final
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
Os três véus
- O primeiro véu é a ignorância
religiosa, que já Pio XII chamava o maior inimigo de Deus no mundo
contemporâneo. Dois anos antes da sua eleição como Papa, o cardeal Ratzinger
lamentava o que ele chamava “o resultado
catastrófico da catequese moderna”, a partir dos anos sessenta do século
XX. “Sem querer condenar ninguém – constatava com pena –, é evidente que hoje a
ignorância religiosa é tremenda; é só conversar com as novas gerações...” Essas
“novas gerações” são as dos que atualmente têm de cinqüenta ou sessenta anos
para baixo.
– É verdade. É difícil, por
exemplo, encontrar “jovens” dessas
idades que tenham as mais elementares noções sobre o Evangelho, a vida de
Cristo, a história do Cristianismo, os sacramentos, as virtudes cristãs, etc.
Desconhecem a terminologia religiosa mais elementar, e nem mesmo sabem enunciar
os Dez Mandamentos.
– É lamentável, mas é assim.
Essas gerações que estão quase na estaca zero em matéria de doutrina cristã são
as vítimas daquela crise de embriaguez de “novidades”
que levou, a partir dos anos sessenta, muitos responsáveis pela formação
cristã, cheios de boa vontade, a querer experimentar novos métodos, formas
inéditas, teorias..., fazendo involuntariamente das crianças e dos jovens
verdadeiras “cobaias” dos seus mal
digeridos palpites inovadores. Resultado, com dizia o cardeal Ratzinger, “não sabem nada”. Você faz idéia do
perigo que corre uma pessoa cheia de boa vontade, mas ignorante?
– Claro. No vazio da ignorância é
muito fácil despejar todas as idéias e teorias erradas, os maiores absurdos, as
mentiras e falsificações mais grosseiras, tipo Código da Vinci... Os coitados
engolem tudo como se fosse verdade, porque a ignorância os deixa desarmados,
sem um mínimo de espírito crítico; faltam-lhes as luzes da cultura religiosa
que poderiam abrir-lhes os olhos.
– Exato. Mas, como não quero
facilitar-lhe uma recaída no pessimismo, deixe-me perguntar-lhe: “Essa situação tão bem diagnosticada, o que
exige de nós?”
– Suponho que fazer o possível
para difundir a doutrina católica... Mas podemos tão pouco...
– Também os primeiros cristãos
podiam pouco, e espalharam a luz da fé pelo mundo inteiro, uma fé, por certo,
riquíssima de doutrina. Eu fico pasmo ao ler os sermões que Santo Agostinho
pregou à população portuária, analfabeta na sua maior parte, da pequena cidade
de Hipona, no norte da África. Aos católicos cultos do século XXI, esses
sermões parecem tratados de teologia de nível de pós-graduação...
Que vergonha! E que contas
prestarão a Deus os que deviam ter-lhes ensinado a doutrina e só lhes passaram
perfumaria ou política. A verdade é que, durante séculos, os cristãos recebiam
constantemente doutrina, boa doutrina; dava-se doutrina, e não divagações
sentimentais ou comícios políticos! Mas agora sou eu que divago. Dizia que é
preciso que todos difundamos a autêntica doutrina católica e, para isso, que
cuidemos seriamente de começar nós mesmos por aprofundar nela, de uma maneira
sistemática, perseverante: lendo, estudando, conhecendo bem os documentos da
Igreja.
É um dever sobre o qual o Papa
Bento XVI não se cansa de falar. No dia 11 de maio de 2007, por exemplo, dizia aos bispos reunidos em Aparecida: “Convirá
intensificar a catequese e a formação na fé, tanto das crianças como dos jovens
e adultos. A reflexão madura da fé é luz para o caminho da vida e força para
sermos testemunhas de Cristo. Para isso se dispõe de instrumentos muito
valiosos como o Catecismo da Igreja Católica e sua versão mais breve, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. Neste campo, não devemos limitar-nos só às
homilias, conferências, cursos de Bíblia ou teologia, mas é preciso recorrer
também aos meios de comunicação: imprensa, rádio e televisão, sites da
Internet, foros e tantos outros sistemas para comunicar eficazmente a mensagem
de Cristo a um grande número de pessoas”.
Tomemos nota, e não fiquemos na
teoria nem na boa vontade inoperante. Isso é que é ser otimista “responsável”: fazer, com realismo, “tudo” o que de positivo possamos fazer –
mas “tudo” mesmo, não só um pouco
para embromar –, certos de que Deus abençoará este esforço. Levemos a mão à
consciência, peçamos perdão a Deus e aos nossos irmãos pelas nossas omissões, e
estudemos um plano de formação pessoal muito concreto, para recuperar o tempo
perdido e avançar cada vez mais.
O segundo véu é o desconcerto
causado por condutas escandalosas, reprováveis, de alguns membros do clero.
Ventilados pela mídia, esses escândalos abalam a confiança na Igreja e, às
vezes, desencadeiam um movimento interior de aversão em não poucas pessoas.
Jesus já previu essa dificuldade. No capítulo dezoito do Evangelho de São
Mateus, que é chamado pelos especialistas a “Instrução sobre a vida da Igreja”, nosso Senhor fala com crueza: "Ai
do mundo por causa dos escândalos!"
Eles são inevitáveis, mas ai do
homem que os causa! Chega a dizer, hiperbolicamente, que seria melhor que o
jogassem ao mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço (cfr. Mt 18, 6-7).
Nenhum desses escândalos se justifica. E não adianta dizer que são apresentados
na mídia com lente de aumento e mais dois zeros atrás da cifra estatística, nem
que, entre professores leigos casados e dentro do âmbito das famílias,
escândalos desse tipo são muitíssimo mais freqüentes.
Isto é verdade, verdade
estatisticamente comprovada. Mas um só desses escândalos na Igreja de Cristo já
é demais. O que é doloroso, e não se justifica, é que esses males se
transformem numa nuvem de fumaça que impeça de ver e amar a grande multidão,
que ninguém pode contar (Apoc 7, 9), de sacerdotes, religiosos e religiosas e
de leigos católicos bons, virtuosos, fiéis aos ideais cristãos e até mesmo
santos, que há na Igreja e a tornam bela e atraente.
Numa homilia pronunciada em 1993, o cardeal Ratzinger dizia: “Se duvidamos
da Igreja, com todas as suas brigas e misérias, olhemos então para esses homens
e mulheres [os santos] que se abriram para Deus, para esses homens em quem Deus
ganhou um rosto. Veremos como nos dão luz. Neles poderemos ver quem Deus
realmente é; deles poderemos receber a coragem de que precisamos para ser
homens. E também serão eles que nos hão de mostrar o verdadeiro rosto da
Igreja, porque neles podemos enxergar o que a Igreja é e para que existe, e que
frutos dá, apesar da miséria dos seus membros”.
É claro que há “miséria” nos membros da Igreja, também
no clero, também em cada um de nós. Somos homens e não anjos. Mas não nos
esqueçamos de que, como eu gosto de dizer, “Deus
trabalha com barro”. Por isso São Paulo reconhecia, com humildade: "Trazemos
este tesouro [as graças concedidas por Deus aos Apóstolos] em vasos de barro,
para que transpareça claramente que este poder extraordinário provém de Deus e
não de nós" (2 Cor 4, 7).
Às vezes, pode-se ter a impressão
de que a Igreja, pelos pecados dos seus membros, é como uma daquelas pobres
mulheres corroídas pela lepra, que a Madre Teresa de Calcutá assistia ao darem
à luz; e a Madre sorria ao ver que, daquele corpo desfeito, nascia uma criança
sadia, pura, bela. A Igreja é uma Mãe que, em seus membros, ao lado de
exemplos heróicos de santidade, ostenta muitas vezes a “lepra” do pecado, da
fraqueza humana, do escândalo; mas é a Mãe que Deus nos deu, e a doutrina e a
vida que nos transmite são e serão sempre puras, belas, divinas.
São Josemaría Escrivá não se
cansava de manifestar a sua inabalável fé na Igreja e na sua doutrina, a
despeito de todas as falhas humanas dos que a governam: “A ninguém passa despercebida a evidência dessa parte humana. A Igreja,
neste mundo, está composta por homens e para homens. Ora, falar de homem é
falar de liberdade, da possibilidade de grandezas e de coisas mesquinhas, de
heroísmos e de claudicações [...]. No corpo visível da Igreja – no
comportamento dos homens que a compõem aqui na terra –, aparecem misérias,
vacilações, traições. Mas a Igreja não se esgota aí nem se confunde com essas
condutas erradas [...]. Considerai, além disso, que mesmo que as claudicações
superassem numericamente as valentias, ficaria ainda esta realidade mística –
clara, inegável, embora não a percebamos com os sentidos – , que é o Corpo de
Cristo, o próprio Nosso Senhor, a ação do Espírito Santo, a presença amorosa do
Pai”.
Com esse espírito de fé, ao
contemplarmos as misérias dos homens, reforça-se ainda mais a nossa fé na
doutrina da Igreja, e vemos o seu Magistério autêntico como o rio cristalino de
que falávamos. Com São Josemaría, eu lhe diria que “se, por vezes, não soubermos descobrir o rosto formoso da Igreja,
limpemos nós os olhos; se notarmos que a sua voz não nos agrada, tiremos dos nossos
ouvidos a dureza que nos impede de ouvir, no seu tom, os assobios do Pastor
amoroso”.
– Escutei, calado, pelo interesse
do assunto. Mas tenho uma pergunta guardada desde faz tempo: por que diz tantas
vezes, enfaticamente, o adjetivo autêntico aplicado ao Magistério da Igreja?
Qual é o inautêntico?
– É precisamente o que constitui
o terceiro véu.
O terceiro véu é o da
desorientação doutrinal provocada em muitos ambientes católicos, entre amplos
setores do clero e dos religiosos, em comunidades e associações, escolas e
instituições católicas, pelas interpretações deturpadas, erradas, que foram
dadas aos ensinamentos do Concílio Vaticano II. Deturpações muitas vezes
apresentadas altivamente como “dogmas” modernos e indiscutíveis. Essas
interpretações e os que as ensinam é que constituem o “magistério inautêntico”.
Não concorda?
– Plenamente.
– É um fato muito conhecido que
os decênios posteriores ao Concílio Vaticano II – essa grande assembléia da
Igreja Católica, fonte de imensas esperanças – viram surgir, ao lado de frutos
esplêndidos de renovação, de santidade e de apostolado, uma onda crescente de
interpretações errôneas e aplicações inaceitáveis do Concílio, que semearam uma
deplorável confusão entre os fiéis católicos e produziram defecções e crises
dolorosas em amplos setores do clero e dos religiosos, e desorientação em
incontáveis leigos.
Como alguém dizia, de modo
rudemente expressivo, ao “autêntico
pós-Concílio” parecia querer sobrepor-se, estrangulando-o, um “falso pós-Concílio”. De fato, nesses
anos 60 e 70, a Igreja, em todos os seus níveis, parecia varrida por um furacão
de loucura anárquica, cujas seqüelas ainda se deixam sentir em bastantes
ambientes atuais. O Papa Paulo VI, representante e cabeça do Magistério
autêntico, que encerrara o Concílio em 08 de dezembro de 1965, mostrava-se
desolado.
Lamentava, com angústia visível,
essa “falsa e abusiva interpretação do
Concílio”, que considerava, alarmado, como uma verdadeira “ruptura” com a Igreja, como que uma
tentativa – dizia – de criação de uma “Igreja
nova, quase reinventada de dentro da sua constituição, tanto no dogma, como na
moral e no direito”. Diante desse panorama, entende-se por que, em dezembro
de 2005, ao comemorarem-se os quarenta anos de encerramento do Concílio
Vaticano II, o Papa Bento XVI quisesse fazer um balanço do pós-Concílio.
Sintetizava então a confusão
mencionada explicando que, após a assembléia conciliar, se enfrentaram duas
interpretações, duas “hermenêuticas”: a “hermenêutica
da descontinuidade e da ruptura” que, como uma histérica crise de
adolescência, queria modificar tudo na Igreja e anular toda a sua história:
arrancar a fé, a moral, a disciplina e a liturgia católicas das suas raízes
bimilenares, e transplantá-las para o atoleiro de ideologias incompatíveis com
a fé; e a “hermenêutica da renovação na
continuidade”, que corresponde ao espírito do Concílio, expresso por João
XXIII, o Papa que o convocou, e que declarou com todas as letras que o Concílio
queria “transmitir a doutrina pura e
íntegra sem atenuações nem desvios”.
“Onde quer que esta interpretação [da renovação na continuidade] tenha
sido a orientação que guiou a recepção do Concílio” – acrescentava Bento
XVI –, “cresceu uma nova vida e
amadureceram novos frutos. Quarenta anos depois do Concílio, podemos realçar
que o positivo é muito maior e mais vivo do que podia parecer na agitação por
volta do ano de 1968. Hoje vemos que a boa semente, mesmo desenvolvendo-se
lentamente, vai crescendo, e cresce também assim a nossa profunda gratidão pela
obra realizada pelo Concílio”.
Essa atitude de fidelidade é a
que adotaram, no meio das diatribes violentas, os teólogos fiéis a Jesus Cristo
e à sua Igreja. Dá alegria ver figuras de primeiríssima grandeza, como Henri de
Lubac, declarar:
“Infeliz de mim se, sob pretexto de abertura ao mundo ou de renovação me
puser a adorar, como dizia Newman, vagas e pretensiosas ficções do meu espírito
em lugar do Filho que vive para sempre na sua Igreja; se eu depositar a minha
confiança nas novidades meramente humanas, cujo calor momentâneo já não é senão
um cadáver prestes a desaparecer!... Possa eu compreender sempre que somente a
minha fidelidade à Tradição da Igreja (Tradição que não é um peso mas uma
força) será o dínamo dos meus empreendimentos audaciosos e fecundos!”
– Sim, é maravilhoso ver os
Papas, os santos e os bons teólogos defenderem sem hesitar a verdade, mas o
povo não sei se percebe isso... Dada a ignorância em que está, é tão fácil
iludi-lo!
– Mais uma vez vou-lhe dizer que
depende de nós, depende de nós que o povo veja a luz da autêntica doutrina. É
mais um apelo à formação pessoal e à catequese que, como víamos, para todo o
católico consciente é hoje um dever grave, uma responsabilidade grande. Assim o
recordava o Papa Bento XVI, em 10 de maio de 2007, no discurso dirigido aos jovens no Estádio do Pacaembu:
“Podeis ser protagonistas de uma sociedade nova se procurais pôr em
prática [...] um empenho pessoal de formação humana e espiritual de vital
importância. Um homem ou uma mulher despreparados para os desafios reais de uma
correta interpretação da vida cristã no seu meio ambiente será presa fácil de
todos os assaltos do materialismo e do laicismo, sempre mais atuantes em todos
os níveis [...]. Eu vos envio para a grande missão de evangelizar os jovens e
as jovens, que andam por este mundo errantes, como ovelhas sem pastor”.
Não sente vontade de dar graças a
Deus pela orientação tão segura do Papa? Temos motivos fortíssimos para
agradecer-lhe que, por cima das ondas tempestuosas de erros e deturpações, o
Magistério autêntico do Papa e dos bispos em comunhão com ele se tenha erguido
sempre e continue a erguer-se como um farol brilhante, fincado no alto
promontório da fé, a oferecer a todos os que navegam no mar encrespado do mundo
o referencial seguro que orienta e guia todos para o porto da salvação. Não é
um precioso motivo de otimismo? Não é uma prova da assistência indefectível de
Cristo e do Espírito Santo à sua Igreja?
– Sim, é realmente uma grande
graça de Deus.
Felizes os vossos olhos, porque vêem!
– Abra os olhos, dizia-lhe. Bem sabe que o que “abre” os
nossos olhos é a fé, e, agora que nos aproximamos do final da nossa conversa, é
bom repetir que “o teu otimismo será conseqüência necessária da tua fé”.
Gostaria de que, quando este diálogo terminar, pudéssemos despedir-nos com a
alma cheia daquela felicidade que Jesus deseja para todos nós, e que São Lucas
descreve assim, após narrar a primeira expedição apostólica dos discípulos:
“Naquela mesma hora, Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse:
“Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou graças porque escondeste estas coisas
aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te
porque assim foi do teu agrado” [...]. E voltando-se para os seus discípulos,
disse: "Ditosos os olhos que vêem o que vós vedes, pois vos digo: muitos
profetas e reis desejaram ver o que vós vedes, e não o viram; e ouvir o que vós
ouvis, e não o ouviram” (Lc 10, 21-24).
Todo aquele que abre com
simplicidade a alma à fé, a Cristo e à sua Igreja, alcança essa alegria e
torna-se um coração otimista, por mais que o mundo continue a estar cheio de
problemas. Penso que pode ser um bom fecho desta reflexão apresentar-lhe o
exemplo de dois homens que, tendo vivido num ambiente de turbulências
ideológicas contrárias à Igreja e ao seu Magistério, souberam ter o coração
puro dos humildes, e, como os pastores de Belém, viram e alegraram-se (cfr. Lc
2, 20).
Descobriu o amor ignorado
André Frossard, jornalista
francês ateu, aos 21 anos foi surpreendido repentinamente pela alegria da fé
católica, pela graça inesperada, nunca sonhada nem desejada por ele, da
conversão. “Como esquecer” –
confidenciaria – “o dia em que
subitamente se descobre o amor ignorado, Deus, pelo qual se ama e se respira,
em que se aprende que o homem não está só?”
Filho daquele que foi o primeiro
Secretário Geral do Partido Comunista francês, descendente de famílias judaicas
e protestantes de há muito afastadas da religião, viveu sempre num ambiente de
ateísmo “pacífico”, no qual Deus era mais
ignorado, como algo de superado e inútil, do que combatido. “Nenhuma intuição me era mais estranha que a
Igreja Católica e, se a palavra não encerrasse um matiz de hostilidade ativa –
coisa que não é do meu feitio –, diria que me era antipática. Era como a Lua, o
planeta Marte: “Voltaire nunca me falara bem dela, e desde os meus doze anos eu
não lia senão a ele e a Rousseau”.
Quer dizer que, da religião
católica, só conhecia os mesmos ataques e troças que hoje em dia inúmeros
professores de cursinho e de faculdades de “humanas”
enfiam goela abaixo nos seus alunos. Mas Deus é mais forte que Voltaire e Karl
Marx, e quis apanhá-lo nas suas redes de amor. “Como pôde acontecer que, entrando com indiferença numa igreja [apenas
para aguardar um amigo] – ateu plácido e isento de inquietações –, esse rapaz
tenha saído uns minutos depois gritando de alegria no seu íntimo que a verdade
era tão bela, de uma beleza que às vezes a torna difícil de crer [...],
impaciente por partilhar a sua felicidade com toda a terra [...], convencido
enfim de que neste mundo não há tarefa mais digna nem mais doce nem mais
necessária e urgente do que louvar a Deus, louvá-lo por ser, e por ser Quem é!”
Entrou numa capela para se
resguardar da intempérie, enquanto aguardava um amigo, como poderia ter entrado
num bar ou numa tabacaria. Entrou ateu e, instantes depois, saiu católico
convicto, com o radar da alma orientado sem hesitações para o núcleo, a luz
central de todas as verdades que a Igreja Católica ensina como reveladas por
Deus, luzes que lhe foram infundidas pelo Espírito Santo num segundo, sem que
nunca soubesse explicar como nem por quê.
Depois, como é evidente, dedicou
anos e anos a estudá-las, a aprofundar nelas, e a comprovar que a doutrina da
Igreja combinava perfeitamente com a intuição inicial, que Deus tinha colocado
no seu coração. Talvez o mais impressionante da sua conversão, que foi um
deslumbramento e uma alegria crescente até o fim da vida, foi a sua descoberta
da Igreja Católica. Falando da sua fé na Igreja, que o envolveu em um amor
terno, num cálido aconchego familiar, escrevia:
“Eu não lhe dei a minha adesão; fui levado a ela como uma criança que se
leva pela mão à escola, ou que se leva à casa da família que ela ainda não
conhecia. Esta sensação de conivência entre a Igreja e o divino foi tão forte,
que [...] nunca tive sequer a tentação de proferir o mínimo esboço de juízo
sobre a Igreja: o que ela tem de santidade no invisível impressionou-me, o que
tem de fraqueza e imperfeições aqui em baixo tranqüiliza-me e faz-me senti-la
mais perto de mim, pois também eu não sou perfeito [...]. Ela pareceu-me bela
desde o primeiro dia”.
Recordando as leituras atéias e
anticlericais que o tinham alimentado até à idade madura, cheias de investidas
e injúrias contra a Igreja, prosseguia: “Não,
os meus livros não me tinham dito que a Igreja me salvou de todos os desmandos
a que estamos entregues sem defesa desde que ela deixou de ser ouvida ou desde
que se calou; que as suas promessas de eternidade fizeram de cada um de nós uma
pessoa insubstituível, antes que a nossa renúncia ao infinito fizesse de nós um
átomo efêmero e indefinidamente renovável da mucosa ou da espinha do grande
animal etático; que nos seus cemitérios guarda, como um tesouro, o pó
impalpável de que surgirão um dia os corpos ressuscitados; que as únicas
janelas que alguma vez se abriram na muralha da noite que nos envolve são as
dos seus dogmas, e que as lajes gastas pelas lágrimas das suas catedrais são o
único caminho que alguma vez se abriu para a alegria”.
– Estou comovido – diz-me o bom
interlocutor –, e estou agradecido. São maravilhas que mereceriam uma
divulgação muito maior! Seja louvada esta grande Mãe.
- Vamos, então, à segunda
testemunha dessa alegria inefável que acompanha a fé na Igreja e gera um otimismo
invencível: o teólogo francês Henri de Lubac, que antes citava.
Um dos maiores
teólogos do século XX, perito do Concílio Vaticano II, julgado por muitos,
durante anos, como um perigoso “progressista”,
maltratado até por algumas autoridades, clérigos cheios de boa fé, mas
inconscientemente encarquilhados e habituados a ver fantasmas, Lubac manteve
sempre uma fidelidade exemplar à Igreja; uma fidelidade comovente quando se
pensa que outros teólogos contemporâneos, por dificuldades ou incompreensões
bem menores, se revoltaram magoados, e acabaram por encastelar-se em posições
cada vez mais radicais e agressivas, que os puseram para fora da fé e do lar
materno da Igreja.
Tendo isso em conta, ganha um
valor inestimável o testemunho que insiro a seguir, contido no seu livro Meditations sur l’Église: “O mistério da Igreja e da sua ação benfazeja
sempre fica além do que nós dele vivemos praticamente. Só conseguimos
apropriar-nos de uma fraca porção das riquezas que a nossa Mãe nos dispensa.
Pelo menos, todo o católico, se não é um filho ingrato, canta no seu coração o
hino da gratidão ao qual um poeta dos nossos dias deu a sua forma verbal”.
Todo o católico clama, com Paul
Claudel:
“Seja louvada para sempre esta grande Mãe majestosa, sobre cujos joelhos
eu aprendi tudo» («Louée soit à jamais cette grande mère majestueuse aux genoux
de qui j’ai tout appris!»). Sim, que seja louvada esta grande Mãe sobre
cujos joelhos nós certamente temos aprendido tudo e tudo continuaremos a aprender todos os dias. É ela que, em cada dia,
nos ensina a Lei de Cristo, nos põe na mão o seu Evangelho e nos ajuda a
decifrá-lo. O que seria desse pequeno livro, ou em que estado teria ele chegado
até nós se, por um impossível, não tivesse sido redigido, e depois conservado e
comentado, dentro da grande comunidade católica? Que deformações não teria
sofrido, que mutilações no seu texto e na sua compreensão? [A Igreja] é sempre
esse Paraíso, no meio do qual o Evangelho é custodiado como uma fonte pura e se
expande nos seus quatro rios (cfr. Gên 2, 11) pela terra inteira. Graças a
ela, de geração em geração, o Evangelho é proposto a todos, tanto aos pequenos
como aos grandes deste mundo; e quando ele não produz em nós os seus frutos de
vida, a falha é toda nossa”.
“Louvada seja mais uma vez esta grande Mãe pelo Mistério divino que nos
comunica, introduzindo-nos nele pela dupla porta, continuamente aberta, da sua
Doutrina e da sua Liturgia! Seja louvada pelos braseiros de vida religiosa que
ela suscita, que ela protege, cuja chama ela alimenta! Louvada seja pelo
universo interior que nos descobre e nos faz explorar, guiados pela sua mão!
Louvada seja pelo desejo e pela esperança que faz arder em nós! Louvada seja
também por todas as ilusões enganosas que desmascara e dissipa em nós para que
a nossa adoração seja pura! Louvada seja esta grande Mãe!”
“Louvada sejas, Mãe do belo amor, do temor salutar, da ciência divina e
da santa esperança! Sem ti, os nossos pensamentos ficam dispersos e flutuantes;
tu os ligas num feixe robusto; tu dissipas as trevas onde cada um de nós, sem
reparar, se extravia, onde se desespera, onde tristemente amesquinha o romance
do infinito à sua pobre medida. Sem nos desencorajares de tarefa alguma, tu nos
guardas dos mitos enganadores, tu nos poupas aos desvios e às decepções de
todas as igrejas feitas pela mão do homem...”
“Por ti, enfim, nós temos nele – em Jesus – a esperança da vida. A tua
lembrança é mais doce do que o mel, e quem te escuta jamais conhecerá a
confusão. Mãe santa, Mãe única, Mãe imaculada! Ó grande Mãe, santa Igreja, Eva
verdadeira, a única verdadeira «Mãe dos viventes»”.
– Que achou?
– Fantástico! Foi tão bom lembrar
estas coisas! Sim, concordo. A luz de Deus, a luz de Cristo, a luz da Igreja
são incomparavelmente maiores e mais poderosas que todas as trevas de Mordor.
Há motivos, há motivos poderosíssimos para termos otimismo, por mais caótico ou
perdido que o mundo nos pareça.
– Então, levemos a sério,
totalmente a sério, como um recado dirigido pessoalmente a cada um de nós, o
que Bento XVI dizia em Aparecida, em 13 de maio de 2007:
“O discípulo [de Cristo], fundamentado na rocha da Palavra de Deus,
sente-se impulsionado a levar a Boa Nova da salvação aos seus irmãos.
Discipulado e missão são como os dois lados de uma mesma moeda: quando o
discípulo está enamorado de Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só
Ele nos salva (cfr. At 4, 12). Com efeito, o discípulo sabe que sem Cristo não
há luz, não há esperança, não há amor, não há futuro”.
Vamos, pois, pedir a Deus, por
intercessão da Mãe da Igreja, Maria, que nos ajude a assumir um otimismo
operante, vibrante, ativo e criativo, a serviço da fé e da fidelidade dos
nossos irmãos e, por isso mesmo, da salvação do mundo.
Que nos ajude a nunca esquecer
que “muito” depende de nós. “De que tu e eu nos portemos como Deus quer –
não o esqueças – dependem muitas coisas grandes”.
(04.11.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 09
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
UMA LUZ NAS TREVAS: O MAGISTÉRIO DA IGREJA
“Como o Pai me enviou, assim
eu vos envio”
– Vamos falar agora do segundo rio cristalino de luz e de vida a que
antes me referia: o Magistério da Igreja. Ao lado do testemunho dos santos, o
Magistério autêntico da Igreja é outro facho da luz e do calor da vida que
Cristo, mediante a ação do Espírito Santo, mantém aceso sem cessar no mundo,
como um farol brilhante – dizíamos acima –, como o único farol que guia com
segurança para o porto de Deus, e que nunca deixou nem deixará de iluminar a
humanidade.
– O senhor diz isso com tanta convicção, com tanta fé...
– Mas, escute... Você também tem fé! Por isso sofre e se amargura com a
situação do mundo! É justamente disso que estamos falando o tempo todo. Eu
gostaria muito de poder ajudá-lo a desempoeirar essa fé e a torná-la, como
deveria ser, um farol erguido nos cumes e uma fonte de otimismo.
– Eu lhe agradeço. Bem que gostaria...
– Muito bem. Vamos lá. Você, que conhece o Evangelho, deve lembrar-se de
que, na Última Ceia, quando Jesus se despedia dos Apóstolos, lhes disse, com palavras
cheias de ternura: “Não vos deixarei
órfãos. Voltarei a vós [...]. Agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra
vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria”
(Jo 14, 18 e 16, 22). E pouco antes de subir ao Céu prometeu-lhes: “Eis que estou convoco todos os dias, até o
fim do mundo” (Mt 28, 20). Como é que é essa presença de Cristo?
– Bem. Eu sei que Jesus ressuscitou, está vivo, e está presente,
sobretudo, na Eucaristia...
– Muito certo. Na Eucaristia está Cristo, verdadeira, real e
substancialmente presente, com seu corpo, seu sangue, sua alma e sua divindade.
Mas há outras formas de presença de Cristo no mundo – “Estou convosco todos os dias” –, uma das quais agora nos pode
ajudar a ganhar otimismo: concretamente a sua presença na Igreja, que Ele
fundou para que fosse a continuadora, a atualizadora, da sua obra redentora no
mundo.
– Tudo isso é muito bonito, mas parece-me um pouco complicado...
– Vamos ver se o descomplicamos, ouvindo palavras simples que Jesus nos
diz. Gostaria de começar evocando um momento marcante da vida de Cristo. No
próprio dia da ressurreição, já completada a obra da redenção, Jesus apareceu à
tarde no Cenáculo e disse aos Apóstolos lá reunidos: “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós” (Jo 20, 21).
Você calibra o alcance dessas palavras? Preste atenção e repare que
Jesus quis fazer dos seus Apóstolos nada menos que os responsáveis e
continuadores da sua missão salvadora..., seus outros “Eu”! Faz deles “instrumentos
vivos” de si mesmo para continuarem a guiar os homens como Ele, o Bom
Pastor, e para levá-los – como Ele e com Ele – à luz da verdade, às fontes da
santidade e, enfim, à vida eterna. Para que não houvesse dúvidas sobre esse
plano divino, em outro momento o Senhor disse aos Apóstolos: “Quem vos ouve, é a mim que ouve; e quem vos
rejeita, é a mim que rejeita; e quem me rejeita, rejeita Aquele que me enviou”
(Lc 10, 16).
– Quem a vós ouve, é a mim que ouve. Isso é muito forte, tendo em conta
o abismo que há entre o Filho de Deus e os homens da Igreja, carregados de
limitações e defeitos...!
– Claro que é forte! É fortíssimo, e não daria para acreditar, se Cristo
não o afirmasse tão categoricamente. Mas espere um pouco, há coisas ainda mais
fortes. Você já leu no Evangelho o diálogo de Jesus com os Apóstolos, nos
arredores da cidade de Cesaréia de Filipe?
– Francamente, não me lembro.
Promessas de Cristo
– Pois olhe, é um episódio de uma
importância decisiva para a fé cristã. É Mateus quem nos descreve essa cena com
detalhe. Afinal, ele esteve presente (Mt 16, 13-20). Chegando àquele lugar,
Jesus perguntou de repente aos Apóstolos o que era que as pessoas andavam
dizendo acerca d’Ele. As respostas foram do arco da velha..., como hoje. Então
Jesus perguntou-lhes, diretamente:
– “E vocês? Vocês quem dizem que eu sou?”
Aí, Simão Pedro levantou a voz e
disse:
– “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!”
Jesus então disse-lhe:
– “Feliz és Simão, filho de
Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que
está nos céus”.
Você entende, dá-se conta? Movido
por Deus, Pedro revela pela primeira vez, sem reparar bem no que diz – pois não
fala por conta própria, mas movido por Deus –, a verdadeira identidade de
Jesus. Faz-se um clarão. Mesmo que os Apóstolos não acabem de entender,
percebem que estão numa hora de Deus, num momento sagrado. Os corações se
apertam. E é então que Cristo pronuncia uma das promessas mais solenes que fez
em toda a sua vida. Dirigindo-se pessoalmente a Pedro, diz-lhe:
– “E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha
Igreja; e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.
– Dessas palavras, sim, eu me
lembrava. E sei que essa promessa feita a Pedro se estende a todos os seus
sucessores, os Papas.
– Exatamente. Mas você prestou
atenção à carga tremenda que encerram as expressões usadas por Cristo?
Primeiro, fala da Igreja como de uma obra sua, construção pessoal do Filho de
Deus (edificarei a minha Igreja), ou seja, diz que a Igreja não é invenção ou
organização humana, mas obra de Deus. Segundo, reforçando a afirmação anterior,
chama à Igreja minha, é d’Ele, não “propriedade”
dos homens nem fruto da sua capacidade organizativa. Terceiro, promete, com a
sua autoridade divina, que nada derrubará a Igreja nem a impedirá de cumprir a
sua missão salvadora no mundo (as portas do inferno não prevalecerão contra
ela).
É o “selo de garantia” – garantia divina! – que Cristo dá a Pedro, aos
Apóstolos e aos seus sucessores: o Papa e o conjunto dos bispos unidos a ele.
Agora vejamos o óbvio (que alguém já disse que é o mais difícil de se
enxergar). É evidente que essa garantia “carimba”
estas outras palavras de Jesus: "Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho a
toda a criatura" (Mc 16, 15).
Ou as palavras análogas
transmitidas por São Mateus: “Toda a
autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações
[...]. Ensinai- as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco
todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20). Que diz Jesus? Que
estará dando aos Apóstolos e aos seus sucessores a garantia, o aval sobre a
verdade daquilo que eles, unânimes, ensinem com autoridade até o fim do mundo.
Nada mais e nada menos! Aí está o “Magistério da Igreja”, é isso!
Com palavras simples, o Catecismo
da Igreja Católica ensina: “O ofício de
interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita [na Sagrada Escritura] ou
transmitida, foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja
autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo, isto é, foi confiada aos bispos
em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma”.
Esta é a Igreja que São Paulo,
inspirado pelo Espírito Santo, chamava casa de Deus, Igreja do Deus vivo,
coluna e fundamento da verdade (1 Tim 3, 15). “Ele vos levará à verdade completa” (Jo 16, 13).
– Em toda esta exposição, ainda
que baseada inteiramente em palavras da Sagrada Escritura, você não nota que
está faltando algo de essencial?
– Francamente, agora não atino no
que possa ser.
– E o Espírito Santo? Começamos
esta parte falando d’Ele, dos rios cristalinos das graças do Espírito Santo, e
parece que o esquecemos.
– É verdade. E então?
– Então..., uma coisa muito
simples. O Catecismo da Igreja (ns. 689- 690) ensina que toda a obra da
Redenção é uma missão conjunta do Filho e do Espírito Santo, enviados pelo Pai
ao mundo para salvá-lo. É fácil verificar: “O
Filho encarnou-se no seio de Maria por obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20);
começa a sua pregação ungido na sua humanidade pelo Espírito Santo (Lc 3, 22 e
4, 18); diz a Nicodemos que veio trazer uma nova vida ao mundo, e que poderemos
nascer para essa vida nova pela ação do Espírito Santo (Jo 3, 6); ofereceu-se
na Cruz, como vítima pelos pecados, impelido pelo amor que o Espírito Santo lhe
insuflava na alma (cfr. Hebr 9, 14); e, enfim, na despedida dos discípulos
antes da ascensão, diz-lhes: “Eu vos
mandarei o Prometido de meu Pai [o Espírito Santo]; entretanto, permanecei na
cidade, até que sejais revestidos da força do alto” (Lc 24, 49).
Só depois disso, da vinda do
Espírito Santo no dia de Pentecostes, é que a Igreja começa a cumprir a sua
missão; e os Atos dos Apóstolos – história dos primeiros passos do Cristianismo
– mostram, em quase todas as páginas, que a atuação da Igreja é inspirada,
sustentada e movida constantemente pelo Espírito Santo. Recordando estas
verdades, é exato dizer que Cristo age sempre “pelo Espírito Santo”.
“Estou convosco” – diz – e essa sua presença vai acompanhada pelo
dom e pela ação do Espírito Santo: “Eu
rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco”
(Jo 14, 16). “Ide, ensinai, eu estou
convosco” – diz –, Ele que antes anunciara: “Mas o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á
todas as coisas e recordar-vos-á tudo o que vos tenho dito (Jo 14, 26). Quando vier o Paráclito, o Espírito da
verdade, ele vos guiará para a verdade completa” (Jo 16, 13). Não dá para
entender melhor agora muitas dessas palavras de Cristo que antes já
mencionávamos?
– Dá, sim. Tudo fica bem claro.
– Então já sabe o que é o
Magistério da Igreja: é aquilo que a Igreja ensina, com autoridade, sobre as
verdades da fé e da moral, assistida por Cristo (Cabeça da Igreja, que é seu
Corpo: cfr. Rom 12, 5; Ef 4, 15), mediante a ação do Espírito Santo (que os
antigos chamavam “a alma da Igreja”).
Só queria acrescentar mais um esclarecimento. O ensinamento da Igreja não está
fossilizado, não se limita a repetir fórmulas congeladas. A revelação da
Verdade, feita por Deus, que alcançou a sua plenitude com o exemplo e a palavra
de Cristo, é um tesouro que nunca se esgota.
A Igreja, sem trocar por outro
esse tesouro nem deturpá-lo, mantendo-o intacto, vai fazendo como aquele
escriba de uma parábola evangélica que, do seu tesouro, vai tirando coisas
novas e velhas (Mt 13, 52). Sempre o Espírito Santo move o Magistério da Igreja
a aprofundar nas riquezas insondáveis, inesgotáveis (cfr. Rom 11, 33), que
Cristo lhe pôs nas mãos como um depósito (cfr. 1 Tim 5, 20), um depósito que a
Igreja tem a missão de guardar, fazer frutificar e distribuir aos homens,
oferecendo-lhes assim a autêntica resposta aos problemas e necessidades de cada
época.
Este é o sentido destas outras
palavras de Cristo: “O Espírito Santo vos
guiará para a verdade completa” (Jo 16, 13). “A Igreja” – ensina o
Catecismo – “não tem outra luz senão a de
Cristo. Ela é, segundo uma imagem cara aos Padres da Igreja, comparável à lua,
cuja luz toda é reflexo do sol”. E ainda: “A missão da Igreja não é acrescentada à de Cristo e do Espírito Santo
[...]. Ela é enviada para anunciar e testemunhar, atualizar e difundir o
mistério da comunhão com a Santíssima Trindade [...], que consiste em fazer os
homens participarem da comunhão que existe entre o Pai e o Filho no seu
Espírito de amor”.
“Eu vim para que os que não vêem, vejam”
– Se todos entendessem isto –
intervém o leitor –, seria uma maravilha. Mas, infelizmente, o senhor já sabe
que um dos dramas do mundo atual é a desconfiança, se não a rejeição, por parte
de muitos católicos, jovens e velhos, dos ensinamentos da Igreja. Consideram-se
e querem ser católicos, são capazes de vibrar de entusiasmo pelo Papa – vimos
isso na sua recente visita ao Brasil –, milhões de jovens cruzam o mundo para
participar, com alegria, dos encontros mundiais do Papa com a juventude...,
mas, na hora da verdade, que é a vida real, poucos levam a sério a doutrina da
Igreja, o seu Magistério; e isso, tanto em questões de fé e obediência (como
valorizar a Missa e o dever de participar dela aos domingos e dias de guarda, o
sentido divino da confissão, etc.), como em questões de comportamento moral
(por exemplo, de moral sexual).
– Não leu ou ouviu dizer que a
grande tentação diabólica, nos tempos modernos, é a de um cristianismo sem
Igreja?
– Não ouvi isso, mas basta abrir
os olhos para vê-lo...
– E saberia dizer por que
acontece isso?
- Acho que alguma coisa
percebo..., mas, sinceramente, prefiro deixar a palavra com o senhor.
– De acordo. Olhe, para lhe dar
essa resposta, não preciso agora de improvisar. É um assunto sobre o qual tenho
refletido desde há anos, tenho trocado impressões com colegas e dado bastantes
palestras e conferências. Por isso, não hesito em assinalar três causas
principais dessa desconexão entre sentimentos, pensamento e vida prática que se
observa em muitos católicos que julgam amar a Igreja (ou, pelo menos, admiram e
amam o Papa). Vamos chamá-las de “três véus” que tapam os olhos e impedem ou
dificultam a visão da fé.
(Continua... Tenha paciência!)
(03.11.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 08
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
CARDEAL VAN THUÂN: A VITÓRIA DA
ESPERANÇA
O prisioneiro de Cristo
- Na encíclica sobre a esperança
(Spe salvi), Bento XVI menciona com destaque o exemplo do cardeal vietnamita
François Xavier Ngûyen Van Thuân: “Sobre
os seus treze anos de prisão – escreve –, nove dos quais em isolamento, o
inesquecível cardeal Nguyên Van Thuân deixou-nos um livro precioso: “O caminho
da esperança”. Durante treze anos de prisão, numa situação de desespero
aparentemente total, a escuta de Deus, o poder falar-lhe, tornou-se para ele
uma força crescente de esperança que, depois da sua libertação, lhe permitiu
ser para os homens de todo o mundo uma testemunha da esperança, daquela grande
esperança que não declina, mesmo nas noites de solidão”. Conhece a história
desse bispo perseguido, preso e torturado pelo governo marxista-leninista do
Vietnã?
– Ouvi falar, mas não conheço detalhes.
– Não é o momento de traçar uma
biografia, mas de meditar no seu exemplo, pois, neste mundo escuro, é uma luz
que brilha nas trevas. Baste, para isso, recordar que, sendo arcebispo
coadjutor de Saigon, quando os comunistas tomaram essa cidade, capital do país,
foi preso pelas novas autoridades. Era o dia da Assunção de Nossa Senhora, 15
de agosto de 1975. Essa prisão iria prolongar-se por treze anos, nove dos quais
– como lembra o Papa – numa cela minúscula, em completo isolamento.
A tortura a que foi submetido era
de molde a desmontar psiquicamente qualquer pessoa, a destruí-la moralmente.
Ele mesmo a descreveu como “uma tortura
mental, no vazio absoluto, sem trabalho, caminhando dentro da cela desde a
manhã até às nove e meia da noite..., no limite da loucura”, e revela
alguns detalhes estarrecedores:
“Enquanto me encontro na prisão de Phú-Khánh, em uma cela sem janela,
com um calor asfixiante, sufocante, sinto a minha lucidez diminuir pouco a
pouco... Umas vezes, a luz continua acesa noite e dia; outras, é sempre
escuridão. Há tanta umidade que os fungos crescem sobre a minha cama. Na
escuridão vi um buraco na base da parede, para escorrer a água. Por isso passei
mais de cem dias agachado com o nariz colado àquele buraco para respirar. Quando
chove, sobe o nível da água; pequenos insetos, pequenas rãs, minhocas e
centopéias vêm do lado de fora. Deixo-os entrar, pois não tenho mais forças
para afastá-los. Escolher Deus!... Deus me quer aqui!”
– Meu Deus! A que ponto chegam as
ideologias do mal!
– Está certo. Mas com maior razão
podemos dizer: a que ponto chegam a fé, a esperança, o amor e a força da graça
divina! Porque, do meio desses horrores, surgiu – amadurecido, grande! – um
homem santo (seu processo de canonização já está em andamento), portador da
alegria e da esperança de Deus para este mundo que, no dizer do cardeal
Ratzinger, “separando-se de Deus, é como
um planeta fora do seu campo gravitacional, vagando sem rumo pelo nada”.
Um rochedo no mar tempestuoso
- A Bíblia fala diversas vezes de
Deus como do meu rochedo, e Jesus compara o homem de fé àquele que construiu a
sua casa sobre rocha, de modo que quando caiu a chuva, vieram as enchentes,
sopraram os ventos e investiram contra aquela casa, ela não caiu, porque estava
edificada sobre rocha (Mt 7, 24-25). Assim fizeram os santos, e por isso
desnortearam as tiranias do mundo, todos os poderes do mal; na sua fraqueza e
na aparente derrota, mostraram-se mais fortes do que eles.
Desse modo venceram o mundo (cfr.
Jo 16, 33) Em 20 de setembro de 2002, João Paulo II celebrou as exéquias do
cardeal Van Thuân, recém-falecido em Roma. Na homilia, lembrava que, durante o
ano 2000, lhe pedira que preparasse as meditações para o retiro da Cúria
romana, a que o Papa assistiria, e ele escolheu como tema “Testemunhas da Esperança”.
“Espera em Deus!" – dizia o Papa,
nas exéquias – "Foi com esse convite a confiar no Senhor que o estimado
Purpurado deu início às meditações do retiro [...]. Ele narrava que,
precisamente no cárcere, tinha compreendido que o fundamento da vida cristã
consiste em «escolher unicamente a Deus», abandonando-se de maneira integral
nas suas mãos paternas".
“O seu segredo” – explicava ainda o Papa – “era uma confiança indômita em Deus, alimentada pela oração e pelo
sofrimento aceito com amor. Na prisão, celebrava cada dia a Eucaristia com três
gotas de vinho [conseguido da família em conceito de «medicamento»] e uma gota
de água na palma da mão. Esse era o seu altar, a sua catedral. O Corpo de
Cristo era o seu «remédio». Por isso, narrava com emoção: «Todas as vezes eu
tinha a oportunidade de estender as minhas mãos e de me cravar na Cruz
juntamente com Jesus, de beber com Ele o cálice mais amargo. Em cada dia,
recitando as palavras da Consagração, confirmava com todo o meu coração e com toda
a minha alma um novo pacto, uma aliança eterna entre mim e Jesus, mediante o
seu sangue que se misturava ao meu». «Eram – afirmava D. Van Thuân – as mais
belas Missas da minha vida»”. Ele mesmo escreveu, no livro que reúne as
meditações do seu retiro: “Em todos os tempos, e de modo especial em tempos de
perseguição, a Eucaristia foi o segredo da vida dos cristãos: o alimento das
testemunhas, o pão da esperança”.
A grandeza do amor vence o ódio
Nesse retiro pregado à Cúria
romana, o cardeal Van Thuân comentava a grandeza e a beleza do amor de Cristo:
“O amor de Deus que Jesus, ao dar-nos o Espírito Santo, semeou nos
nossos corações é um amor completamente gratuito. Ele – esse amor posto no
nosso coração – ama sem interesse, sem esperar nada em troca. Não ama somente
porque é amado ou por outros motivos, embora bons, como o de corresponder à
amizade humana. Não fica vendo se o outro é amigo ou hostil. É o primeiro a
amar, toma a iniciativa” (cfr. Rom 5, 8; 1 Jo 4, 19).
Esse amor é o que o arcebispo Van
Thuân conseguiu praticar heroicamente, com a graça de Deus, nos seus treze anos
de cativeiro. “Para fazer resplandecer o
amor que vem de Deus – dizia –, devemos amar a todos, sem excluir ninguém
[...]. Todos! Não um «todos» ideal, a massa das pessoas do mundo, mas um
«todos» concreto”. Num dos relatos do seu cativeiro, conta que, colocado no
isolamento e vigiado por dois guardas, não conseguia que nenhum conversasse com
ele. Só diziam “sim” ou “não”. Que devia fazer?
“É muito triste; quero ser gentil, cortês com eles, mas é impossível,
evitam falar comigo. Não tenho nada para lhes dar de presente: sou prisioneiro,
todas as roupas são marcadas com grandes letras «cai-tao», isto é, «campo de
reeducação». Que devo fazer? “Uma noite, veio-me um pensamento: «François, tu
és ainda muito rico. Tens o amor de Cristo no teu coração. Ama-os como Jesus te
ama»”.
No dia seguinte, comecei a
amá-los, a amar Jesus neles, sorrindo, trocando palavras gentis. Comecei a
contar-lhes histórias das minhas viagens ao exterior, como vivem os povos na
América, Canadá, Japão, Filipinas, Cingapura, França, Alemanha..., a economia,
a liberdade, a tecnologia. Isso estimulou a curiosidade dos guardas e
incitou-os a perguntar-me muitas outras coisas. Pouco a pouco nos tornamos
amigos. Queriam aprender línguas estrangeiras, francês, inglês... Os meus
guardas tornavam-se meus alunos! A atmosfera da prisão mudou muito.
A qualidade do nosso
relacionamento melhorou muito. Até com os chefes da polícia. Quando viram a
sinceridade do meu relacionamento com os guardas, não só pediram para continuar
a ajudá-los no estudo de línguas estrangeiras, mas ainda me mandaram novos “estudantes”. Isso explica o pasmo com
que um dia o carcereiro lhe perguntou:
– “O senhor nos ama verdadeiramente?”
Vale a pena transcrever todo o
diálogo:
– “Sim, eu os amo sinceramente”.
– “Mas nós o tivemos preso durante tantos anos, sem julgá-lo, sem
condená-lo, e o senhor nos ama? É impossível, isso não é verdade!”
– “Estive muitos anos com vocês. Você viu que isso é verdade”.
– “Quando for libertado, não vai mandar os seus fiéis incendiar as nossas
casas e matar as nossas famílias?”
– “Não. Mesmo que você queira matar-me, eu o amo”.
– “Mas, por quê?”
– “Porque Jesus me ensinou a amar a todos, mesmo aos inimigos. Se eu não o
fizer, não sou digno de ser chamado cristão”.
– “É muito bonito, mas difícil de compreender...”
Tocado pelo exemplo da fé e da piedade
desse homem de Deus, outro militante comunista, que tinha sido escalado para
espioná-lo e depois se tornou seu amigo, teve um gesto que comove.
“Antes da libertação me prometeu: “A minha casa fica a três quilômetros
do santuário de Nossa Senhora de Lavang. Irei até lá rezar por você”. Acreditei
na sua amizade, mas duvidei que um comunista fosse rezar a Nossa Senhora. Eis
que um dia, talvez seis anos depois, enquanto eu estava no isolamento, recebi
uma carta dele! Escrevia: “Caro amigo, prometi ir rezar a Nossa Senhora de
Lavang por você. Faço-o todos os domingos, se não chove. Pego minha bicicleta
quando escuto tocar o sino. A basílica foi inteiramente destruída pelo
bombardeio; então vou ao monumento da aparição que permanece ainda intacto.
Rezo por você assim: “Senhora, não sou cristão, não conheço as orações, peço-te
dar ao senhor Thuân o que ele deseja”. Fiquei comovido no profundo do meu
coração. Certamente Nossa Senhora o escutará”.
Com toda a simplicidade, esse
autêntico mártir cristão, pôde sintetizar a história das suas perseguições com
estas breves palavras, que João Paulo II fez questão de citar na homilia das
exéquias: “No abismo dos meus
sofrimentos, jamais cessei de amar a todos, sem excluir ninguém do meu coração”.
E, no seu testamento, corroborava: “Parto
com serenidade e não conservo ódio por ninguém”. Este é o espírito de
Cristo. Esta é a graça do Espírito Santo, este o rio de águas cristalinas que
fecunda de amor o mundo e o impede de se perder. Esta é a vitória que vence o
mundo (1 Jo 5, 4).
– Reconheço que um homem assim é
um clarão de luz, cem vezes superior às nuvens negras do mal do mundo, e que
ele sozinho tem mais “força” que o
mundo inteiro, com todas as suas ideologias...
– Sim, e digo-lhe que agora me
parece ouvir de novo as palavras de São Josemaría que, perante as “nuvens” de que você falava e que
comentamos tão amplamente no início desta nossa conversa, nos repete: “Estas crises mundiais são crises de
santos...” E nos incentiva: “Ilumina
com o resplendor da tua fé e do teu amor. Apaga, com a tua vida de apóstolo, o
rastro viscoso e sujo que deixaram os semeadores impuros do ódio”. Não acha
que isso nos interpela, de um modo muito pessoal...? Que não “podemos” deixar de levá-lo muito a sério
e perguntar-nos: “O que Deus espera de
mim?”
– É uma perspectiva em que não
tinha pensado como devia. É grande, mas perturbadora...
– Pois esta é uma das conclusões
práticas, pessoais, que devemos tirar da meditação dos males do mundo. Deus
precisa de nós, mas precisa que nos decidamos a ser santos, a lutar por ser
santos. Especialmente no mundo atual, os cristãos
conscientes não podem conformar-se com a mediocridade, com uma bondade
raquítica e morna. É preciso apontar alto. “É
hora” – dizia João Paulo II – “de
propor de novo a todos, com convicção, a «medida alta» da vida cristã ordinária”,
e Bento XVI lembrava-nos, na homilia da Missa de canonização de Frei Galvão: “Só dos santos, só de Deus provém a
verdadeira revolução, a mudança decisiva do mundo. Este é o convite que faço
hoje a todos vós, do primeiro ao último, nesta imensa Eucaristia. Deus disse:
Sede santos, como eu sou santo (Lev 11, 44)”.
Tomemos, pois, boa nota
disso: aqui está a nossa responsabilidade. Fugir desse ideal, desse empenho por
ser autênticos amigos de Cristo, por procurá-lo, imitá-lo, amá-lo e servi-lo,
seria uma traição à nossa vocação cristã, e às exigências do nosso tempo.
(Continua... Tenha paciência!)
uma exortação do Papa Francisco aos jovens e ao Povo de Deus (2019):
"Aproveito as oportunidades que me surgem cada dia
para realizar ações ordinárias de maneira extraordinária" (148).
(02.11.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 07
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
SÃO JOSEMARÍA ESCRIVÁ:
AMAR O MUNDO APAIXONADAMENTE
AMAR O MUNDO APAIXONADAMENTE
Santos no meio do mundo
– O segundo homem de Deus, cujo
exemplo acho importante recordar, é São Josemaría Escrivá, o fundador do Opus
Dei, uma luminária que brilha especialmente no meio das sombras do “mundo” moderno.
Chamado por Deus a proclamar no
mundo a mensagem da vocação universal de todos os batizados à santidade e ao
apostolado, soube olhar com otimismo, com luzes do Espírito Santo, este mundo
envolto em sombras, e ver nele exatamente o cenário da santidade e do
apostolado que Deus pede aos cristãos comuns, aos homens e mulheres que vivem e
trabalham nesta terra.
A missão do Opus Dei, cuja fundação Deus lhe confiou, é precisamente esta:
proclamar, em todos os ambientes, esse apelo positivo, empolgante, otimista, de
que todos são chamados a ser santos, sem sair do mundo, sem necessidade de
abandonar o mundo; de que precisamente o trabalho profissional e os deveres
cotidianos do cristão podem ser meio e ocasião de santidade e de apostolado.
Em 1930, dois anos após a
fundação do Opus Dei, escrevia:
- “Viemos dizer, com a humildade de quem se sabe pecador e pouca coisa –
sou um homem pecador (Lc 5, 1), dizemos com Pedro –, mas com a fé de quem se
deixa guiar pela mão de Deus, que a santidade não é coisa para privilegiados:
que o Senhor nos chama a todos, de todos espera Amor: de todos, estejam onde
estiverem; de todos, seja qual for o seu estado, a sua profissão ou ofício.
Porque esta vida corrente, cotidiana, sem relevo, pode ser meio de santidade:
não é preciso abandonar o mundo para procurar a Deus, se o Senhor não dá a uma
alma a vocação religiosa [para uma ordem ou congregação religiosa], uma vez que
todos os caminhos da terra podem ser ocasião de um encontro com Cristo”.
– Santos, neste mundo “inundado de pecado”. Sem dúvida, é um ideal maravilhoso, mas, para
muitos, que conhecem como é que é mesmo o “mundo”,
pode parecer quase impossível...
– Assim pensavam e diziam, nos
anos de começo do Opus Dei e depois, alguns católicos, inclusive alguns
eclesiásticos, que achavam impossível santificar-se neste “mundo” tão afastado de Deus. Por isso chamavam “louco” a São Josemaría. É interessante
que, quando esteve no Brasil, um estudante paulista lhe perguntou como foi que
o tinham chamado louco, e ele respondeu:
- “Faz muitos anos, diziam de mim: Está louco! Tinham razão. Eu nunca
disse que não estivesse louco. Estou louquinho perdido de amor de Deus. E
desejo para você a mesma doença”.
E acrescentava:
- “Parece-te pouca loucura dizer que no meio da rua se pode e se deve ser
santo? Que pode e deve ser santo o homem que vende sorvetes num carrinho, e a
empregada que passa o dia na cozinha, e o diretor de uma empresa bancária, e o
professor da Universidade, e aquele que trabalha no campo, e aquele que carrega
malas às costas?... Todos chamados à santidade!”
Otimismo: pés no chão, alma em
Deus
- Será que isso é ingenuidade?
Não, evidentemente, porque não são ingênuas as obras da fé e do amor inspiradas
por Deus. Sobretudo quando essas obras suscitadas por Deus já produziram frutos
maduros em muitos milhares de almas. Mas, além disso, é bom lembrar que São
Josemaría tinha uma perspectiva tão afastada do pessimismo como daquele
otimismo vazio e sonhador, que paira acima da realidade sem se encontrar nunca
com ela.
O otimismo de São Josemaría era
de pés no chão e cabeça e coração em Deus. Nunca se iludiu. Ao longo de toda a
vida, conheceu a dor e experimentou o veneno das presas peçonhentas do “mundo” fincando-se na sua carne e na sua
alma, fazendo-o sofrer – sem toldar-lhe jamais a alegria – e abalando-lhe a
saúde.
Os primeiros passos da obra que
Deus lhe inspirou foram dados numa Espanha em que o ambiente era agressivamente
hostil para os católicos, em que as ideologias do mal se digladiavam, em que a
fidelidade à fé era julgada um crime, em que o ódio à Igreja e à religião ia
crescendo até ganhar, com o eclodir da guerra civil de 1936-1939, proporções
monstruosas. Baste lembrar a estatística dos assassinatos perpetrados pelas
próprias autoridades, por agentes comunistas e pelas milícias
anarco-sindicalistas: foram martirizados cerca de 4.000 sacerdotes e 2.500
religiosos (membros de ordens ou congregações religiosas), além de muitos
outros milhares de fiéis leigos, pelo simples fato de serem católicos.
Só na diocese de Madrid, à qual
pertencia na altura São Josemaría, foram executados 334 padres seculares, e o
próprio Pe. Escrivá teve que se ocultar, perseguido de morte, refugiando-se
onde podia, passando fome e sede; e, além disso, dilacerado pela dor de saber
do martírio de uma porção de colegas padres, que tinham sido grandes amigos
seus.
– Não sabia que a perseguição
tivesse sido tão terrível.
– Foi mesmo. Várias centenas de
mártires dessa perseguição já foram beatificados ou canonizados. Mas eu
mencionei esses fatos históricos só para frisar que São Josemaría não tinha uma
imagem do mundo adocicada nem irreal. Conhecia-o, do mesmo modo que conheceu,
até à morte, as calúnias, as investidas do ódio e da mentira caindo injustamente
sobre si e sobre a obra por ele fundada; também as procedentes de irmãos na fé,
“a contradição dos bons”, como a
chamava. A todos perdoou, sem resíduos de rancor, desde o primeiro momento.
“Temos que compreender a todos” – repetia incansavelmente –, “temos que conviver com todos, temos que
desculpar a todos, temos que perdoar a todos. Não diremos que o injusto é
justo, que a ofensa a Deus não é ofensa a Deus, que o mau é bom. No entanto,
perante o mal, não responderemos com outro mal, mas com a doutrina clara e com
a ação boa: afogando o mal em abundância de bem (cfr. Rom 12, 21). Assim Cristo
reinará na nossa alma e nas almas dos que nos rodeiam”.
Só indiretamente, falando na
terceira pessoa, é que deixava entrever o que sofreu por amor a Deus; por
exemplo, nestes trechos de uma homilia, em que dizia que, para os que querem trabalhar
por Cristo, “é possível que, já desde o
princípio, se levantem grandes nuvens de pó e que, ao mesmo tempo, os inimigos
da nossa santificação empreguem uma técnica tão veemente e tão bem orquestrada
de terrorismo psicológico – de abuso de poder –, que arrastem em sua absurda
direção inclusive aqueles que durante muito tempo mantinham outra conduta mais
lógica e reta”.
Surgem, então, “mentiras, detrações, desonras, embustes,
insultos, murmurações tortuosas [...], tratam de uma maneira que vai da desconfiança
à hostilidade, da suspeita ao ódio [...]; fazem uso de lugares comuns, fruto
tendencioso e delituoso de uma propaganda massiva e mentirosa”.
O mundo é o campo de Deus
Pois
bem, no meio dessas dificuldades, que nunca faltaram ao fundador e aos seus
filhos, São Josemaría seguiu o seu caminho – fiel ao que Deus lhe pedia – sem
hesitações, sem desânimo nem medo, sem pausas nem recuos, convencido daquela
verdade que São Paulo escreveu aos romanos, e que ele pessoalmente meditou e
fez meditar inúmeras vezes: "Deus faz concorrer todas as coisas para o bem
daqueles que o amam – “omnia in bonum!”
(Rom 8, 28).
Nunca o abandonou a firme
convicção que deixou estampada no n. 301 do seu livro Caminho: “Um segredo. – Um segredo em voz alta: estas
crises mundiais são crises de santos. Deus quer um punhado de homens «seus» em
cada atividade humana. – Depois... «pax Christi in regno Christi» – A paz de
Cristo no reino de Cristo”.
A serviço desse ideal, que era a
sua vocação divina, dedicou a vida inteira, sem se poupar. Assim, quando Deus o
chamou a si, em 26 de junho de 1975, o Opus Dei já estava estendido pelos cinco
continentes e contava 60.000 membros de 80 nacionalidades, a serviço da Igreja.
E a sua mensagem de santidade e apostolado no meio do mundo, através da
santificação do trabalho profissional, continua a fecundar, como a semente da
parábola evangélica, cada vez mais pessoas e ambientes. Esse foi o otimismo
cristão de São Josemaría que, como ele mesmo dizia, é conseqüência necessária
da fé.
Estava convencido de que, por
mais joio que exista, o mundo é o campo de Deus, o campo que Deus ama e nos
pede que amemos, e que nos confia para que, nele, continuemos a obra de Cristo:
“Ide pelo mundo inteiro e anunciai a
Boa-Nova – o Evangelho – a toda a criatura... Eis que estou convosco todos os
dias, até o fim dos tempos” (Mc 16, 15 e Mt 28, 20).
Se você quiser apreciar uma bela
amostra do calor de otimismo cristão que ele difundiu e continua a difundir
pelo mundo, recomendo-lhe que leia e medite a homilia que pronunciou numa Missa
no campus da Universidade de Navarra, em 8 de outubro de 1967, e que tem como
título: “Amar o mundo apaixonadamente”.
– Gostaria imenso de conhecer
essa homilia.
– O texto encontra-se no livro “Questões
atuais do Cristianismo”, e uma pequena amostra são os parágrafos que cito a
seguir:
- “Meus filhos: aí onde estão os nossos irmãos os homens, aí onde estão as
nossas aspirações, o nosso trabalho, os nossos amores – aí está o lugar do
nosso encontro cotidiano com Cristo. No meio das coisas mais materiais da terra
é que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens”.
“Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Escritura Santa: o
mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura d’Ele, porque
Javé olhou para ele e viu que era bom (cfr. Gên, 1, 7 e segs.). Nós, os homens,
é que o fazemos ruim e feio, com os nossos pecados e as nossas infidelidades.
Não duvidem, meus filhos; qualquer modo de evasão das honestas realidades
diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus”.
“Pelo contrário, devem compreender agora – com uma nova clareza – que
Deus os chama a servi-Lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares
da vida humana. Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações
de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina,
no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não
esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns,
algo que a cada um de nós compete descobrir”.
“Eu costumava dizer àqueles universitários e àqueles operários que me
procuravam lá pela década de 30, que tinham de saber materializar a vida
espiritual. Queria afastá-los, assim, da tentação, tão freqüente nessa época e
agora, de levar uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus,
por um lado; e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e
social, cheia de pequenas realidades terrenas”.
“Não, meus filhos! Não pode haver uma vida dupla, não podemos ser como
esquizofrênicos, se queremos ser cristãos. Há uma única vida, feita de carne e
espírito, e essa é que tem de ser – na alma e no corpo – santa e plena de Deus,
desse Deus invisível, que nós encontraremos nas coisas mais visíveis e
materiais. Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em
nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca. Por isso, posso
afirmar que nossa época precisa devolver à matéria e às situações aparentemente
mais vulgares seu nobre e original sentido: pondo-as ao serviço do Reino de
Deus, espiritualizando-as, fazendo delas meio e ocasião para o nosso encontro
contínuo com Jesus Cristo”.
– Fantástico! Quero ler essa
homilia inteira!
– Vai gostar. Eu desejaria
terminar este comentário acrescentando trechos de umas palavras que João Paulo
II pronunciou na homilia da Missa da canonização de São Josemaría, em 6 de
outubro de 2002, e no discurso que dirigiu aos peregrinos após a Missa de ação
de graças pela canonização, concelebrada no dia seguinte. São palavras que
resumem, não só o significado da mensagem desse santo, como ainda a expectativa
alegre e otimista da Igreja a respeito dos frutos da vida e da obra dele, do “santo do cotidiano”, como João Paulo II
o qualificou:
- “Elevar o mundo a Deus e transformá-lo a partir de dentro: eis o ideal
que o Santo Fundador lhes indica, queridos irmãos e irmãs que hoje se alegram
pela sua elevação à glória dos altares. Ele
continua a recordar-lhes a necessidade de não se deixarem atemorizar perante a
cultura materialista que ameaça dissolver a identidade mais genuína dos
discípulos de Cristo [...]. Seguindo os seus passos, difundam na sociedade, sem
distinção de raça, classe, cultura ou idade, a consciência de que todos somos
chamados à santidade. “São Josemaría Escrivá estava profundamente convencido de
que a vida cristã implica uma missão e um apostolado, de que estamos no mundo
para redimi-lo com Cristo. Amou o mundo apaixonadamente, com um “amor redentor”.
Precisamente por essa razão, os seus ensinamentos ajudam tantos fiéis comuns a
descobrir o poder redentor da fé, a sua capacidade de transformar a terra
[...]. Este sacerdote santo ensinou que Cristo deve estar no cume de todas as
atividades humanas. A sua mensagem anima o cristão a atuar nos lugares onde se
forja o futuro da sociedade. Somente através da presença ativa dos leigos em
todas as profissões e nas mais avançadas fronteiras do desenvolvimento é que se
pode dar uma contribuição positiva para o fortalecimento da harmonia entre a fé
e a cultura, uma das grandes necessidades da nossa época”.
(Continua... Tenha paciência!)
(01.11.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 06
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
DOIS
RIOS CRISTALINOS DE VIDA
UMA
METÁFORA LUMINOSA
-
São muitas as imagens que a Bíblia utiliza para falar do Espírito Santo. Todas
aproximativas, pois não há metáfora humana que possa exprimir o Amor que há no
seio da Trindade. Juntas, porém, permitem vislumbrar a sua insondável riqueza.
Vimos
há pouco a imagem da semente, que, se não me engano, só João utiliza. O próprio
Espírito Santo veio, no dia de Pentecostes, sob a figura das línguas de fogo
que pousaram sobre Maria, os Apóstolos e as santas mulheres (At 2, 3),
simbolizando a luz e o fogo de Deus. Jesus refere-se ao Espírito Santo com as
imagens do vento, que sopra onde quer (Jo 3, 8), do Consolador ou Defensor (Jo
14, 16, etc.) e, sobretudo, da fonte ou rio de águas vivas que tudo vivifica
(Jo 4, 14 e 7, 38-39).
Esta
última imagem reaparece, de forma extremamente poética, no final do livro do
Apocalipse: “Mostrou-me então o anjo um
rio de água viva, resplandecente como cristal, saindo do trono de Deus e do
Cordeiro” (Ap 22, 1). Os melhores comentaristas vêem aí uma referência à
Trindade: o rio da água viva é a graça do Espírito Santo; o trono de Deus é o
trono de Deus Pai, e o Cordeiro é Cristo.
É
um modo de expressar a realidade de que o Pai e o Filho, depois de realizada a
obra da Redenção, não cessam de enviar ao mundo um rio de graças juntamente com
o Espírito Santo. Se, neste momento, eu tivesse que dar uma aula de teologia,
diria que essas águas vivas e cristalinas – luminosas, resplandecentes como
cristal – nos chegam, sobretudo, através da ação do Espírito Santo nos
Sacramentos (Batismo, Crisma, Eucaristia, Confissão, etc.); também através da
oração; e ainda como um dom que Deus nos concede por qualquer boa ação
praticada com amor a Deus e ao próximo, por pequena que seja.
Agora,
porém, com a perspectiva própria desta nossa conversa, desejava falar-lhe de
uma ação especialmente intensa do Espírito Santo na história, uma ação que, ao
longo dos séculos, atravessa as “trevas
do mundo”; uma dupla intervenção do Espírito Santo, que, por mais densas e
asfixiantes que essas trevas possam ser, vence o mundo (cfr. 1 Jo 5, 4).
Dentro
do símbolo do rio, vou dizer que o Espírito Santo, após o dia de Pentecostes,
não cessa de manter dois grandes rios de vida e de luz, dois rios que nenhum
acúmulo de crimes e pecados pode turvar nem secar. São dois rios que atravessam
as “sombras” da história sem que elas
consigam detê-los (cfr. Jo 1, 5). Embora muitas vezes essas sombras se lhes
oponham com furor e grande violência, eles continuam a avançar e fecundam de
Verdade e de Amor um mundo em que parecem ir-se apagando, cada vez mais, os
sinais da verdade e do amor.
Sim,
meu bom amigo, ainda que as idéias, as doutrinas, o ambiente, os costumes, os
vícios, as modas..., rodopiem doidamente e dancem de forma alucinada, arrastando
homens e mulheres – especialmente os jovens – numa roda-viva de confusão; ainda
que, dentro da própria Igreja, possa parecer, às vezes, que os chamados a
trazer a luz tragam a noite e tentem substituir os diamantes da fé pelas areias
movediças dos seus desvarios, tenha a certeza de que Deus nos dá e nos dará
sempre – sempre! – a absoluta segurança desses dois rios de luz, que são também
os dois pilares inabaláveis onde poderemos apoiar-nos com plena confiança na
vida e na morte.
–
E quais são esses dois rios?
–
O primeiro é formado pelos santos, pela corrente ininterrupta dos santos que,
ao longo de toda a história, jamais faltaram na Igreja e que refletem com as
suas vidas o “rosto de Cristo”. Eles
são como tochas acesas pelo Espírito Santo, que, pela sua fidelidade, mantêm
brilhando no mundo a “sinalização divina”.
Resplandecem como o sol (Mt 13, 43), são as luminárias no mundo (Fil 2, 15), e
demonstram que o amor é mais forte do que o mal.
Estou
convencido de que hoje, mais ainda do que em outras épocas, todas as pessoas de
boa vontade – a começar pelos católicos – precisam conhecer e imitar a vida dos
santos, precisam ler muitas vidas de santos, assistir a gravações visuais sobre
vidas de santos: serão para todos janelas abertas a panorâmicas desconhecidas,
empolgantes, onde verão reverberar a verdade e a bondade de Deus, que
infelizmente desconhecem. Não duvide de que a verdade cristã está com os
santos, está na vida dos santos. No mais humilde deles há mais verdade que nos
livros de mil teólogos tíbios ou envaidecidos.
“Os santos” – diz Bento XVI na encíclica “Deus é Amor” – “são os verdadeiros portadores de luz dentro da história, porque são
homens e mulheres de fé, esperança e caridade”. E, numa homilia pronunciada
em 1994, antes da sua eleição para o supremo pontificado, tendo como pano de
fundo os ataques à Igreja motivados pelas fraquezas humanas dos seus membros ao
longo da história, dizia:
“O admirável não é que nessa Igreja – que
somos nós – haja pecados. O admirável é que, apesar de tudo, a Palavra de Deus
tenha continuado presente nela através dos séculos, que os Sacramentos
permaneçam sempre os mesmos e se renovem uma e outra vez na sua força e frescor
incorruptíveis. O admirável é que desse vigor da Palavra de Deus, e apesar de
todo o bloqueio que lhe opomos, tenha nascido sempre de novo a renovação da
Igreja e do mundo, que em todas as gerações tenham surgido santos. Também hoje
os há; e, se não abrirmos os olhos apenas para a suspeita, mas também para o
bem, poderemos encontrá-los ao nosso redor”.
–
E o segundo rio?
–
O segundo rio é o Magistério autêntico da Igreja, único farol da Verdade que
guia com segurança o mundo para o porto de Deus, um farol que nunca deixou nem
deixará de iluminar a humanidade, e que jamais se extinguirá.
–
Sugestivo. Mas receio que, ao ouvi-lo falar da Igreja, alguns encolham o nariz
e comecem a desconfiar de tudo o que vem dizendo...
–
Se fosse assim, eu pediria que, até mesmo por honestidade intelectual,
suspendessem o juízo e, em vez de se deixarem levar por “pré-conceitos” antes de saberem o que vou dizer, aguardassem,
ouvissem e só depois formassem o seu juízo. Mas vamos começar com o rio
cristalino da santidade, contemplando o exemplo de três homens de Deus dos
nossos dias: João Paulo II, São Josemaría Escrivá e o cardeal vietnamita
François Xavier Ngûyen Van Thuân.
Escolhi esses três nomes, entre muitos
outros, por oferecerem o testemunho de vidas que atravessaram vitoriosas o vale
das sombras da morte, as “ideologias do mal” do nosso tempo.
“COMO
LUMINÁRIAS NO MUNDO”: OS SANTOS
JOÃO
PAULO II: NÃO TENHAM MEDO!
À
sombra das ideologias do mal
Permita-me
resumir e glosar aqui uns comentários sobre a esperança e o otimismo exemplares
de João Paulo II, publicados há quase três anos, pouco depois de que Deus o
chamasse a Si.
Desde
que iniciou a sua preparação para o sacerdócio, Karol Wojtyla foi colocado por
Deus numas circunstâncias dramáticas, em que só podia ser fiel à sua vocação “atravessando o vale das sombras da morte”.
A sua terra, a Polônia, esteve dominada durante boa parte do século XX pelas
duas “ideologias do mal” que mais acirradamente
se propuseram aniquilar o Cristianismo: o nazismo e o comunismo.
A
aventura heróica, empolgante, que significou para o seminarista, o padre e o
bispo Wojtyla a vida no ambiente de guerra, de ditaduras cruéis e de
perseguições desencadeadas por essas duas ideologias está bem descrita nas boas
biografias existentes. O perigo nazista foi derrotado em 1945, mas a sombra do
marxismo totalitário e ateu cresceu e pairou opressivamente sobre a Polônia
dominada, e ameaçava o mundo inteiro até a sua decomposição e queda, acontecida
no final dos anos oitenta.
Contudo,
quase vinte anos antes dessa falência do “comunismo
real”, outras sombras escuras estavam surgindo, densas e igualmente
agressivas contra Cristo e a sua Igreja, contra a fé e a moral cristãs: aquelas
sombras a que nos referíamos acima do materialismo hedonista e consumista do
Ocidente, cada vez mais alicerçado na ideologia laicista, que hoje – como já
comentamos – ataca a Igreja quase com a mesma ferocidade ideológica que o
nazismo e o marxismo-leninismo.
João
Paulo II, no seu livro evocativo "Memória e Identidade", comenta que, ao cessarem
os campos de extermínio – os campos de concentração nazistas e os gulag
comunistas da União Soviética e seus satélites –, assistimos hoje ao “extermínio legal de seres humanos concebidos
e ainda não nascidos; trata-se de mais um caso de extermínio decidido por
parlamentos eleitos democraticamente, apelando para o progresso civil das
sociedades e da humanidade inteira. E não faltam outras formas graves de violação
da Lei de Deus; penso, por exemplo, nas fortes pressões [...] para que as
uniões homossexuais sejam reconhecidas como uma forma alternativa de família, à
qual competiria também o direito de adoção. É lícito e mesmo forçoso
perguntar-se se aqui não está atuando mais uma ideologia do mal, talvez mais
astuciosa e encoberta, que tenta servir-se, contra o homem e contra a família,
até dos direitos humanos”.
Esse
quadro seria de molde a encolher o ânimo e suscitar uma visão pessimista do
futuro. Pois bem, é justamente sobre essas sombras de fundo que resplandece
mais, com fulgor de santidade, a esperança alegre, serena e segura que animou,
em todos os momentos, a alma e o trabalho de João Paulo II, incansável até o
dia da sua morte. Nunca nele se viu um gesto de desalento, uma lamúria, um
comentário negativo ou amargo, nem uma desistência desanimada. Viu-se sempre,
pelo contrário, um otimismo juvenil, cheio de iniciativas, fundamentado numa fé
igualmente jovem e inquebrantável.
Não
tenhais medo: a misericórdia é mais forte que o mal
Acho
importante frisar que o otimismo desse grande Papa não era coisa temperamental,
nem uma “pose” bem-intencionada, adotada
para ajudar os fiéis a superar tempos difíceis. Era a manifestação da esperança
sobrenatural cristã, que vive apoiada em Deus. Essa esperança possuía raízes
profundamente fincadas na alma de João Paulo II.
Todos
os que vivemos, de perto ou de longe, a surpresa da sua eleição, guardamos a
lembrança do dia 22 de outubro de 1978, data do início solene do seu
pontificado. Como nos dias da sua morte, uma multidão apertava-se na Praça de
São Pedro. O Papa começou a pronunciar a sua homilia, no meio de um silêncio
total. Pouco depois de iniciá-la, os fiéis sentiram um estremecimento no
coração, porque João Paulo II, esboçando um leve sorriso, encarou o povo de
frente e, com um ar jovial, seguro, tranqüilo, lançou com voz clara e forte um
apelo: – “Não tenhais medo! Abri as
portas ou, melhor, escancarai as portas a Cristo!”
Esse
apelo, que conclamava os católicos e os homens de boa vontade a olhar para o
futuro com esperança, tornou-se para o Papa como que o “refrão” do seu pontificado. Dezesseis anos mais tarde, em 1994, ele
mesmo glosava essas palavras numa entrevista concedida ao jornalista Vittorio
Messori, transcrita no livro “Cruzando o
limiar da esperança”:
“Não tenhais medo!, dizia Cristo aos
Apóstolos (Lc 24, 36) e às mulheres (Mt 28, 10), depois da Ressurreição [...].
Quando pronunciei essas palavras na Praça de São Pedro, não me podia dar conta
plenamente de quão longe elas acabariam levando a mim e à Igreja inteira. Seu
conteúdo provinha mais do Espírito Santo, prometido pelo Senhor Jesus aos
Apóstolos como Consolador, do que do homem que as pronunciava. Todavia, com o
passar dos anos, eu as recordei em várias circunstâncias. Tratava-se de um
convite para vencer o medo na atual situação mundial [...]. Talvez precisemos
mais do que nunca das palavras de Cristo ressuscitado: «Não tenhais medo!»
Precisa delas o homem [...], precisam delas os povos e as nações do mundo
inteiro. É necessário que, em sua consciência, retome vigor a certeza de que
existe Alguém que tem nas mãos a sorte deste mundo que passa; Alguém que tem as
chaves da morte e do além; Alguém que é o Alfa e o Ômega da história do ser
humano. E esse Alguém é Amor, Amor feito homem, Amor crucificado e
ressuscitado. Amor continuamente presente entre os homens. É Amor eucarístico. É fonte inesgotável de
comunhão. Somente Ele é que dá a plena garantia às palavras: «Não tenhais medo»”.
A
mesma esperança daquela primeira mensagem de João Paulo II em 1978 animou a
última mensagem, que tinha preparado para o domingo, dia 3 de abril de 2005, e
que não chegou a pronunciar, pois desde o dia anterior já estava no céu. Mas
essa derradeira mensagem não se perdeu. No domingo previsto, que era a oitava
da Páscoa, “Domingo da Misericórdia Divina”,
foi lida, em seu nome, à multidão congregada na praça de São Pedro:
“À humanidade” – dizia –, “que às vezes parece perdida e dominada pelo
poder do mal, do egoísmo e do medo, o Senhor ressuscitado oferece a sua
misericórdia como dom do seu amor que perdoa, reconcilia e reabre o ânimo à
esperança. É um amor que converte os corações e doa a paz. Quanta necessidade
tem o mundo de compreender e acolher a Divina Misericórdia! Senhor, que com a
vossa morte e ressurreição revelais o amor do Pai, nós acreditamos em Vós e
hoje vos repetimos com confiança: «Jesus, confio em Vós! Tende misericórdia de
nós e do mundo inteiro!»”.
A
mensagem terminava convidando a “contemplar
com os olhos de Maria o imenso mistério desse amor misericordioso que brota do
coração de Cristo”.
O
Cordeiro é mais forte que o dragão
Desde
o início do seu pontificado – e também antes, por ocasião das exéquias do Papa
falecido e do novo Conclave –, Bento XVI nos tem ajudado a contemplar o exemplo
da vida santa de João Paulo II, especialmente o da sua esperança, do seu santo
otimismo.
Eu
queria reproduzir aqui apenas dois dos seus comentários. O primeiro foi feito
no discurso natalino à Cúria romana pronunciado em 22 de dezembro de 2005, que
antes mencionei. Nesse discurso, o Papa cita o seguinte trecho do livro "Memória
e Identidade" de João Paulo II, referente ao “poder do mal” no século que findou: “Não foi um mal de pequenas dimensões... Foi um mal de proporções
gigantescas, um mal que se valeu das estruturas estatais para realizar uma obra
nefasta, um mal edificado como sistema”.
E
Bento XVI glosava:
“O mal é porventura invencível? É a última
verdadeira potência da história? Por causa da experiência do mal, para o Papa
Wojtyla a questão da redenção tornou-se a interrogação essencial e central da
sua vida e do seu pensar como cristão. Existe um limite contra o qual o poder
do mal se despedaça? Sim, existe, responde o Papa nesse seu livro, como também
na sua Encíclica sobre a redenção. O poder que põe um limite ao mal é a
misericórdia divina. À violência, à ostentação do mal, opõe-se na história a
misericórdia divina, como «o totalmente outro» de Deus, como o próprio poder de
Deus. O cordeiro é mais forte do que o dragão, poderíamos dizer com o
Apocalipse”.
O
outro comentário é um trecho da homilia pronunciada por Bento XVI no dia em que
iniciou o seu pontificado, 24 de abril de 2005:
“Neste momento, a minha recordação volta ao
dia 22 de outubro de 1978, quando o Papa João Paulo II deu início ao seu
ministério aqui na Praça de São Pedro. Ainda, e continuamente, ressoam aos meus
ouvidos as suas palavras de então: «Não tenhais medo, abri de par em par as
portas a Cristo!» O Papa dirigia-se aos fortes, aos poderosos do mundo, os
quais tinham medo de que Cristo pudesse tirar algo ao seu poder, se o deixassem
entrar e concedessem liberdade à fé. Sim, Ele ter-lhes-ia certamente tirado
algo: o domínio da corrupção, da perturbação do direito, do arbítrio. Mas não
teria tirado nada do que pertence à liberdade do homem, à sua dignidade, à
edificação de uma sociedade justa”.
Como
vê, leitor amigo, ambos, o Papa Wojtyla e o Papa Ratzinger, tinham bem
presentes, diante dos olhos, as sombras do “mundo”,
mas souberam encará-las com a força serena e invencível da esperança, do
otimismo cristão.
(Continua... Tenha paciência!)
(31.10.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 05
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
REALIDADE OU UTOPIA?
– Acho que a melhor resposta a essa tentação
de ceticismo no-la vai dar o Papa Bento XVI. Na parte final da encíclica "Deus é amor” (Deus caritas est), fala de que “os
cristãos continuam a crer, não obstante todas as incompreensões e confusões do
mundo circunstante, «na bondade de Deus e no seu amor pelos homens» (Tit 3, 4).
Apesar de estarem imersos, como os outros seres humanos, na complexidade
dramática das vicissitudes da história, permanecem inabaláveis na certeza de
que Deus é Pai e nos ama, ainda que o seu silêncio seja incompreensível para
nós”.
E acrescenta, com palavras que
convém meditar:
“A fé mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por nós e, assim, gera
em nós a certeza vitoriosa de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! Desse
modo, Ele transforma a nossa impaciência e as nossas dúvidas em esperança
segura de que Deus tem o mundo nas suas mãos e que, não obstante todas as
trevas, Ele vence [...]. A fé que toma consciência do amor de Deus revelado no
coração trespassado de Jesus na cruz, suscita, por sua vez, o amor. Aquele amor
divino é a luz – fundamentalmente, a única – que ilumina incessantemente um
mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir. O amor é possível, e nós
somos capazes de o praticar porque criados à imagem de Deus. Viver o amor e,
desse modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo: tal é o convite que vos queria
deixar com a presente encíclica”.
Utopia? As utopias são divagações
sonhadoras, ou teimosos apriorismos ideológicos, divorciados da realidade.
Cristo é “realista”. Nunca prometeu
um triunfo geral e avassalador. Ninguém melhor do que Ele conhece o caráter
sagrado da liberdade que Ele próprio nos outorgou. Podemos dizer-lhe “sim” e podemos dizer-lhe “não”. Ele nada quer impor-nos, apenas
propor-nos: “Eis que estou à porta do teu
coração e bato. Se alguém escutar a minha voz e me abrir a porta, entrarei e
cearei com ele...” (Apoc 3, 20).
A liberdade de dizer “não” sempre estará na mão de todos os
homens. Mas também estará a liberdade de dizer “sim” e de mudar o mundo,
lavando-o num tsunami de Verdade e de Amor. “A vida – escreve ainda Bento XVI – não é um simples produto das leis
e dos acasos da matéria”. Não estamos em um mundo cego, à deriva. “Em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo
– prossegue –, há uma Vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus se revelou
como Amor”.
Deus não deixará que o mundo se
transforme num pião desvairado, mesmo que às vezes chegue à beira disso. Deus
está presente e age: “Meu Pai continua
agindo até agora” – diz Jesus – “e eu
ajo também” (Jo 5, 17). E isso não é utopia, é uma verdade prodigiosa.
A PEQUENA SEMENTE
- Quer mais um alicerce para o
otimismo cristão? Leia o Novo Testamento, do começo ao fim, e comprovará que,
se, por um lado, é verdade que nem Cristo nem os Apóstolos jamais nos
prometeram um paraíso na terra, por outro, também é verdade que nunca falaram
de uma devastação moral absoluta, que apagasse a esperança, nem sequer ao
anunciar as piores crises de fé da humanidade e a vinda de muitos anticristos
(cfr. 2 Tes 2, 3-4; 1 Jo 2, 18; 1 Tim 4, 1-2, etc.).
Jesus não prediz aos seus
discípulos nem sucessos retumbantes nem derrotas catastróficas. O que Ele faz é
propor-lhes reiteradamente um mistério de esperança, que nunca deveríamos
esquecer: “O Reino de Deus” – que com
Ele veio ao mundo – “é como o grão de
mostarda que, quando é semeado, é a menor de todas as sementes; mas, depois de
semeado, cresce, torna-se maior que todas as hortaliças e estende de tal modo
os seus ramos que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra” (Mc 4,
31-32).
É uma imagem do que a presença de
Cristo, do que a graça do Espírito Santo faz, na alma e no mundo, se somos
fiéis. Esta comparação, esta parábola, complementa-se com a do trigo e o joio. “O Reino dos céus é semelhante a um homem”
– Jesus – “que tinha semeado boa semente
em seu campo (o mundo). Aconteceu, porém, que, na calada da noite, o Inimigo (o
demônio e os seus seguidores) espalhou joio, erva daninha, no meio do trigo.
Ambos cresceram, e o dono do campo viu o joio crescer de mistura com o trigo,
aumentando, ameaçando acabar com ele. Mas só na época da colheita – no dia do
Juízo – é que o joio será separado do trigo. Os que fazem o mal serão lançados
fora, e os justos, no Reino do Pai, resplandecerão como o sol” (cfr. Mt 13,
24-30.36-43). Você vê nessa parábola uma perspectiva otimista ou pessimista?
– Mais ou menos. Muito otimista é
que não parece...
– Pois João Paulo II discorda de você: “Na realidade – diz ele –, a parábola pode
ser tomada como chave de leitura para toda a história do homem. Com diverso
sentido nas várias épocas, o «trigo» cresce juntamente com o «joio» e,
vice-versa, o «joio» com o «trigo». A história da humanidade é o palco da
coexistência do bem com o mal. Isto significa que, se o mal existe ao lado do
bem, também o bem persevera ao lado do mal, e cresce”.
A boa semente sempre cresce,
porque sempre há boa terra, almas generosas e fiéis. É alentadora essa promessa
de que o grão de mostarda, o grão de trigo, existirá até o fim do mundo e
sempre, de um modo ou de outro, crescerá, umas vezes de maneira oculta para
nós; outras, de forma palpável, exuberante. Num e noutro caso, é nosso dever
perseverar, colaborar, corresponder à graça divina, para que a semente arraigue
e se desenvolva, mantendo a fé mesmo que, durante longo tempo, não esteja
aparentemente a crescer.
Vamos agora dar ainda um novo
passo na nossa reflexão, perguntando-nos: “Essa
pequena semente, o que é?” Cristo disse, na parábola do semeador, “que é a palavra de Deus” (cfr. Lc 8,
11). Mas isso não esgota o seu significado. Há uma comparação audaz, utilizada
por São João, que me parece enormemente sugestiva. Ele diz que o próprio
Espírito Santo é a semente de Deus, que reside em nós, os cristãos unidos a
Deus pela graça (cfr. 1 Jo 3, 9).
Acho isto fabuloso. Essa semente
é Deus! É o seu Amor! É o Espírito Santo. E é próprio do Espírito Santo “produzir” – se é que se pode falar assim
– almas santas. A partir delas, a partir dos santos – que nunca faltaram nem
faltarão na história da Igreja –, é que a semente continuará a ser espalhada
sem cessar pelo mundo e sempre dará fruto.
UMA COMPARAÇÃO E UM EPISÓDIO
- Como ilustração do que acabo de
dizer, gostaria de comentar brevemente uma comparação e um episódio histórico.
Primeiro, a “comparação”, sempre insuficiente – como é lógico – quando se trata
e expressar realidades divinas. Não sei se você assistiu a um documentário
excelente sobre o deserto da Namíbia, na África. Creio que, na versão
brasileira, se chamava, com um toque de humorismo, Os bichos também são gente
boa.
Mostrava a desolação espantosa
desse deserto, na época da seca. Quem não conhecesse a realidade diria que era
como um Saara irrecuperável. No entanto – como acontece de modo análogo no
nosso sertão nordestino –, quando chegava a época das chuvas torrenciais, o
deserto acordava, estremecia, pulsava, transformava-se num jardim exuberante de
vida vegetal e animal: árvores frondosas, carregadas de frutos; arbustos; capim
à farta; bandos de elefantes, búfalos, gnus, macacos..., lagos atulhados de
peixes e povoados por aves inúmeras...
Pensando nisso, acho que você
tinha uma visão saariana do mundo atual, mas não se esqueça de que, mesmo no
pior momento, a semente de Deus, ainda que não se perceba e pareça ter morrido,
está neste nosso mundo atrapalhado, e mantém nele a sua fecundidade divina.
Quando a chuva da graça cai em almas “generosas
e boas” (cfr. Lc 8, 18), pode despontar no mundo um vergel divino.
Quanto ao “episódio”, vou contar-lhe um fato, ao mesmo tempo trágico e
luminoso, ocorrido em 1996 na Argélia. Pode achar a história mais detalhada num
texto do Pe. Fernando Pascual, incluído no website
catholic.net.
Trata-se do martírio de sete
monges trapistas franceses, que se encontravam num mosteiro nas montanhas da
zona do Atlas, em Tibhirine, perto da cidade de Medea. O mosteiro tinha
recebido o nome de Nossa Senhora do Atlas. Dedicavam-se à oração e prestavam
serviços humildes aos muçulmanos mais necessitados da região.
Em 26 de março de 1996, sete
monges desse mosteiro foram seqüestrados por um comando radical de terroristas
islâmicos. Após diversas vicissitudes, no dia 21 de maio desse mesmo ano os
sete monges – entre eles, o abade – foram degolados. Só em 30 de maio é que os
seus restos mortais foram achados perto de Medea.
Entre dezembro de 1993 e janeiro
de 1994, o abade do mosteiro, padre Christian de Chergé, prevendo esses
trágicos eventos, havia escrito um testamento espiritual, testemunhando nele o
seu amor a Cristo e, por Ele, a todos os muçulmanos da zona. Reproduzo uns
poucos parágrafos:
“Se algum dia me acontecesse ser vítima do terrorismo, eu quereria que a
minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem de que a minha
vida estava entregue a Deus e a este país. Peço-lhes que rezem por mim. Como
posso ser digno dessa oferenda? Eu desejaria, ao chegar esse momento da morte,
ter um instante de lucidez tal, que me permitisse pedir o perdão de Deus e o
dos meus irmãos os homens, e perdoar eu, ao mesmo tempo, de todo o coração, aos
que me tiverem ferido. Se Deus o permitir, espero poder mergulhar o meu olhar
no olhar do Pai, e contemplar assim, juntamente com Ele, os seus filhos do Islã
tal como Ele os vê; que os possa ver iluminados pela glória de Cristo, fruto da
sua Paixão, inundados pelo dom do Espírito... Por essa minha vida perdida,
totalmente minha e totalmente deles, dou graças a Deus”.
Finalmente, dirigindo-se ao seu
futuro assassino, escrevia: “E a ti
também, meu amigo do último instante, que não sabias o que estavas fazendo,
também a ti dirijo esta ação de graças..., e peço a Deus que nos seja concedido
reencontrar-nos no Céu, como «bons ladrões» felizes no Paraíso, se assim Deus,
Pai nosso, teu e meu, o quiser. Amém! Im Jallah!”.
Esse monge, você acha que um dia
verá esse sonho realizar-se? Parece muito difícil, não é?
– Parece mesmo.
– Pois eu ousaria dizer que Deus
faz coisas incríveis com a sua graça, sobretudo em resposta às orações dos que
crêem n’Ele e o amam de verdade. Penso que esses monges, ignorados de todos e
perdidos nos confins desérticos da Argélia, encarnam o mistério do grão de
mostarda; e especialmente encarnam o mistério daquele grão de trigo de que
falava Jesus pouco antes da sua Paixão: “Se
o grão de trigo, caindo na terra, morrer – morrer por amor –, produzirá muito
fruto” (cfr. Jo 12, 24).
A força do amor cristão e os seus
frutos impressionantes não podem ser pesados por nenhuma balança humana. Mas
justamente essa história nos leva a dar mais outro passo nas nossas reflexões.
(Continua... Tenha paciência!)
(30.10.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 04
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
O SOL BRILHA SOBRE AS NUVENS
TANTO AMOU DEUS O MUNDO
TANTO AMOU DEUS O MUNDO
– Várias vezes lhe disse que íamos fazer umas
reflexões que poderiam arder um pouco na sua alma de pessimista. Vamos começar
agora, e peço a Deus que estas “queimaduras”, sempre afetuosas, sejam chama e
calor que o encham de saúde espiritual e de alegria.
– Saúde? Acha que estou doente?
– Julgue você mesmo. Não me
parece saudável um modo de pensar que não coincida com o pensamento de Deus...
– Que quer dizer com isso?
– Quero dizer uma coisa muito simples. O seu
pessimismo – compreensível, de resto – leva-o a contemplar este “mundo” invadido pelo pecado com
repugnância, ira e desânimo. E nós já vimos que Deus, pelo contrário, contempla
este mesmo “mundo”, precisamente porque
está enlameado, com tanta misericórdia, com tanto amor, que acha que vale a
pena dar o seu sangue – o sangue de Cristo, o Filho de Deus – para lavá-lo e
plantar bem no coração dele as bandeiras do amor e da esperança.
– Sim. Isso é o que mais dói. Cristo já veio,
fez a coisa mais espantosa que podia fazer, dar a vida por todos os homens; e,
em troca, hoje querem condená-lo de novo, estão querendo expulsá-lo, “neutralizá-lo”.
– É verdade. O “mundo” faz o possível para
condenar de novo Cristo e expulsá-lo da vida dos homens e mulheres. Já o
recordávamos ao mencionar o “ódio do
mundo” anunciado por Jesus. Ele sabia disso perfeitamente. Mas também é
verdade que nada disso toldou nem o amor nem a alegria com que quis dar
livremente a sua vida pela salvação “deste
mundo”.
Talvez penetremos melhor no seu
coração, se nos lembrarmos da sua despedida, na Última Ceia, cuja crônica de visu foi feita por São João,
reclinado à mesa junto d’Ele. Naquele momento de intimidade e despedida, Jesus
anunciou claramente aos Apóstolos a sua paixão e morte iminente. Tinha plena
consciência de que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai (Jo 13, 1),
e de que morreria no meio dos tormentos e desprezos mais atrozes, acabando como
um detrito humano, um fracassado.
Como é que Ele via essa sua morte? Desejando-a,
mesmo que lhe custasse suores de sangue (cfr. Lc 12, 50 e Jo 10, 17-18),
desejando-a porque ela era o cume do seu amor: “Como o Pai me ama, assim também eu vos amo [...]. Ninguém tem maior
amor que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15, 9. 13).
É fundamental perceber que, a
esse seu “fracasso” (o fato de morrer
destroçado pelos inimigos), Ele o chama a sua glória e a sua vitória: “Agora é glorificado o Filho do homem”
(Jo 13, 31); “Coragem! Eu venci o mundo”
(Jo 16, 33). Há, em tudo isso, um belíssimo mistério, em que vale a pena
penetrar.
– Não posso negar que há aí algo de muito
sugestivo...
O AMOR DADO AO MUNDO
– Espero não complicar as coisas
se, para captar o cerne desse mistério, agora acrescento que a maior alegria de
Jesus, perante a sua Paixão e após a Ressurreição, foi ver que chegara, enfim,
a hora em que, como fruto do seu Sacrifício redentor, poderia entregar-nos o
dom do Espírito Santo. Compreendo que isto parece não ter muita conexão com o
que estávamos dizendo...
– Parece... Pelo menos eu não
capto a conexão.
– Permita-me, então, prosseguir
mais um pouco. Volto à Última Ceia, tal como a recorda São João. Enquanto o
Senhor se despedia, antes de padecer, dando aos Apóstolos as últimas instruções
– o seu “testamento” –, foi fazendo
numerosos incisos para falar, uma e outra vez, do Espírito Santo. Era algo que
não lhe saía do coração. Não vou citar todos esses incisos. Só dois deles, que
me parecem mais esclarecedores.
O primeiro: “Agora vou para aquele que me enviou, e nenhum de vós pergunta: para
onde vais? Mas porque vos falei assim, a tristeza encheu o vosso coração.
Entretanto, digo-vos a verdade: convém a vós que eu vá! Porque, se não for, o
Paráclito [o Espírito Santo] não virá a vós; mas se for, eu vo-lo enviarei”
(Jo 16, 5-7). E o segundo: “Eu rogarei ao
Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco. É o
Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o
conhece, mas vós o conhecereis, porque permanecerá convosco e estará em vós”
(Jo 14, 16-17).
– Bonito! Mas continuo sem achar
a conexão...
– A conexão, vamos vê-la logo,
com a ajuda de Deus. Você sabe quem é o Espírito Santo?
– A terceira pessoa da Santíssima Trindade.
– Perfeitamente. Então talvez
saiba que, no seio da Trindade, desse mistério inefável, inexprimível,
deslumbrante da intimidade de Deus, o Espírito Santo é o Amor, o amor
indescritível entre o Pai e o Filho. Não é um simples sentimento de amor, nem
apenas um vínculo de relação amorosa, mas o Amor em Pessoa, o amor substancial
de Deus que, por sua vez, é Deus, uma Pessoa divina! Um Amor que é Deus! Você
percebe?
– Acho que começo a entender.
– Sim! Cristo salva o mundo,
prostrado pela inundação do pecado, que é a escória do “egoísmo”, com dois atos
de perfeito amor, de perfeito antiegoísmo, de amor até ao extremo (cfr. Jo 13,
1).
Primeiro, oferece-se em
sacrifício para expiar os nossos pecados, ou seja, envolve o abismo maligno do
pecado num imenso abismo de amor – a sua entrega na Cruz –, num amor
infinitamente superior a todas as abominações do pecado. Neste sentido, o
Apocalipse começa dizendo que Jesus Cristo é aquele que nos ama, que nos lavou
dos nossos pecados no seu sangue (Ap 1, 5).
Segundo, Cristo, ao alcançar-nos
na Cruz a remissão dos pecados, abriu as portas para que pudéssemos receber na
nossa alma redimida o dom do Espírito Santo, o próprio Amor divino com o qual
Deus nos abraça, nos inflama em suas chamas divinas, nos transforma em filhos “muito amados” (cfr. Ef 5, 1), unidos ao
Filho, em “outros Cristos”, e nos
infunde a capacidade sobre-humana de amá-lo e de nos amarmos mutuamente tal
como Jesus amou; e de fazê-lo de um modo que vai muito além das nossas
capacidades humanas, pois nos foi infundida a potência do próprio Amor divino,
do Espírito Santo (cfr. Gál 4, 4-7; Rom 5, 5).
O amor de Deus – dirá São Paulo –
foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.
Precisamente por isso, ele pôde acrescentar que a nossa esperança não engana
(Rom 5, 5). Sim, somos amados com loucura, salvos, resgatados, pelo Amor
todo-poderoso. Por mais que as trevas o escondam, no mundo está presente o
Amor.
Aí está a razão do nosso
otimismo, precisamente porque esse Amor misericordioso veio ao mundo para
ficar. Jamais se apagará, jamais nos abandonará, sempre estará oferecido a quem
quiser abrir-lhe a alma. Dele todos, se quisermos, poderemos viver, e com a sua
força poderemos mudar a nossa vida e mudar o mundo.
A VITÓRIA QUE VENCE O MUNDO
– Você, meu bom amigo pessimista
(a caminho de virar otimista), perceberá melhor agora por que o Papa Bento XVI,
perfeito conhecedor do mundo atual e de seus tsunamis, começou publicando uma
encíclica otimista sobre o Amor de Deus (Deus caritas est), e [acaba de publicar] publicou a segunda encíclica, otimista também,
sobre a esperança (Spe salvi). Ele
sabe, pela força da fé, o que acabamos de comentar: que Jesus trouxe ao mundo,
definitivamente, o Amor, a única coisa que salva e que pode dar sentido à vida
e à história.
“Não é a ciência que redime o homem – lemos na encíclica Spe salvi –. O
homem é redimido pelo amor [...]. O ser humano necessita de amor incondicionado
[...]. Se existe esse amor absoluto com a sua certeza absoluta, então – e
somente então – o homem está «redimido», independentemente do que lhe possa
acontecer [...]. A verdadeira e grande esperança do homem, que resiste apesar
de todas as desilusões, só pode ser Deus – o Deus que nos amou, e ama ainda
agora, «até o fim», «até a plena consumação» (cfr. Jo 13, 1 e 19, 30)”.
No contexto desse parágrafo da
encíclica, que citei só parcialmente, o Papa inclui uma belíssima mensagem de
otimismo que São Paulo dirige aos romanos: "Se
Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio
Filho, mas por todos nós o entregou, como não nos dará com ele todas as coisas"?
Mensagem que conclui com um cântico jubiloso: "Quem nos separará do amor de
Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A
espada? [...]. Mas, em todas essas coisas, somos mais que vencedores
[literalmente: hypernikómen, “super-vencemos”] pela virtude daquele que nos
amou” (Rom 8, 31-32. 35-37).
Acima de tudo, há a certeza da
vitória! Está vendo como se corta o nó górdio do paradoxo, do mistério de que
acima falávamos? Cristo transforma a sua humilhação e o seu fracasso na Cruz em
amor que nada pode deter, em uma invencível “inundação de amor”. Cristo fez do próprio mal do mundo, do pecado,
dos crimes, dos horrores dos homens, o “motivo”
que o levou a encarnar-se e a morrer por nós. Como fruto do seu sacrifício,
deu-nos o Espírito Santo. Vê como Jesus, dos males que a você o desanimam,
tirou o impulso para dar ao mundo os maiores bens?
– Desculpe. Meditar, como acaba
de fazer, sobre a bondade e misericórdia de Deus é cativante. Mas acho que,
vendo o panorama do mundo atual, Jesus continua a chorar, como chorou sobre
Jerusalém no início da sua “semana santa”...
Aquelas palavras tão conhecidas: “Jerusalém,
Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados!
Quantas vezes eu quis reunir os teus filhos, como a galinha reúne os seus
pintinhos debaixo de suas asas..., e tu não quiseste!” (Mt 23, 37).
– Sim, Jesus chorou e sofreu
pensando na rejeição daquele povo que amava e na de tantos outros homens e
mulheres ao longo dos tempos, talvez especialmente dos tempos atuais. Mas nada
disso abalou a sua decisão de amar até o fim. Por isso temos, podemos ter, e
sempre poderemos ter esperança. Por isso somos e sempre seremos otimistas.
– Será que tanto otimismo não é
utopia?
(Continua... Tenha paciência!)
(29.10.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 03
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
TRÊS IDEOLOGIAS DO
MAL
O nazismo e o marxismo
No discurso de Natal dirigido à
Cúria Romana em 22 de dezembro de 2005, o Papa Bento XVI fazia uma referência
ao livro Memória e identidade e dizia: “Tanto
no início como no final do mencionado livro, o Papa [João Paulo II] mostra-se
profundamente sensibilizado pelo espetáculo do poder do mal que, no século
recém-terminado, nos foi concedido experimentar de modo dramático. Diz
textualmente: «Não foi um mal de pequenas dimensões... Foi um mal de proporções
gigantescas, um mal que se valeu das estruturas estatais para realizar uma obra
nefasta, um mal edificado como sistema»”.
Cada uma dessas ideologias
pretendia oferecer uma cosmovisão: uma interpretação global, totalitária,
científica e definitiva da verdade sobre o mundo, o homem, a história, a
política, a sociedade... Por outras palavras, atribuíam-se a si mesmas as
características de uma autêntica “religião
atéia”, e foram vividas e impostas como “crenças” dogmáticas intocáveis, como cultos obrigatórios de
adoração à tirania totalitária, negadora de Deus, a quem viam como um
concorrente que era preciso apagar das consciências e da vida social. Por isso,
ambas as ideologias perseguiram ferrenhamente a religião.
As duas juntas levaram ao
martírio muito mais cristãos – sem contar a brutalidade inominável do “holocausto” dos judeus – que todas as
perseguições sofridas por eles ao longo de vinte séculos. E disto pouco se fala
hoje nas aulas universitárias, nos cursinhos e colégios...
– Gostei de ouvir! Confesso que estou farto de
escutar e ler ataques contra a Igreja, mesmo em colégios e universidades “católicos”, de suportar o cacarejo
incessante e monótono de “Inquisição,
Inquisição, Inquisição!...”, e de não ouvir nem ler nem meia palavra sobre
as atrocidades cometidas contra os cristãos e fiéis de outras religiões por
Stalin, Mao Tsé Tung, Pol Pot e quejandos... Pelo contrário, alguns desses
ditadores, manchados de alto a baixo de sangue ideológico, são ainda
apresentados como porta-bandeiras da “salvação”
da América Latina e do mundo. Que Inquisição?
– Já que fez esse desabafo, vou aproveitar a
dica. Você sabe como costumo retrucar aos que me questionam sobre a Inquisição?
Como os mineiros, respondendo com outra pergunta: “De que Inquisição está falando?”
E quando me olham com o espanto
característico dos sabichões, explico-lhes: “Eu não defendo nem defenderei nunca a Inquisição. Mas é imoral e cínico
esquecer que não foi, nem de longe, a única nem a pior «inquisição» da
história. Foram muitas as inquisições dedicadas a julgar cidadãos e condená-los
à morte pelo «crime» de defenderem idéias ou ideologias julgadas intoleráveis,
perigosas e daninhas para os «dogmas» do Estado, para a paz e a unidade da
nação”.
Mesmo no campo religioso,
cristão, naqueles séculos em que a unidade de religião era considerada uma
questão de estado e elemento indispensável para a segurança dos reinos, os
países protestantes tiveram também as suas inquisições, muitas vezes bem mais
ativas que as dos reinos católicos.
É fato conhecido, por exemplo,
que Calvino também acendeu as suas fogueiras em Genebra; na Inglaterra,
Henrique VIII e, depois, a rainha Elisabeth, em nome do anglicanismo, fizeram
correr barris de sangue de católicos, desde Sir Thomas More – São Tomás More –,
antigo chanceler do Reino e um dos “três
homens mais cultos da Europa”, até monges e monjas contemplativos, como os
cartuxos, pacífica e silenciosamente recolhidos em seus mosteiros.
E nunca ouviu falar do massacre
dos “anabaptistas” (julgados hereges
por Lutero) que, liderados por Münzer, se uniram à revolta dos camponeses
alemães contra os príncipes de tendência luterana e acabaram sendo vencidos?
Conta-se que, num só dia, foram degolados vinte mil deles, com a aprovação de
Lutero, que exortava os príncipes germânicos: “Exterminai, decapitai!”...?
– O senhor está lavando a minha
alma...
– Espere, que daqui a pouco
talvez tenhamos de queimá-la um pouco... Mas, já que estamos nessa, eu queria
completar brevemente o quadro inquisitorial. Quando foram comemorados os
duzentos anos da Revolução Francesa, saíram à luz vários estudos históricos,
quase todos de especialistas franceses, muito completos, sobre aquela época.
À distancia de dois séculos, já
não se fizeram idealizações românticas, mas apresentaram-se documentos, dados e
números. É de estarrecer a enorme quantidade de cabeças inocentes de católicos
que os tribunais revolucionários, em nome da liberté, fraternité et egalité, deceparam na França liberal. Tribunais
sectários, anticristãos, usando de juízos-relâmpago inquisitoriais,
sumaríssimos, eliminavam em poucas horas quem tinha fé católica e fidelidade à
Igreja.
É paradigmático o julgamento
infame e a decapitação na guilhotina das carmelitas do mosteiro de Compiègne, que
chegaram juntas ao suplício, cantando o Veni,
Creator Spiritus. É um episódio que deu pé a duas obras literárias
admiráveis: "A última ao cadafalso", de Gertrud von Le Fort, e "Os Diálogos das carmelitas",
de Georges Bernanos.
Em resumo, a verdade é que as
inquisições ideológicas de diversas cores, sobretudo as inquisições laicas
(não-religiosas, é importantíssimo frisá-lo!) do “liberalismo”, do nazismo e do comunismo, fizeram muitíssimo mais
vítimas, em nome dos seus intocáveis “dogmas
de fé laica”, que a tão cacarejada inquisição dos reinos católicos...
– Isso é que me revolta! Quase
sempre são os “liberais anticlericais”
– herdeiros diretos da Ilustração e da Revolução francesa –, os marxistas –
planta arcaica que custa a murchar –, e os defensores das manipulações
genéticas, das experiências com embriões e fetos humanos, do aborto eugênico,
da eutanásia, etc. – herdeiros diretos, nisso, dos experimentos de vida e morte
com seres humanos nos campos de concentração nazistas –, os que grasnam com
mais arrogância contra a inquisição das nações católicas, quando eles têm a
casa infinitamente mais suja de sangue inquisitorial que qualquer “inquisição católica”... Mas eles são os
inocentes, os “científicos”, os
avançados, os liberais, os juízes dos demais, eles...
– Pare, pare, pare! Você está-se
exaltando. Não se lembra de que o diabo é o pai da mentira? É lógico que os
sem-Deus mintam. Além disso, não nos esqueçamos do que Jesus predisse sobre o
ódio que o “mundo” (esse “mundo” impregnado de mal de que
estávamos falando) dedicaria aos seus discípulos: “Se o mundo vos odeia” – dizia Cristo –, “sabei que me odiou a mim antes
que a vós. Se fôsseis do mundo, o mundo vos amaria como sendo seus. Como,
porém, não sois do mundo, mas do mundo vos escolhi, por isso o mundo vos odeia
[...]. Se me perseguiram, também vos hão de perseguir a vós” (Jo 15,
18-20).
– Está bem. Mas o senhor só falou
de duas ideologias do mal. Qual é a terceira?
A terceira ideologia do mal
– Já me referi a ela um pouco, de
passagem; e você, aliás, também falou bem claramente dela no início do nosso
diálogo. É aquela ideologia materialista e hedonista – hoje predominante – que
tem o mesmo dogmatismo e a mesma intransigência que as duas anteriores, ainda
que, mais do que uma ideologia completa e estruturada, seja um puzzle
sincretista de idéias hedonistas, de agnosticismo, de relativismo, de niilismo,
de libertinagem requintada..., embrulhado tudo no papel colorido do “direito de
fazer o que você bem entender”, pois para isso é que existe a liberdade...
Como as outras duas ideologias, é
ferozmente – diria, febrilmente – anticristã, e sobretudo anti-católica. Se
quer dar-lhe um nome, vamos chamá-la de Laicismo, uma “filosofia” que reúne tudo o que acabo de enumerar e mais várias
pitadas de condimentos materialistas. O seu credo tem uma única certeza: “Não terás outros deuses fora do teu eu e da
tua liberdade absoluta”. Como você já dizia, no início da nossa conversa,
esse novo dogma da fé atéia ou agnóstica domina cada vez mais o mundo, as
esferas do poder, as relações internacionais, a cultura, e quer atropelar tudo.
– É verdade. Por favor, continue.
– João Paulo II, numa audiência
de 24.01.2005, dizia que é “uma ideologia
que leva gradualmente, de forma mais ou menos consciente, à restrição da
liberdade religiosa até promover um desprezo ou ignorância de tudo o que seja
religioso, relegando a fé à esfera do privado e opondo-se à sua expressão
pública”.
Para o laicismo, a democracia só
pode existir se todos reconhecerem que não há nem verdades nem valores
absolutos, que tudo é relativo, é apenas opinião pessoal. Consiste, como você
já sabe, em elevar à categoria de princípios intocáveis o relativismo: não há
verdades, só há opiniões; e o subjetivismo: cada qual tem a “sua” moral, a “sua” religião, os “seus”
valores, que valem tanto quanto os dos outros...; basta que ele “sinta” assim.
Alguém professa uma religião?
Acredita em verdades e em valores morais baseados na lei divina – a começar
pela lei natural, que é a “verdade”
racionalmente cognoscível sobre a natureza – e na Palavra de Deus? Esse, então,
é um perigo para a democracia! Irão obrigá-lo, à força de pressões da mídia,
dos organismos políticos e até da lei, a trancar a sua fé, os seus valores, as
suas convicções no porão oculto da sua consciência e no recinto fechado do seu
templo. Se ousar expô-los em público, ou, pior ainda, defendê-los como valores
éticos válidos para a vida social, terá que ser banido como um perigoso inimigo
da liberdade e da democracia.
Com toda a razão, comentava o
cardeal Ratzinger, em 2004: “O laicismo não é mais aquele elemento de neutralidade, que abre espaços
de liberdade para todos. Começa a transformar-se numa ideologia, que se impõe
por meio da política e não concede espaço público à visão católica e cristã”.
No mesmo ano, em diálogo com o
professor universitário e Presidente do Senado italiano Marcello Pera, um
agnóstico aberto aos valores éticos, Ratzinger acrescentava:
“Ultimamente tenho notado, com maior freqüência, que o relativismo – à
medida que se vai tornando a forma de pensamento comumente aceita – tende à
intolerância, transformando-se num novo dogmatismo. A political correctness (o
politicamente correto), com a sua pressão onipresente, quereria erguer o reino
de um único modo de pensar e de falar. [...] Seria assim, desse único modo, que
todos deveriam pensar e falar, se quisessem estar à altura do presente.
Enquanto a fidelidade aos valores tradicionais e aos conhecimentos (racionais)
que os sustentam é tachada de intolerância, o padrão relativista torna-se
obrigatório”.
É natural que, após a sua eleição
como Papa, faça questão de alertar uma e outra vez sobre o perigo da “ditadura do relativismo”.
– É espantoso. Imagino que o
senhor saiba que, nos Estados Unidos, já é proverbial dizer que a única coisa
que, hoje, não é politicamente incorreta é agredir e caluniar a Igreja
Católica, o Papa e os sacerdotes católicos, as obras católicas... E isso, não
esporadicamente, mas por meio de campanhas mundiais sistemáticas, perfeitamente
organizadas. Mas ai de quem discordar das abortistas, das feministas radicais,
dos defensores do casamento gay e das experiências com embriões humanos...!
Todos podem opinar, menos os católicos, reduzidos à condição de infra-cidadãos
“malháveis” (desculpe o neologismo).
– E muitos se deixam malhar como
carneiros! Seja como for, acho lógico que, perante esses atentados cada vez
mais abertos e agressivos contra a liberdade civil dos católicos, a Santa Sé
tenha saído em defesa da liberdade religiosa e política dos seus fiéis, com
vários documentos, entre eles a Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas
à participação e comportamento dos católicos na vida política, da Congregação
para a Doutrina da Fé, de 24. 11. 2002, onde se lê:
“Nas sociedades democráticas, todas as propostas são discutidas e
avaliadas livremente. Aquele que, em nome do respeito à consciência individual,
visse no dever moral dos cristãos de serem coerentes com a própria consciência
um motivo para desqualificá-los politicamente, negando a sua legitimidade de
agir em política de acordo com as próprias convicções relativas ao bem comum,
cairia numa espécie de intolerante laicismo” (n. 6).
Creio que, por ora, isto é
suficiente. Mas já está na hora de darmos mais um passo rumo a uma visão
otimista do mundo atual, a despeito de todas as nuvens negras de Mordor. Vamos
sair ao ar livre e ao sol, mas prepare o seu coração, pois chegou o momento de
“queimar” o seu pessimismo...
– Já vejo que chuva grossa vai
cair, o ferro em brasa vem para cima de mim...
(Continua... Tenha paciência!)
(28.10.2021)
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Complementando sobre a Graça santificante citada no excerto abaixo.
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE (diálogo de fé com um pessimista) - Parte 02
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
COMO DEUS VÊ AS SOMBRAS
–
Eu estou convencido de que, para ponderar corretamente os negrumes do mundo,
que você tanto lamenta e eu também, é necessário partir de uma certeza que a
nossa fé nos garante: Deus ama este mundo, onde há tantas coisas horríveis.
Deus o ama até com loucura: “Tanto amou
Deus o mundo – dizia Cristo a Nicodemos – que lhe deu o seu Filho único, para
que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).
São Paulo chegará a afirmar que o ama em demasia, quase que passando dos
limites: “Deus, que é rico em
misericórdia, pelo excessivo amor com que nos amou [...], deu-nos a vida por
Cristo” (Ef 2, 4-5).
–
Desculpe, mas a respeito dessas afirmações eu vejo uma contradição na Bíblia.
Não faz muitos dias, eu que gosto de lê-la diariamente, li e anotei vários trechos
da primeira carta de São João, onde parece dizer o contrário. Lembra-se? Não
ameis o mundo nem as coisas do mundo – diz –. Se alguém ama o mundo, não está
nele o amor do Pai (1 Jo 2, 15). Como se entende isso? Cristo diz que o Pai ama
o mundo e João diz que amar o mundo e amar o Pai são coisas incompatíveis...
–
Foi bom você mencionar esse texto, porque aí há um equívoco que é preciso
esclarecer. Na realidade, a palavra mundo, no Novo Testamento, é usada em três
sentidos diversos:
1.
Umas vezes, significa apenas, de modo geral, o mundo criado por Deus – toda a
obra da criação material e espiritual –, e, neste sentido, o livro do Gênesis
diz que, após ter criado o mundo, Deus viu tudo quanto tinha feito, e achou que
era muito bom (Gên 1, 31);
2.
Outras vezes, significa a humanidade toda, a humanidade que caiu desde o
princípio, que pecou, mas que Deus nunca deixou de amar nem desistiu de salvar
("Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo
seja salvo por Ele": Jo 3, 17), verdade consoladora que Cristo repete uma e
outra vez (“Eu não vim para condenar o
mundo, mas para salvá-lo”: Jo 12, 47);
3.
Finalmente, há outras ocasiões, bastante freqüentes no Novo Testamento, em que
a palavra mundo é usada para significar tudo aquilo que, nesta terra, se opõe a
Deus, ou seja, aquela grande parte deste mundo que está dominada pelo pecado. É
neste sentido que São João fala, por exemplo, de que o Filho de Deus estava no
mundo e o mundo foi feito per ele, e o mundo não o conheceu (cfr. Jo 1, 10).
Dentro
dessa perspectiva negativa, Jesus chama ao demônio príncipe deste mundo (Jo 14,
30); e João, de maneira bem categórica, declara que tudo o que há no mundo é
concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida (1 Jo 1,
16) e chega a dizer que o mundo todo jaz sob o poder do Maligno (1 Jo 5, 19).
É
disso, concretamente, que fala o Catecismo da Igreja Católica quando diz: “As conseqüências do pecado original e de
todos os pecados pessoais dos homens conferem ao mundo, em seu conjunto, uma
condição pecadora, que pode ser designada com a expressão de São João: «O
pecado do mundo» (Jo 1, 29). Com esta expressão quer-se designar também a
influência negativa que exercem sobre as pessoas as situações comunitárias e as
estruturas sociais que são fruto do pecado dos homens” (n. 408).
O MUNDO DO PECADO
–
Quando você, amigo leitor, desabafava sobre as sombras do mundo atual, apenas
estava constatando que o mundo nesse terceiro sentido, ou seja, o “mundo”
moldado e dominado pelo pecado, infelizmente existe e, por vezes, cresce tanto
que quase parece ocupar tudo, tapando a visão do resto. Daí o pessimismo. Só
que essa constatação esquece um dado fundamental.
–
Qual?
–
O seguinte. Se um cristão quer julgar o mundo com realismo, tem que ver toda a
realidade, não só uma parte. Concretamente, tem que ver que, neste mundo, ao
lado da forte presença do pecado, há a presença ainda mais forte e ativa do
amor de Deus. Se só levássemos em conta a presença do pecado, infelizmente
evidente, teríamos uma visão míope ou até cega.
É
preciso que nunca percamos de vista essas “duas” realidades. Bento XVI, no
discurso inaugural da Conferência dos Bispos da América Latina e do Caribe, em Aparecida,
no dia 13 de maio de 2007, dizia palavras que deveríamos meditar: “O que é a «realidade»? O que é o real?
[...]. Quem exclui Deus do seu horizonte falsifica o conceito de «realidade» e,
em conseqüência, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas
destrutivas. A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: Só quem
reconhece Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e
realmente humano”.²
–
Tem toda a razão. Mas não é fácil ver a ação de Deus nesse “mundo”, o terceiro da sua classificação,
o mundo do pecado...
–
Certo. Então vamos dar mais um passo. Penso que nos servirá de ajuda refletir
mais um pouco sobre o que ensina o Catecismo da Igreja Católica acerca da
presença do pecado e das suas conseqüências nefastas, ao mesmo tempo que fala –
por incrível que pareça – das conseqüências “maravilhosas” do pecado...
–
Maravilhosas? Essa não!
–
Espere e verá, e, se você é realmente cristão, terá que concluir que “essa sim”. Escute o que diz o Catecismo.
Depois de recordar que antes de mais nada é preciso “reconhecer a ligação profunda do homem com Deus, pois fora desta relação
o mal do pecado não é desmascarado na sua verdadeira identidade de recusa e de
oposição a Deus...” (n. 386), passa a tratar do pecado original e mostra as
suas conseqüências na vida e na história dos homens: “A harmonia em que viviam, graças à justiça original, ficou destruída; o
domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo ficou abalado; a união
do homem e da mulher ficou sujeita a tensões; as suas relações serão marcadas pela
cupidez e pela dominação. A harmonia com a Criação está rompida; a Criação
visível tornou-se para o homem estranha e hostil [...]. A partir do primeiro
pecado, uma verdadeira «invasão» do pecado inunda o mundo [...]. A Sagrada
Escritura e a Tradição da Igreja não cessam de lembrar a presença e a universalidade
do pecado na história do homem” (ns. 400 e 401).
–
Diz muito bem o Catecismo. É uma fotografia da realidade. Impossível não vê-la.
Fala de “inundação” do pecado, e todos
vemos que, mais do que uma inundação, hoje é um verdadeiro tsunami... Onde está
então a “maravilha” de que o senhor
falava?
–
Está onde a Igreja ensina que está. Sabe o que diz a liturgia da Vigília Pascal
ao referir-se ao pecado original? “Feliz
culpa, que mereceu ter tal e tão grande Redentor!” – venturosa culpa, que
fez com que Jesus viesse a nós! E o que diz São Paulo? Onde foi abundante o pecado,
foi superabundante a graça trazida pela Redenção.
É
como se dissesse: “Que fantástico! Graças
ao pecado, recebemos a maravilha do amor e da graça de Cristo, mil vezes
superior ao pecado” (cfr. Rom 5, 20). É um paradoxo, mas é assim. Essas
considerações, como é óbvio, nada têm de levianas. O Catecismo fala com plena
consciência do mal do pecado, dessa triste realidade que é o único verdadeiro
mal do mundo. Mas, se o faz, é para depois poder falar mais alto e com maior
força do benefício imenso da Redenção.
Mal
acaba de expor a doutrina sobre o pecado original, explica que, logo depois da
queda dos primeiros pais, “Deus chama o
homem e anuncia-lhe de modo misterioso a vitória sobre o mal e o soerguimento
da queda”, e reforça essa afirmação esperançosa citando palavras de São
Leão Magno (século V) tão otimistas como as de São Paulo acima citadas: “A graça inefável de Cristo deu-nos bens melhores
do que aqueles que a inveja do Demônio nos havia subtraído”; e, a seguir,
transcreve palavras de São Tomás de Aquino cheias da mesma perspectiva
otimista: “Deus permite que os males
aconteçam para tirar deles um bem maior” (ns. 410 e 412).
A
“vitória sobre o mal” fica mais
impressionante se tivermos diante dos olhos a magnitude e perversidade do mal,
que Deus supera com o “bem maior” que
dele tira. É com essa visão que o Papa João Paulo II, no seu último livro
Memória e identidade³, refletia sobre os três grandes tsunamis do século XX,
que ele designava por ideologias do mal.
Falava
por experiência própria, pois tinha sofrido pessoalmente a opressão asfixiante
de duas dessas ideologias materialistas e anticristãs que tiranizaram a sua
Polônia natal: o nazismo e o comunismo. Vale a pena deter-nos nessas “sombras de Mordor”. Já lhe dizia antes
que iríamos refletir sobre as sombras – sem atenuá-las nem pintá-las de azul –
para depois contemplar melhor a luz.
(27.10.2021)
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OTIMISMO CRISTÃO, HOJE
(diálogo de fé com um pessimista) - Parte 01
por Pe. Francisco Faus
O DESABAFO DE UM PESSIMISTA AMARGURADO:
“O REINO DAS SOMBRAS DA MORTE”
– As sombras de Mordor já estão tomando conta de tudo!
– O quê?
– Será que o senhor é dos poucos que não leram O Senhor dos Anéis?
– Li, sim, por acaso, já faz algum tempo. Mas, escute, você quem é?
– Ninguém... Aliás, sou um leitor.
– Ah! Já nos encontramos outras vezes... Desta vez, você é um leitor
jovem ou um leitor velho?
– Tenho trinta e dois anos.
– Jovem. Boa idade ainda para arranjar emprego... Mas o que é que você
queria dizer com essa história de “Mordor”?
– O que qualquer um que não seja cego pode enxergar no mundo atual.
Não vai dizer que esqueceu que Mordor é o domínio do Senhor das Trevas...
– Sei, sim. São as terras de Sauron, o “Senhor dos Anéis”, o rei do ódio e
da destruição...
– Pois então, basta abrir os olhos para perceber que as trevas de Mordor
estão cada vez mais espalhadas e densas, invadindo o mundo, a política, a
sociedade, a cultura, as escolas, as famílias... Onde antes havia luz, agora há
trevas.
– Você fala de “antes” como se tivesse vivido muito...
– Não é preciso ter vivido muito, basta conhecer um pouquinho de
história e ter um mínimo de sensibilidade. E gostaria de que percebesse que não
falo de impressões emotivas nem de interpretações subjetivas, mas daquilo que
todo o mundo vê e toca por toda a parte, todos os dias e a todas as horas. Para
ser mais explícito, vou tentar fazer-lhe um resumo das sombras de Mordor mais
patentes e o senhor vai-me dizer se é assim como digo ou não.
A PRIMEIRA SOMBRA
Veja. Primeiro, o mundo está envolto em brumas cada vez mais densas de
falta de fé e de sentido transcendente da vida. Todos sabemos que se está
propagando – entre jovens e adultos e velhos, que pretendem ser cultos – a
moda do agnosticismo, do niilismo e do pseudo-misticismo deliqüescente do
vale-tudo: chame-o de New Age ou como quiser. Cada qual fabrica ou escolhe a
capricho a sua “filosofia de vida” ou a sua “crença”, cada uma mais barata e
vazia do que a outra; o importante é que não custe nada, que não exija nem
proíba nada; em todo o caso, que só exija os direitos do prazer e da vaidade.
Escolhe-se a “pseudo-verdade” interesseira como se escolhe na loja um par de
sapatos bem em conta, desde que correspondam ao tamanho do pé; só que aqui
o “pé” se chama ambição, egoísmo, vício, rejeição do compromisso e da
fidelidade..., numa autêntica maratona de mentiras que são batizadas com o
nome de autenticidade.
– Permite-me interromper? Desculpe, mas não me parece bom caminho
filosofar sobre o mundo atual como você faz, com tanta amargura e pessimismo;
quase diria que com ódio... Assim não iremos longe; quando muito, cairemos
num buraco negro de desesperança.
– Está bem. Vejo que prefere não me escutar. Então, conversa encerrada.
– Não, meu amigo, desculpe de novo. Só estou manifestando um ponto
de vista diferente do seu, um ponto de vista que gostaria de expor e que de fato
vou expor depois mais amplamente, mas respeito as suas opiniões e não quero
ser grosseiro. Penso que devemos respeitar o pensamento de todos. Por favor,
continue.
A SEGUNDA SOMBRA
– Muito bem. Passemos, então, à segunda nuvem; e, com isso, não estou
classificando as “sombras de Mordor” pela ordem de importância; é só um
modo de falar. É evidente que, no bojo dessas primeiras nuvens negras, viajam
os raios e trovões de um laicismo anti-religioso – não apenas a-religioso –,
raivoso e descarado; especialmente hostil à Igreja Católica, que procura
desprestigiar, caluniar, achincalhar com qualquer pretexto: basta ler a
imprensa, assistir a entrevistas e programas de tv, e saber do que se diz em
inúmeras aulas de colégios, cursinhos e faculdades.
Veja o que acontece, por exemplo, quando um católico tenta abrir a boca
sobre questões controvertidas – e vitais! – de atualidade, como as questões
sobre o direito à vida. Logo se procura costurar-lhe a boca com os grampos de
uma gritaria hipocritamente escandalizada. Chovem invectivas, insultos,
motejos, insinuações contra a Igreja, acusada de obscurantismo,
anticientificismo e outras imbecilidades. Bradam, como se fosse um dogma da
nova fé – uma fé de que eles são os sumos pontífices e grandes inquisidores –,
que não se deve misturar religião e moral com as leis, os projetos e as decisões
do governo, mesmo que, como acontece na quase totalidade dos casos, os
cristãos manifestem apenas opiniões estritamente éticas, racionais e científicas,
sem a menor pretensão de impor dogmas de fé.
É assim que está surgindo, de forma acelerada, uma nova “democracia”
totalitária e ditatorial, que pretende espoliar milhões de cidadãos do direito
fundamental de opinar, elemento essencial da democracia; direito que ficaria
monopolizado nas mãos fanáticas dos materialistas-hedonistas, dos niilistas
nietzscheanos e dos fiéis devotos do credo veteromarxista, essas figuras que se
auto-atribuem, por decreto pessoal, a exclusiva do manejo dos cordeizinhos da
história.
– Rapaz, como você gosta de descer a lenha e provocar polêmica! Não
acho...
– Paramos, então.
– Não, não! Já lhe disse que pode continuar, livremente..., ainda que lhe
aviso que, como já o adverti, eu também falarei livremente mais adiante. Só lhe
pediria licença, neste momento, para fazer um inciso e dirigir-me aos “outros”
leitores, que eventualmente estejam folheando estas páginas.
– À vontade.
– (Ao pé do ouvido de vocês, que me lêem, eu queria dizer que tudo o que
vem a seguir, neste texto, não vai ser tão irado e soturno. Esperem. O ar vai
clarear daqui a poucas páginas...).
Pronto, já dei o recado aos outros leitores. Você estava dizendo?
A TERCEIRA SOMBRA
– Ia falar da terceira nuvem, que, no fundo, é a que as mais das vezes
provoca os raios e trovões da anterior. Mais do que de uma nuvem, eu falaria
aqui de uma erupção viscosa de piche, que captura e arrasta em suas lavas –
lavas que, por sinal, rendem lucros enormes – tudo o que encontra pelo
caminho, mulheres e homens, adolescentes, jovens e velhos, e até crianças.
Refiro-me à enxurrada da pornografia e do sexo desnaturado; do sexo-jogo meramente egoísta, mesmo no casamento; dos abusos, excessos e
aberrações da genitalidade de consumo. A família, cada vez mais dizimada,
apresenta os alicerces rachados, demolidos até mesmo pela picareta das leis; e a
imagem do ser humano, da dignidade dos filhos de Deus, fica reduzida a uma
poça suja, em que qualquer um chapinha, ou a um cuspe que se joga de lado.
Perdoe-me se cito, de modo atenuado e não textual, a ironia um tanto grosseira
de um filósofo moderno: “Ao longo da história, o ser humano foi adquirindo um
maior conhecimento de si mesmo. Durante milênios, pensava-se que fosse uma
unidade de corpo e alma, de matéria e espírito. Agora, nestes últimos tempos,
comprovou-se por fim que é uma unidade de sexo e porta-sexo. Tudo é sexo, o
resto é só suporte para sustentar o sexo”.
– Que exagero!
– Pode ser. Mas não se esqueça de duas coisas, sem a pretensão de lhe
dar lições. Por um lado, o sexo hedonista e sem entraves, como é patente, é
insaciável. Por isso, cada vez reivindica maiores “direitos”, maiores “campos” de
exercício e maiores “liberdades”, e acaba defendendo verdadeiras
monstruosidades, como se fossem normais; por exemplo, estão sendo
produzidos na surdina filmes em que se faz a apologia da pedofilia, algum deles
promovido pelos mesmos “intelectuais” que acusam padres de praticá-la. É
natural que os que vivem chafurdando no sexo pervertido odeiem uma Igreja
que – embora não se canse de mostrar amor e compreensão para com todos os
que erram – se recusa, pelo bem da humanidade, a considerar normal ou
inocente o “sexo livre”, o adultério sistemático, o homossexualismo proselitista,
o aborto, o infanticídio eugênico (já praticado em vários países do primeiro
mundo), e, em geral, o desprezo pela vida humana nascente ou terminal.
Fazendo um leve esforço de memória, lembre-se do Oscar concedido ao melhor
filme estrangeiro de 2005: Mar adentro, que outra coisa não é senão a defesa
“linda” e sentimental do direito à eutanásia, a matar ou matar-se.
Acha que é simples acaso que este mergulho nos desvios sexuais vá
acompanhado, quase sempre, pela praga da droga e/ou pelo alcoolismo, que
desestruturam e arruínam milhares de seres humanos desde a adolescência?
Acha estranho que esses desvarios acabem, às vezes, como vem acontecendo
cada vez mais, na decisão fria e calculada de assassinar pai, mãe, irmãos..., no
chamado “aborto ascendente”? Já deve ter lido a respeito disso. O raciocínio
subjacente a esses crimes é o seguinte: Por que, se os pais eliminam
tranqüilamente – com o aplauso caloroso da mídia e de celebridades – seus
filhos no ventre materno, para gozar de mais liberdade, dinheiro e prazer na
vida, os filhos não vão poder eliminar os pais, quando estes lhes tolhem o acesso
ao dinheiro, à liberdade e aos prazeres da vida?
– Desculpe-me, mas você me faz sentir mal. Por mais católico que seja,
parece-me doente, de tão amargo. Será que se esqueceu da imensa quantidade
de gente boa que anda pelo mundo? É possível que você ignore que esta época
de sombras é também uma época de grandes luzes, que este mundo enviscado
de pecado é também um mundo em que se multiplicam iniciativas cristãs
belíssimas e eficazes, em que surgem novas vocações de dedicação total a Deus e
ao próximo, e há exemplos fantásticos de bondade, de abnegação, de santidade?
Justamente ao fazer o resumo da sua estadia no Brasil, em 2007, o Papa
comentou, muito bem-humorado, que no nosso país, surge quase que
diariamente um novo movimento apostólico, um novo caminho de entrega a
Deus e de serviço ao próximo, que arrasta a generosidade de muitos jovens.
Você citou o Senhor dos Anéis, mas não se esqueça de que Mordor acaba
vencido, e de que o amor, o sacrifício abnegado, a fidelidade e a bondade,
encarnados em Frodo e Sam, afinal acabam triunfando... Seja positivo!
– Espero que o senhor me convença disso, e, aliás, já vejo por onde vão
soprar os ventos quando tomar a palavra... Mas, enfim, uma vez que comecei,
deixe-me terminar.
– Eu não preciso “deixar”, meu amigo. Eu escuto. Você opina e eu vou
opinar depois. Não pretendo tapar a boca de ninguém.
A QUARTA SOMBRA
– Então aí vai a última nuvem negra de Mordor, um enorme exército de
nazgûl, se é que se lembra do que são os cavaleiros negros ou espectros do
Anel. É nuvem ameaçadora. Está tingida de um vermelho que congela o coração.
Porque é a nuvem da violência. Todos bradam contra a violência, mas o que se
faz para eliminar as “lições” constantes de violência que, desde a infância, todos
recebem dos videogames, da televisão, da Internet, do cinema, dos livros, dos
jornais? É claro que também aqui quem está guiando as rédeas é o dinheiro!
Violência dá lucro, como o sexo, a droga, a indústria do aborto... Muito dinheiro,
muito!
O dinheiro! Esse parece ser o “ídolo”, o único deus soberano da maioria,
neste mundo que explora, larga e tritura os mais pobres, cada vez mais pobres;
que despreza os desvalidos, abandona os doentes (veja as “maravilhas” da saúde
pública!), afunda legiões de gente honesta e competente na angústia
insuportável do desemprego, defende tartarugas fluviais e nega trabalho a
“homens humanos” de mais de quarenta anos; arquiteta atentados brutais, com
bandeiras de direita e de esquerda, de nacionalismo ou de vingança; e, em
contraste com a miséria absoluta de tantos, alimenta as mil e uma formas de
corrupção e enriquecimento ilícito em quase todos os setores públicos e
privados da sociedade...
– Ufa! Você deixa o coração e o estômago apertados com a sua retórica,
porque não pode negar que está “discursando”; até parece comício. Será que
você acha que está próximo o fim do mundo? Porque o vejo profeta de desgraças
e apocalíptico antes da hora.
– Será que é antes da hora? Quando se toca o fundo do poço, e não é
possível cair mais baixo, não parece absurdo pensar que o fim está chegando.
– Eu fico, meu amigo, com as palavras de Jesus: “Não sabeis o dia nem a
hora” (Mt 25, 13), e acho perda de tempo especular sobre a iminência do Juízo
Final. Prefiro confiar na Providência misericordiosa de Deus. Por outro lado,
vejo que, do próprio fundo do poço, brotam renovos cheios de vitalidade, tanta
que os creio capazes de enfrentar serenamente e com fruto todas as nuvens de
Mordor...
– Sinto muito, mas não acredito mais nisso... Já me fartei de ouvir
palavras bonitas.
DEUS E AS SOMBRAS
SÓ PALAVRAS BONITAS?
– Pois eu confio nessas “palavras bonitas”, e mais: tenho a certeza de que,
em boa parte, todo esse mal depende de cada um de nós. Não fiquemos só
generalizando. Criticamos, lamentamos, mas somos uns tremendos omissos.
Choramos lágrimas turvas, por assim dizer, e deixamos de irrigar com água
limpa as boas sementes do mundo, que – como veremos – são muitas. Por isso,
gostaria de que todos aprendêssemos a cantar no coração, sentindo-a
sinceramente, a música esperançosa do Gonzaguinha:
"(...)Ah, meu Deus, eu sei que a vida devia ser
bem melhor e será.
Mas isso não impede que eu repita:
É bonita, é bonita e é bonita! (...)"
Depende de você e de mim que a vida seja mais bonita, e vou repetir-lhe
isso mil vezes, se for preciso... Mas não quero colocar o carro à frente dos bois...
– “É bonita!” Fazer poesia é fácil, mas, na minha opinião, isso não passa
do famoso “words, words, words”!
– Então, que Deus o ajude. Você precisa sarar do mal do pessimismo.
Não consigo deixar de citar-lhe, por mais que não lhe agradem, aquelas famosas
palavras do general Mac Arthur dirigidas aos jovens cadetes de West Point: “És
tão jovem quanto a tua fé, tão velho quanto a tua dúvida; tão jovem quanto a tua
esperança, tão velho quanto o teu desencanto... Se um dia o teu coração começar
a ser mordido pelo pessimismo e roído pelo cinismo, que Deus tenha
misericórdia da tua alma de velho”.
– Muito obrigado pela descompostura. Acho que o senhor não entendeu
nada.
– Não se ofenda, nem eu me vou ofender. Mas já está na hora de
pararmos com essa pirotecnia verbal e refletir serenamente. Sabe? Eu gostaria,
se você não se importar, de falar-lhe com um pouco de calma, de expor outra
visão deste mundo que tanto o amargura..., sem pretender tapar o sol com a
peneira nem enfeitar os males com fantasias de carnaval.
– Fique à vontade e fale quanto quiser. Não sou eu que vou amordaçá-lo...
– Muito obrigado..., ainda que não entenda isso da mordaça. Acho que
não estou sendo tão rude ou intransigente consigo, mas deixemos para lá.
– Desculpe, não queria ofendê-lo. Garanto que sou todo ouvidos.
– Pois bem. Veja. Ainda que pareça um paradoxo, para iniciar a minha
reflexão sobre os fortíssimos motivos que temos para ser otimistas, não vou
falar de flores nem vou pintar o mundo de azul. Vou começar focalizando
realidades bem sombrias, que certamente existem. E desde já peço ajuda a
Deus para que ambos possamos contemplá-las com os olhos da fé, dessa virtude
que proporciona o ajuste do nosso olhar com o de Deus: “É como se
contemplássemos tudo com o olho de Deus”, diz São Tomás de Aquino. Estou
convencido de que, da visão da fé, sempre salta a faísca luminosa do otimismo,
mesmo no seio da escuridão mais densa.
– Gostaria muito de ver. Afinal, eu tenho fé, e se desabafo com tanta dor,
trincando-me todo por dentro, é porque sou um católico convicto que, como
tantos outros, vem sofrendo demais...
– Pois, então, valerá a pena tentar.
(Continua... Tenha paciência!)
(26.10.2021)
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Pedagogia do corpo, ordem moral e manifestações afetivas
por São João Paulo II
1.
Convém-nos agora concluir as reflexões e as análises baseadas nas palavras
ditas por Cristo no Sermão da Montanha, com que se referiu ao coração humano,
exortando-o à pureza: "Ouvistes que
foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém digo-vos que todo aquele que olhar
para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração"
(Mt 5, 27-28).
Dissemos
repetidamente que estas palavras, escutadas uma vez pelos ouvintes, em número
limitado, daquele Sermão, se referem ao homem de todos os tempos e lugares, e
fazem apelo ao coração humano, em que se inscreve a mais interior e, em certo
sentido, a mais essencial trama da história.
Os enunciados de Cristo têm também este fim: são enunciados "pedagógicos". Contêm uma pedagogia do corpo, expressa de modo conciso e, ao mesmo tempo, o mais possível completo. Quer a resposta dada aos Fariseus quanto à indissolubilidade do matrimônio, quer a palavras do Sermão da Montanha a respeito do domínio da concupiscência, demonstram — pelo menos indiretamente — ter o Criador assinalado como característica do homem o corpo, a sua masculinidade e feminilidade; e que na masculinidade e feminilidade lhe assinalou em certo sentido como característica a sua humanidade, a dignidade da pessoa, e também o sinal transparente da "comunhão" interpessoal, em que o homem mesmo se realiza através do autêntico dom de si.
O que adquire particular atualidade para o homem contemporâneo, cuja ciência no campo da biofisiologia e da biomedicina muito progrediu. Todavia, esta ciência trata o homem sob determinado "aspecto" e, portanto, é mais parcial que global. Conhecemos bem as funções do corpo como organismo, as funções ligadas com a masculinidade e a feminilidade da pessoa humana.
Mas tal ciência, de per si, não desenvolve ainda a consciência do corpo como sinal da pessoa, como manifestação de espírito. Todo o desenvolvimento da ciência contemporânea, relativo ao corpo como organismo tem, sobretudo, o caráter do conhecimento biológico, porque é baseado na separação, no interior do homem, entre aquilo que é nele corpóreo e aquilo que é espiritual.
Quem se serve de um conhecimento tão unilateral das funções do corpo como organismo, não é difícil que chegue a tratar o corpo, de modo mais ou menos sistemático, como objeto de manipulações; em tal caso o homem cessa, por assim dizer, de identificar-se subjetivamente com o próprio corpo, porque privado do significado e da dignidade derivantes de este corpo, ser próprio da pessoa.
Encontramo-nos aqui no limite de problemas, que muitas vezes exigem soluções fundamentais, impossíveis sem uma visão integral do homem.
Aquela pedagogia pode ser entendida sob o aspecto de uma própria "espiritualidade do corpo"; o corpo, de fato, na sua masculinidade ou feminilidade, é dado como encargo ao espírito humano (o que de maneira estupenda foi expresso por São Paulo na linguagem que lhe é própria) e por meio de uma adequada maturidade do espírito torna-se, também ele, sinal da pessoa, de que a pessoa está consciente, e autêntica "matéria" na comunhão das pessoas.
Por outras palavras: o homem, através da sua maturidade espiritual, descobre o significado esponsal, próprio do corpo. As palavras de Cristo no Sermão da Montanha indicam que a concupiscência, de per si, não desvela ao homem aquele significado, antes pelo contrário, o ofusca e obscurece.
Quanto às enunciações contemporâneas da Igreja, é necessário tomar conhecimento do capítulo intitulado "Dignidade do Matrimônio e da Família e sua valorização", da Constituição pastoral do Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, parte II, c. I) e, em seguida da Encíclica Humanae vitae de Paulo VI.
Cristo falava ao homem de todos os tempos e lugares; as enunciações da Igreja tendem a atualizar as palavras de Cristo, e por isso devem ser relidas segundo os princípios daquela teologia e daquela pedagogia que nas palavras de Cristo encontram raiz e apoio. É difícil realizar aqui uma análise global das citadas enunciações do magistério supremo da Igreja. Limitar-nos-emos a referir algumas passagens.
Eis de que
modo o Vaticano II — pondo entre os mais urgentes problemas da Igreja no mundo
contemporâneo "a valorização da
dignidade do matrimônio e da família" caracteriza a situação existente
neste campo: A dignidade desta instituição (isto é, do matrimônio e da família)
não resplandece em toda a parte com igual brilho. Encontra-se
obscurecida pela poligamia, pela epidemia do divórcio, pelo chamado amor livre
e por outras deformações. Além disso, o amor conjugal é muitas vezes profanado
pelo egoísmo, pelo amor do prazer e pelas práticas ilícitas contra a
geração" (Gaudium et Spes, 47).
Paulo VI, expondo na Encíclica Humanae vitae este último problema, escreve entre outras coisas: "Pode-se ainda temer que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito da mulher e (...) chegue a considerá-la como simples instrumento de gozo egoísta e não já como sua companheira respeitada e amada" (Humanae vitae, 17).
É exatamente esta — como já dissemos — que se torna o método fundamental de toda a pedagogia cristã do corpo. Fazendo referência às palavras citadas, pode-se afirmar que o fim da pedagogia do corpo está precisamente em fazer que "as manifestações afetivas" — sobretudo as "próprias da vida conjugal" — sejam conformes à ordem moral, numa palavra, à dignidade das pessoas.
Nestas palavras volta o problema da recíproca relação entre o "ecos" e o "ethos", de que já tratamos. A teologia, entendida como método da pedagogia do corpo, prepara-nos também para as novas reflexões sobre a sacramentalidade da vida humana e, em particular, da vida matrimonial.
O
Evangelho da pureza do coração, ontem e hoje: concluindo nós com esta frase o
presente ciclo das nossas considerações — antes de passar ao ciclo sucessivo,
em que a base das análises serão as palavras de Cristo sobre a ressurreição do
corpo —, desejamos ainda dedicar um pouco de atenção à "necessidade de criar clima favorável para a
educação da castidade", de que trata a Encíclica de Paulo VI (cf. Humanae vitae, 22), e queremos centrar
estas observações sobre o problema do "ethos"
do corpo nas obras da cultura artística, com particular referência às situações
que encontramos na vida contemporânea.
Roma,
08 de abril de 1981.
São
João Paulo II
Meu amado Papa trilheiro... ❤❤❤
Oração que João Paulo II rezava, todos os dias, desde criança:
"Vinde Espírito Criador,
a nossa alma visitai
e enchei os corações
com vossos dons celestiais.
Vós sois chamado o Intercessor de Deus
excelso dom sem par,
a fonte viva, o fogo, o amor,
a unção divina e salutar.
Sois o doador dos sete dons
e sois poder na mão do Pai,
por Ele prometido a nós,
por nós seus feitos proclamai.
A nossa mente iluminai,
os corações enchei de amor,
nossa fraqueza encorajai,
qual força eterna e protetor.
Nosso inimigo repeli,
e concedei-nos a vossa paz,
se pela graça nos guiais,
o mal deixamos para trás.
Ao Pai e ao Filho Salvador,
por vós possamos conhecer
que procedeis do Seu amor,
fazei-nos sempre firmes crer.
Glória a Deus Pai,
ao Filho, que ressuscitou dos mortos,
e ao Espírito Santo
por todos os séculos.
Amém!"
Fontes:
https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/1981/documents/hf_jp-ii_aud_19810408.html
https://www.vaticannews.va/pt/santo-do-dia/10/22/s--joao-paulo-ii--papa.html
(22.10.2021)
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Sobre o emergir e o imergir...
por Papa Francisco
Amados
irmãos e irmãs, bom dia!
O
Evangelho da liturgia de hoje (Mc 10, 35-45), narra-nos que dois discípulos,
Tiago e João, pedem ao Senhor que um dia se possam sentar com Ele na glória,
como se fossem “primeiros-ministros”,
algo do gênero. Mas os outros discípulos ouvem-nos e ficam indignados.
Neste
ponto, Jesus oferece-lhes pacientemente um grande ensinamento: a verdadeira
glória não se obtém elevando-se acima dos outros, mas vivendo o mesmo batismo
que Ele receberá pouco depois em Jerusalém, ou seja, a cruz. O que significa
isto? A palavra “batismo” significa “imersão”: com a sua Paixão, Jesus
imergiu-se na morte, oferecendo a sua vida para nos salvar.
Portanto,
a sua glória, a glória de Deus, é amor que se torna serviço, não poder com
ambições de domínio. Não poder com ambições de domínio, não! É o amor que se
faz serviço. Por isso Jesus conclui dizendo aos seus e também a nós: “Quem quiser ser grande entre vós faça-se
vosso servo” (Mc 10, 43). Para vos tornar grandes, devereis percorrer o
caminho do serviço, servir os outros.
Estamos
diante de duas lógicas diferentes: os discípulos querem emergir e Jesus quer
imergir-se. Reflitamos sobre estes dois verbos. O primeiro é emergir. Exprime
aquela mentalidade mundana a que somos sempre tentados: viver todas as coisas,
até as relações, para alimentar a nossa ambição, escalar os degraus do sucesso,
para alcançar posições importantes.
A
busca do prestígio pessoal pode tornar-se uma doença do espírito, também
disfarçada de boas intenções; por exemplo, quando por detrás do bem que fazemos
e pregamos, na verdade procuramos apenas nós mesmos e a nossa afirmação, ou
seja, chegar à frente, subir... E vemos isto também na Igreja.
Quantas
vezes nós cristãos, que deveríamos ser os servos, procuramos subir, para chegar
à frente. Portanto, precisamos sempre de verificar as verdadeiras intenções do
coração, de nos perguntarmos: “Por que realizo este trabalho, esta
responsabilidade? Para oferecer um serviço ou para ser notado, elogiado e
receber e enaltecido?”.
A
esta lógica mundana, Jesus contrapõe a sua: em vez de se elevar acima dos
outros, desce do pedestal para os servir; em vez de se destacar acima dos
outros, imerge-se na vida dos demais. Vi no programa “À Sua Imagem” [programa
televisivo da Rai] aquela reportagem da Caritas para que não falte comida a
ninguém: preocupar-se com a fome dos outros, preocupar-se com as necessidades
dos outros.
Há
hoje muitas, muitas pessoas carenciadas, e depois da pandemia ainda mais. Olhar
e abaixar-se no serviço, e não procurar escalar para a própria glória.
Eis
então o segundo verbo: imergir-se. Jesus pede-nos para nos imergirmos. E de que
modo? Com compaixão, na vida de quantos encontramos. Ali [naquela reportagem da Caritas] víamos a fome: e nós, pensamos com
compaixão na fome de tantas pessoas? Quando estamos diante da refeição, que é
uma graça de Deus e que podemos comer, há muitas pessoas que trabalham e não
conseguem ter uma refeição suficiente durante todo o mês.
Será
que pensamos nisto? Imergir-se com compaixão, ter compaixão. Não é um dado de
enciclopédia: há tantos famintos... Não! São pessoas. E eu tenho compaixão
pelas pessoas? Compaixão da vida daqueles que encontramos como fez Jesus
comigo, contigo, com todos nós, Ele aproximou-se de nós com compaixão.
Olhemos
para o Senhor Crucificado, completamente imerso na nossa história ferida, e
descubramos a maneira como Deus faz as coisas. Vejamos que Ele não ficou lá em
cima no céu, a olhar para nós, mas se baixou para lavar os nossos pés. Deus é
amor e o amor é humilde, não se eleva, mas desce, como a chuva que cai sobre a
terra e traz vida. Mas como fazer para nos pôr no mesmo rumo de Jesus, a passar
do emergir para o imergir-nos, da mentalidade do prestígio, mundana, àquela do
serviço, cristã?
O
compromisso é necessário, mas não é suficiente. Por nós mesmos é difícil, para
não dizer impossível, mas temos uma força dentro de nós que nos ajuda. É a do
Batismo, daquela imersão em Jesus que todos nós recebemos por graça e que nos
dirige, impele-nos a segui-lo, a não procurar os nossos interesses, mas a colocar-nos
ao serviço.
É
uma graça, é um fogo que o Espírito acendeu em nós e que deve ser alimentado.
Hoje peçamos ao Espírito Santo que renove em nós a graça do Batismo, a imersão
em Jesus, na sua maneira de ser, para sermos mais servos, para sermos servos
como Ele foi conosco.
Oremos
a Nossa Senhora: ela, embora sendo a maior, não procurou emergir, mas foi
humilde serva do Senhor, e está totalmente imersa no nosso serviço, para nos
ajudar a encontrar Jesus.
Roma, 17 de outubro de 2021
Papa Francisco
(22.10.2021 - Dia de São Paulo II, o meu papa tão amado)
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Contrição: Dor de Amor & As Cordas do Coração
Por Pe. Francisco Faus
“Quanto não devo a Deus, como cristão! A minha falta de correspondência, perante essa dívida, tem-me feito chorar de dor: de dor de Amor. Mea culpa!” – Bom é que vás reconhecendo as tuas dívidas. Mas não esqueças como se pagam: com lágrimas… e com obras" (Caminho, 242).
"Dá-me, Jesus, um Amor qual fogueira de purificação, onde a minha pobre carne, o meu pobre coração, a minha pobre alma, o meu pobre corpo se consumam, limpando-se de todas as misérias terrenas… E, já vazio todo o meu eu, enche-o de Ti: que não me apegue a nada daqui de baixo; que sempre me sustente o Amor" (Forja, n. 41).
"Dirige-te a Nossa Senhora e pede-lhe que te faça a dádiva – prova do seu carinho por ti – da contrição, da compunção pelos teus pecados, e pelos pecados de todos os homens e mulheres de todos os tempos, com dor de Amor. E, com essa disposição, atreve-te a acrescentar: – Mãe, Vida, Esperança minha, guiai-me com a vossa mão…, e se há agora em mim alguma coisa que desagrade a meu Pai-Deus, concedei-me que o perceba e que, os dois juntos, a arranquemos. Continua sem medo: – Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Santa Maria!, rogai por mim, para que, cumprindo a amabilíssima Vontade do vosso Filho, seja digno de alcançar e gozar das promessas de Nosso Senhor Jesus Cristo" (Forja, n. 161).
(20.10.2021)
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Já pensou em cuidar da sua vida espiritual utilizando um planner?
Há algum tempo recebo da Larissa Sassi, @larissa.sassish, do Bora Organizar? uns modelos mensais de planners e apesar de achá-los belíssimos, a ideia ótima, nunca os usei. Existem espaços em branco para que cada pessoa insira mais atividades, pode-se usar cores para destacar cada tarefa, segundo uma ordem de prioridades. Ela sugere as seguintes atividades:
. Estudo Bíblico
. Oração Pessoal
. Santo Terço ou Rosário
. Santa Missa
. Ofício
. Leitura
. Devoção a São José
. Evangelização
. Novena do mês
Acredito que também possa ser adaptado para catequistas se organizarem por tópicos a serem abordados nos encontros semanais.
Cada pessoa tem as suas próprias manias para marcar textos, identificar quais trechos são mais importantes e por aí vai... Sendo da área ambiental, o laranja é, para mim, o mais importante devido "as propriedades físico-químicas"; então, aquilo que creio ser relevante no momento atual para a minha espiritualidade será desta cor. Normalmente, tudo que for relacionado a vícios e pecados.
O que vai alimentar a fé, seja papinha ou comida mais sólida, farei em verde. Azul para aqueles momentos curtinhos de prática de fé, como talvez uma novena... Use a sua imaginação, pois as possibilidades são infinitas desde que você tenha um estojo de canetinhas ou de lápis de cor, né? Ou se for 100% digital, resolva editar o pdf.
Aproveite e também adquira numa papelaria um caderno de capa dura e com espiral, daqueles de um tamanho médio, para começar um diário espiritual. Eu tenho dois, um para impressões (e murmurações!); outro, para orações e textos que vou selecionando e montando para um uso futuro. Sim, eu ainda escrevo à mão livre. Horrorosamente, mas escrevo.
Pensei até em adaptá-los para a questão da espiritualidade ecológica e talvez ainda o faça em algum momento, como um calendário com sugestões de leitura no mesmo estilo, mas a minha vida anda muito louca com término da segunda graduação e início de um aperfeiçoamento de 180h, dois TCC, uma iniciação científica, entre tantas outras coisas.
Entretanto, mesmo cumprindo a minha rotina de orações, percebi que a qualidade caiu e resolvi testar o planner - gratuito - da Larissa. Será que entro nos eixos?!? Que (re)organizo as horas deste relógio interno descompassado?
E nada ganho em divulgar o trabalho dela, mas achei tão fenomenal esta doação que visa auxiliar outras pessoas a melhorarem suas relações com Deus, cuidando não apenas da vida corporal, mas também da espiritual, que tive que tomar "vergonha na cara" e compartilhar.
Só faço propaganda de eventos e coisas gratuitas que creio serem úteis. Vem comigo?
(31.08.2021)
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Catequese 34.
Distrações, aridez, acídia
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Seguindo o exemplo do Catecismo, nesta catequese referimo-nos à experiência vivida da oração, procurando mostrar algumas das suas dificuldades muito comuns, que devem ser identificadas e superadas. Rezar não é fácil: há muitas dificuldades que surgem na oração. É preciso conhecê-las, identificá-las e superá-las.
O primeiro problema que se apresenta para aqueles que rezam é a distração (cf. CIC, 2729). Começas a rezar e depois a mente roda, roda pelo mundo inteiro; o teu coração está ali, a mente está acolá… a distração da prece. A oração convive frequentemente com a distração. De fato, a mente humana tem dificuldade de se concentrar por muito tempo num único pensamento. Todos nós experimentamos este turbilhão contínuo de imagens e ilusões em movimento perpétuo, que nos acompanha até durante o sono. E todos sabemos que não é bom dar seguimento a esta inclinação fragmentada.
A luta para alcançar e manter a concentração não se limita à oração. Se não se atinge um grau de concentração suficiente, não se pode estudar com proveito, nem se pode trabalhar bem. Os atletas sabem que as competições são ganhas não só pelo treino físico, mas também pela disciplina mental: acima de tudo, pela capacidade de estarem concentrados e de manter alerta a atenção.
As distrações não são culpadas, mas devem ser combatidas. No patrimônio da nossa fé há uma virtude que é frequentemente esquecida, mas que está muito presente no Evangelho. Chama-se “vigilância”. E Jesus repete-o com frequência: “Vigiai. Rezai”. O Catecismo menciona-a explicitamente na sua instrução sobre a oração (cf. n. 2730). Jesus chama frequentemente os discípulos ao dever de uma vida sóbria, guiada pelo pensamento de que mais cedo ou mais tarde ele voltará, como um noivo volta das bodas ou um senhor da viagem.
No entanto, sem saber o dia nem a hora do Seu regresso, todos os minutos da nossa vida são preciosos e não devem ser desperdiçados em distrações. Num momento que não conhecemos, a voz do nosso Senhor ressoará: nesse dia, bem-aventurados os servos que Ele encontrará laboriosos, ainda concentrados no que realmente importa. Não se dispersaram perseguindo todas as atrações que lhes vinham à mente, mas procuraram empreender o caminho certo, praticando o bem e desempenhando a própria tarefa. Esta é a distração: que a imaginação roda, roda, roda… Santa Teresa definia esta imaginação que roda, roda na oração, “a louca de casa”: é como uma louca que te faz rodar, rodar… Devemos impedi-la e aprisioná-la com a atenção.
O tempo da aridez merece um discurso diferente. O Catecismo descreve-o deste modo: «O coração está seco, sem gosto pelos pensamentos, lembranças e sentimentos, mesmo espirituais. É o momento da fé pura, que se aguenta fielmente ao lado de Jesus na agonia e no sepulcro» (n. 2731). A aridez faz-nos pensar na Sexta-Feira Santa, na noite e no Sábado Santo, o dia inteiro: Jesus não está presente, está no sepulcro; Jesus morreu: estamos sozinhos. E este é o pensamento-mãe da aridez.
Muitas vezes não sabemos quais são as razões da aridez: pode depender de nós, mas também de Deus, que permite certas situações na vida exterior ou interior. Ou, às vezes, pode ser uma dor de cabeça ou um no fígado que te impede de entrar na oração. Com frequência não sabemos a razão. Os mestres espirituais descrevem a experiência da fé como uma alternância contínua de tempos de consolação e tempos de desolação; momentos em que tudo é fácil, enquanto outros são marcados por uma grande dificuldade.
Muitas vezes, ao encontrarmos um amigo, dizemos: “Como estás?” – “Hoje sinto-me abatido”. Acontece que às vezes nos sentimos “abatidos”, isto é, não temos sentimentos, não temos consolação, não aguentamos mais. São aqueles dias cinzentos… e existem muitos na vida! Mas o perigo é ter o coração cinzento: quando este “sentir-se abatido” chega ao coração e o faz adoecer… e há pessoas que vivem com o coração cinzento.
Isto é terrível: não se pode rezar, não se pode sentir consolação com o coração cinzento! Ou não se pode levar adiante uma aridez espiritual com o coração cinzento. O coração deve ser aberto e luminoso, para que entre a luz do Senhor. E se não entrar, é preciso aguardá-la com esperança. Mas não devemos fechá-la no cinzento.
Depois, algo diverso é a acídia, outro defeito, outro vício, que é uma verdadeira tentação contra a oração e, mais geralmente, contra a vida cristã. A acídia é «uma forma de depressão devida ao relaxamento da ascese, à diminuição da vigilância, à negligência do coração» (CIC, 2733). É um dos sete “pecados capitais” pois, alimentado pela presunção, pode levar à morte da alma.
O que devemos fazer, então, nesta sucessão de entusiasmos e desânimos? Deve-se aprender a caminhar sempre. O verdadeiro progresso na vida espiritual não consiste em multiplicar os êxtases, mas em ser capaz de perseverar em tempos difíceis: caminha, caminha, caminha… E se te sentires cansado, pare um pouco e volte a caminhar. Mas com perseverança. Recordemos a parábola de São Francisco sobre a alegria perfeita: não é nas infinitas fortunas que caem do céu que se mede a capacidade de um frade, mas em caminhar com constância, mesmo quando não se é reconhecido, mesmo quando se é maltratado, ou quando tudo perdeu o sabor do princípio.
Todos os santos passaram por este “vale escuro”, e não nos escandalizemos se, lendo os seus diários, ouvirmos o relato de noites de oração sem vontade, vivida sem gosto. Temos de aprender a dizer: “Ainda que Tu, meu Deus, pareças fazer tudo para que eu deixe de acreditar em Ti, continuo a rezar a Ti”. Os crentes nunca apagam a oração! Por vezes pode assemelhar-se à oração de Jó, o qual não aceita que Deus o trate injustamente, protesta e chama-o em juízo.
Mas, muitas vezes, protestar diante de Deus é também um modo de rezar ou, como dizia aquela velhinha, “zangar-se com Deus também é um modo de rezar”, pois com frequência o filho zanga-se com o pai: é um modo de se relacionar com o pai; pois reconhece-o como “pai”, zanga-se…
E também nós, que somos muito menos santos e pacientes do que Jó, sabemos que no final, no fim deste tempo de desolação, em que elevamos ao Céu gritos silenciosos e muitos “por quês?”, Deus responder-nos-á. Não esqueçais a oração do “por quê?”: é a prece que recitam as crianças quando começam a não entender as coisas e os psicólogos definem-na “a idade dos por quês”, pois a criança pergunta ao pai: “Pai, porquê…? Pai, porquê…? Papai, porquê…?”.
Mas prestemos atenção: a criança não ouve a resposta do pai. O pai começa a responder e a criança apresenta outro porquê. Só quer chamar para si a atenção do pai; e quando nos zangamos um pouco com Deus e começamos a pronunciar os por quês, estamos a atrair o coração do nosso Pai na direção da nossa miséria, da nossa dificuldade, da nossa vida. Mas sim, tende coragem de dizer a Deus: “Mas por quê…?”. Pois às vezes, zangar-se um pouco faz bem, faz-nos despertar esta relação de filho com o Pai, de filha com o Pai, que devemos manter com Deus. E até as nossas expressões mais duras e amargas, Ele as acolherá com o amor de um pai, e considerá-las-á como um ato de fé, como uma oração.
Papa Francisco
19.05.2021
(14.08.2021)
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Tá difícil ser uma boa pessoa? Então tente rezar esta oração.
(Um belo texto do Portal Aleteia sobre a bondade, escrito por Carlos Padilla Esteban e publicado em 21/07/21)
A vida às vezes é tão dura, que acaba sendo difícil enxergar bondade em nós mesmos e nos outros. Mas tudo isso pode mudar.
Há duas formas de conceber a bondade: como uma característica fixa (você tem ou não tem) ou como um músculo. Em algumas pessoas, esse músculo é naturalmente mais forte que em outras, mas pode crescer e tornar-se mais forte com o exercício.
Gosto de pensar na bondade como um músculo. Crescer em bondade requer constantemente muito trabalho.
Jesus foi um homem bom. Sua alma estava cheia de bondade. Mas, ao mesmo tempo, ele viveu exercitando o músculo da bondade. Passou pela vida fazendo o bem.
Há pessoas boas por natureza. Não se esforçam muito e são boas. Não pensam mal, não agem mal. Outras, no entanto, sentem muita dificuldade em praticar o bem. Precisam se esforçar, exercitam o músculo. Precisam aprender a ver a vida com bondade. E a agir movidas pela bondade.
Se você quer crescer em bondade, mas encontra muitos obstáculos no caminho, pode rezar com fé e sinceridade:
"Senhor,
quero te entregar a ferida que se repete.
Minha vontade é que as pessoas
que se sentiram feridas por mim
não se lembrem disso.
Espero compensar o mal com o bem,
mas nem assim isso se remedia.
O pior é que continuo caindo, continuo ferindo.
Às vezes me é quase impossível ver
a bondade em mim, tua própria bondade.
E sinto que é incompatível ser
ao mesmo tempo miséria e bondade.
Não sei o que queres com isso, Senhor,
mas sei o que buscas
ao mostrar-me tudo de maneira tão clara.
Parece que teu objetivo é que eu me aceite completamente.
Mas nem isso eu sei fazer.
Porém, tenho consciência da minha miséria,
inclusive desses becos
nos quais nem me atrevo a entrar.
Sei que Tu também estás presente neles.
E isso me consola.
Ajuda-me, Senhor.
Ensina-me, Senhor.
Dá-me a tua graça."
Vejo minha miséria e meu anseio pela santidade. Meu pecado e o mal que faço. A desproporção entre o que sonho e o que consigo. É forte o desejo de fazer o bem. Como dizia São Paulo, “não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rm 7, 19).
No fundo, queremos fazer o bem. Por isso, é tão importante exercitar o músculo do bem. Ainda que nossos atos não sejam tão naturais no começo, façamos o bem, esforcemo-nos por fazer coisas boas. Nunca devolva o mal a quem lhe fez bem. Não cause dano por inveja, ciúme, rancor.
Olhe para Maria. Peça-lhe que lhe ensine a agir com um coração bom. A aliança de amor com Ela é um seguro de vida. Maria é exemplo de bondade e tem muito a nos ensinar.
Quando você sentir que seu coração endureceu, que está cheio de rancor, então peça a Maria que lhe ensine a renovar seu coração. Não se deixe limitar por uma atitude egoísta. Seja sincero em sua oração com Deus, peça a ajuda de Maria e exercite seus músculos na vida cotidiana.
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Compartilho um texto que utilizei numa tarde de formação há mais de uma década quando fui membro do grupo da Ação Social de minha antiga paróquia. Ele é um excerto/extrato de um documento da Santa Sé para a celebração do Ano da Eucaristia celebrado em 2004.
Escolhi o capítulo referente aos comportamentos eucarísticos para serem utilizados comos pontos de meditação. Ainda que não o tenha adaptado para tratar dos cuidados de Nossa Casa Comum, creio que seja válido para o tratamento da única casa que realmente temos: o nosso corpo físico e espiritual.
Para acessá-lo, basta clicar na imagem que será aberto um link para o Google Drive do blog ou na imagem no menu à esquerda. Boa leitura!
(28.06.2021)
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O que você tem tecido para a sua vida?
As meditações com que gasta as horas
aumentam a qualidade de sua vida
ou apressam a perdê-la?
Uma aranha pode ser mais "sábia" do que você? 😉
Pequena pérola do livro "318 citações do Pe. Antônio Vieira escolhidas e anotadas", por Emerson Tin, Ed.Tordesilhas, 2011. Maravilhoso!
Coloquei o link da editora na imagem porque acredito que valha muito a pena ler este livro e nada ganho com isso, seja dela, do autor ou de quem for. É pelo prazer de compartilhar algo que gostei, que pode servir para enriquecer catequeses e só.
Como já disse na página principal do blog: ele é um voluntariado sem monetização.
(23.06.2021)
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"Ó Deus, relembremos a vossa misericórdia no interior de vosso templo."
Em Shrek, já se dizia que - sob o arquétipo dos ogros - somos como cebolas: cheios de camadas que escondem o que verdadeiramente somos, o que temos de bom e o de mau.
Muitas vezes ficamos apenas no que temos e fazemos de bom, correndo o risco de nos tornamos vaidosos e ególatras, menosprezando as histórias e conquistas dos demais, sejam porque estas não refletem o que achamos que deveriam ser ou por não recebermos aplausos constantes destas pessoas para o que fazemos.
Algumas vezes, queremos esquecer que temos um lado mau e ao invés de domesticá-lo, fazendo-o trabalhar para o bem, acabamos por o esconder, camuflando-o, esquecendo que ele sempre deixa rastros e para um pessoa que nos observe com paciência ao longo do tempo, nada fica escondido. Por que não pedimos ajuda?
Outras vezes, o lado mau é o mais relevante porque há quem encontre prazer nele e acredite que o conquistado através dele é o que justifica a vida. O fato deste estar aparente, não significa que a pessoa deixou de ser cebola, apenas mostra que se existe algo de bom, está muito, mas muito bem guardado e inacessível aos demais. Estas pessoas-cebolas amargam as outras, estragam o sabor da vida e acabam sempre murchando antes do tempo, pois ninguém as quer por perto. Só alguns tipos de fungos saprófitos podem com elas, mas lá na leira de compostagem.
Há algumas vezes em que não nos descascamos, mas somos descascados, cortados pela vida e sem expectativas aparentes, acabamos murchando e apodrecendo antes do tempo. O imponderável se faz presente, o bom e o mau parcialmente se dissolvem na desesperança, mas como Deus é justo e bom, sempre nos dá chances para rebrotar, mesmo em meio às misérias.
Basta nos colocarmos nos ambientes certos, nos nutrir de coisas boas, fortificar as novas raízes e darmos os primeiros, frágeis frutos, para que Ele nos replante mais uma vez num solo fértil, antes da colheita definitiva, onde todas as camadas de nossas cebolas serão expostas.
(22.06.2021)
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Corpus Christi 2021
Quero deixar uma oração em comemoração deste dia, onde São Gregório de Nazianzo rende louvor a Deus incluindo a Sua criação. Além de muito bela, as frases se lidas separadamente podem promover boas meditações.
Nossos sonhos e desejos gravitam em torno de Deus...
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Basta uma palavra...
Quando a gente não dá valor às pequenas coisas... Dica de leitura: "Basta uma palavra", de Pe. Antônio José.
No meu caso, é comum eu comprar, trocar ou ganhar livros e deixá-los nas estantes sem ler. A não ser que eu queira ler muito algo específico, só irei lê-los quando algo me mover a vê-los com maior paciência e humildade.
Muitas vezes penso que o livro tal é um "blablablá" de auto-ajuda ou a história é modorrenta, mas quando este "algo" me faz procurá-los, pode apostar que tem lição no meio.
Foi o que aconteceu com este livro que devo ter ganho na JMJ, dado ao nome da editora, e só em agosto do ano passado o peguei para ler... Trinta dias de caminhada com Deus.
O que ali está serve para qualquer um que queira reencontrar o diálogo e também pode ajudar a muitos cristãos que esqueceram sobre como cuidar de seu ecossistema espiritual, sobre como se alimentar Dele e com Ele.
Achei um link num blog católico que oferece a publicação com acesso gratuito: http://www.rainhadetodosossantos.com.br/tudo-ao-seu-alcance/livro-basta-uma-palavra/.
Como disse, fiz o seu percurso em 2020 e o refaço agora, começando na Festa da Divina Misericórdia, pois há épocas em que me sinto como uma jumentinha banguela que precisa de alimento pastoso, uma "confort food" espiritual (sim, sou criança na fé e ainda nem sei andar!).
Experimente com o coração aberto e me diga depois se ajudou ao seu ecossistema interior. Quero mesmo saber se pude ajudar.
Boa jornada!
(11.04.2021)
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Delírios de Páscoa
Ontem vi, no perfil do Pe. Leonardo Wagner do Instagram, um belo texto sobre o Sábado Santo e me informaram que este era a segunda leitura da Liturgia das Horas. Não é um texto dogmático, a intenção é catequética e é baseado numa antiga homilia do século IV, mas um trecho "saltou aos meu olhos" enquanto o lia:
"Adormeci na cruz e por tua causa a lança penetrou no meu lado,
como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso.
Meu lado curou a dor do teu lado.
Meu sono vai arrancar-te do sono da morte.
Minha lança deteve a lança que estava dirigida contra ti."
E só pude pensar "nas pistas" que Deus vai deixando na Bíblia:
. Seis dias de Criação e um sétimo de descanso;
. O consolo da companheira "igual a si", retirada das costelas de Adão;
. Sermos todos filhos de Eva;
. Seis horas de expiação e uma hora de Redenção, para a nova Criação;
. Sermos todos adotados por Maria;
. O consolo da melhor companheira das almas humanas - a Misericórdia Divina - representada como fruto da laceração das costelas de Cristo e de onde jorraram sangue e água;
. Os atos: do Getsêmani aos objetos dispostos na tumba ao raiar do terceiro dia;
. As mulheres foram companheiras de auxílio nos seus três anos de caminhada, a elas coube a primazia da primeira aparição após a Ressurreição e a elas cabe, até hoje, o auxílio aos receptores da sucessão apostólica;
. entre outros tantos sinais.
Mesmo assim, e falo por mim, como é difícil se manter no caminho Dele... Sempre me interessei pelas expressões sobre "olhos que não vêem e ouvidos que não ouvem" (Sl 115, Mt 13, Is 42) e achava um absurdo que aquele povo todo vendo MILAGRES não acreditasse Nele.
Ia bem soberba, falando que era impossível que eles não compreendessem que algo especial acontecia, já que a religião judaica tinha em sua tradição oral a chegada de um Servo, um Messias... Tá, mas e eu?
Bem, sempre caio na presunção de ser boa ouvinte e vidente, de conseguir "compreender" de alguma forma as Suas mensagens e demandas na minha busca por viver na consonância possível com a fé que digo professar, até que meus pecados me fazem rolar "ladeira abaixo e ainda quicando" e me vejo atropelada pelo primeiro choque de realidade.
Creio que a super-abundância de sinais, das referências cruzadas entre o Antigo e o Novo Testamento, dos milagres ordinários e extraordinários, das memórias ancestrais de povos distantes entre si (e com as corrupções advindas de milênios de tradição oral), da recorrência do Mal na história humana (Ah, fruto estranho que nos trouxe conhecimento, mas junto perdição!), de se poder ler a Palavra e ver como foi escrita para se manifestar coesa através dos tempos, tudo isto é para nos lembrar que vemos e ouvimos, mas que precisamos de repetições para internalizar a Graça.
Quer paradoxo maior do que desejarmos ser verdadeiramente amados, mas repelirmos o Amor, seja em qual escala for?
Tudo advém de não assumirmos as vocações, para as quais fomos criados... Cada vez mais me dou conta de que sempre seremos órfãos das parcelas de tempo perdidas longe Dele durante nossas trajetórias de vida, durante nossas vivências familiares e catequéticas, durante a mais tenra infância. E pecaremos... Muito e indignamente.
Quanto mais conscientes ficamos, mais inerente é a dor do saber, mas como falam por aí que o verdadeiro Amor dói (vide a cruz!), a minha permanência na "autossuficiência" e na "falta de confiança nos outros" nunca será a resposta correta ao chamado. Espero que um dia me torne dócil o suficiente "para que Ele cure a imensa dor do meu lado".
Se não fosse a Misericórdia...
(04.04.2021)
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Cristo, um pelicano?
Por Fabián González Hernández
Traduzido por Renata P. Espíndola em 2009
Poderia soar como uma heresia, ou como uma grande falta de respeito com a pessoa de Cristo, porém realmente esta é uma comparação que se tem feito há bastante tempo. De fato, provém dos primeiros séculos do cristianismo, quando se compreendia muito mais do que agora a doutrina cristã.
Porém, que tem a ver Jesus Cristo com um pelicano? Por que ocorreu a eles, os primeiros cristãos, dar-lhe uma comparação tão rara? No mínimo, poderiam tê-lo comparado com um animal mais gracioso e não com um pássaro com uma papada tão grande.
Porém, a comparação não poderia ser mais correta.
O pelicano é um pássaro não muito estético. Sua grande bolsa, na qual armazena comida para suas crias, lhe faz parecer ver inclusive o ridículo (sim, se lhe compara com uma ave como a águia, por exemplo, que é muito mais chamativa, ágil e que seguramente a todos nós é mais agradável).
Porém, aos primeiros cristãos não lhes ocorreu fazer a comparação tomando em conta qualidades, habilidades ou estética (que é no que todos normalmente nos fixamos hoje em dia), senão que fizeram a comparação por um ato concreto que fazem os pelicanos.
Quando suas crias nascem, os pelicanos, como todos os animais, têm que buscar comida para alimentar-lhes. Estas aves são grandes pescadoras e alimentam a suas crias com os pescados que armazenam em, assim digamos, suas grandes “papadas”.
O interessante não é isto (porque todo o mundo sabe como os pelicanos alimentam a suas crias). O que é verdadeiramente fora do comum, é que, se o pelicano adulto não encontra comida para seus filhos, em vez de abandoná-los (como a maioria dos animais faria) lhes dá de comer... Porém de sua própria carne.
Quando não tem uma forma de alimentar a suas crias, o pelicano arranca de si nacos de carne utilizando seu pontiagudo bico, e alimenta a seus filhos com sua própria carne e sangue. Sacrifica sua vida para que vivam seus filhos.
Aqui está o parecido com Cristo, que nos alimenta real e verdadeiramente com seu Corpo e seu Sangue sempre que o recebemos na comunhão.
Como dizia no princípio, os primeiros cristãos conheciam a fundo sua fé, e o que esta implicava, por isso fizeram esta comparação tão acertada, que, para os que não conhecem bem sua fé católica, pode parecer ilógico. Porque, desgraçadamente, isso se passa muito hoje em dia: não conhecemos nossa fé.
Estou seguro de que se todos os católicos tivessem a consciência de que é Cristo mesmo quem recebemos na comunhão, o receberiam muito mais freqüentemente, e além do que, dariam um sentido muito mais importante à Missa (não seria simplesmente ir a escutar o clássico sermão do padre, ou um ato social como qualquer outro), transformaria por completo a atitude com que hoje em dia se vai (se é que se vai) à Missa.
É o momento no qual o mesmo Cristo nos alimenta com seu Corpo e seu Sangue para nos salvar, quando como o pelicano, dá a vida por nós, para que possamos ter vida eterna. Assim como as crias do pelicano não poderiam viver sem a carne que este lhes dá (sua própria carne), assim também nossa alma não poderia viver sem o alimento da Eucaristia, o Corpo e o Sangue de Cristo.
Fonte: http://www.ef.catholic.net/CatequesisEF/catequesis%20EF.htm (2009).
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Domingo de Ramos
"Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens." (Fl 2, 6 - 11) 🌿
Quantas vezes por dia você se esvazia de si mesmo(a) por amor? Quantas vezes por dia acha que sofre alguma injustiça, tendo em vista seu esvaziamento?
Agora compare o que sente com a sua vaga intuição do que foi, é e será até o fim dos tempos a dimensão do esvaziamento Dele oferecido naquele dia.
Isto põe tudo em outra perspectiva, não?
Foi por você, por todos os que conhecendo-o, optaram por segui-lo através dos tempos passados, os que irão optar nos tempos futuros e pela Criação.
E será que ela, deteriorada por nós tal e qual parasitas, poderá oferecer suporte à dignidade física humana, para que os homens, cegados na busca pela sobrevivência a qualquer preço, possam ver a Cristo e compreender a dimensão de Sua entrega por Amor
Neste Domingo de Ramos, reflita sobre quantas vezes não O louvamos para depois, imersos nas rotinas, esquecemos o que havíamos posto como metas. Ainda na jornada quaresmal, avaliemos se neste momento de pandemia fomos além do louvor a Deus por medo (deveria ser por amor) e ajudamos os mais necessitados como realmente poderíamos.
O esvaziamento não é apenas sobre doar-se ao próximo fornecendo gêneros alimentícios, vestuário, mas também sobre tempo de escuta para alimentar almas, mas não com palavras vazias, contando o tempo ou pensando "Aí, que chato! Essa pessoa me cansa!". Bem sei que é algo difícil, somos imperfeitos... A maioria das pessoas sempre quer um pouco de atenção para justificar sua existência, porém não nos deveria importar saber qual o tipo de solo que ela possui dentro de si, mas nos compete semear com nosso serviço.
Hoje você faz parte da multidão que louvou a Jesus com hosanas na porta de Jerusalém ou da que o perseguiu e crucificou?
(28.03.2021)
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Hoje é um dia festivo, o da Anunciação, e me peguei pensando nas diferenças entre o "Sim" de duas mulheres em duas "Criações" distintas - a primeva e a futura (considerando que estamos militantes) -, mas similares em alguns pontos:
1. Dois anjos comunicando: o primeiro, decaído, a morte e o segundo, triunfante, a Vida;
2. Os significados etimológicos dos seus nomes - ainda que variem entre o hebraico, grego, latim e até o sânscrito! - todos são relacionados de alguma forma à história da Salvação (pesquise por Eva, Miriam, Ave, etc.);
3. Duas maternidades que mudaram a história da humanidade e que foram salvas por quem as criou;
4. Duas personalidades que podem ser analisadas sob o olhar da evolução das almas, tomando-se por base vícios, virtudes e perfeição, como seus caminhos entre a Criação e o Reino dos Céus.
E olhando as redes sociais, descobri que também a data seria a da celebração do VII Centenário da morte de Dante Alighieri, celebrado pelo Papa Francisco através da Carta Apostólica "Candor Lucis Aeternae" e lembrei que Gustave Doré (1832-1883) havia realizado gravuras sobre a obra "Paraíso Perdido" de Milton e da "Divina Comédia" de Dante, cuja gravura "Paraíso" é a imagem utilizada na playlist do blog no Spotify.
Então, celebrando estes dois momentos da história da criação do Reino, resolvi colocar aqui como material apenas para meditação, quatro gravuras de Gustave Doré - duas no Éden, a Anunciação e a entronização de Nossa Senhora como Rainha do Céu.
E ainda proponho que as admire e reflita sobre as seguintes questões (clique nas imagens para vê-las num formato um pouco maior):
. Como o artista representou cada evento e o que seus traços registram em cada uma das quatro obras?
. Você poderia meditar distintamente sobre elas, encontrando os momentos em que há complementariedade entre o que ocorre no meio físico e o no espiritual?
. Quais elementos físicos reforçam a dualidade? Consegue traduzir isto entre valores espirituais positivos e negativos?
Feliz Festa da Anunciação!
(Aqui não tem "pachamama")
O meu "Sim!" é para Maria.
(Ainda que eu seja uma alma torta, irônica, teimosa, desastrada, etc.)
😂
(25/03/2021)
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Hoje assisti a uma animação pelo Twitter ofertada pela professora Patrícia Pirota, que muito me tocou em seus oito minutos. Ela trata do relacionamento entre um pai e seu filho, como os interesses - aparentemente - conflitantes são fruto de uma mesma origem.
Pode ser que numa leitura superficial você não encontre correspondência com o que trato no blog, mas preste atenção nos detalhes, pois com o "olhar espiritual" de nossa fé católica, aposto que vai entender o que quero mostrar.
Reflita sobre o que vê, como o que vê é representado, quais as contraposições, quais as responsabilidades de cada um em seus relacionamentos e com a comunidade, o que é proposto e o que é imposto, se há escolhas fáceis ou difícieis, etc.
Garanto que irá ganhar oito minutos de vida e verá algo belo.
(23.02.2021)
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Adultos - 01
. O que o egoísmo, a inveja, a gula, a luxúria e tantos outros têm a ver com a mortandade de inúmeras espécimes/ano? E com a escravidão humana, formal e/ou informal?
. Será que sobreviveremos às nossas escuridões interiores buscando afastar de nós as exteriores e o risco de morte ou de dolo associados?
. O quanto necessitamos de luz, o quanto é desperdiçado, o quanto afetamos os ciclos das diversas espécies e, consequentemente, afetamos a nós mesmos? Você sabe o que é um ciclo circadiano?
. Você pode olhar para o alto à noite e ver algo além de uma névoa luminosa¹?
. Poderia reconhecer um planeta de uma estrela?
. Saberia indicar uma constelação?
. Ou o que representam os nomes Mintaka, Alnilan e Alnitaka²? Quais suas correspondências com o nosso Evangelho?
. Já viu o nosso símbolo, A Cruz?
. Já teve o privilégio de ver o rastro da Via Láctea? Com o que este se assemelha? Poderia citar onde na Sagrada Escritura esta maravilha de Deus é louvada?
. Todas as civilizações surgiram a partir da observação do céu noturno... E a nossa? O que está criando de fato?
Assista ao vídeo que indico abaixo, pois ele não é longo e, se puder, reflita sobre o que estamos nos tornando sem optarmos por um uso mais sábio da tecnologia.
Assista ao vídeo que indico abaixo, pois ele não é longo e, se puder, reflita sobre o que estamos nos tornando sem optarmos por um uso mais sábio da tecnologia.
Sugiro que o veja à noite na escuridão de sua sala ou quarto. Realizado por Sriram Murali, apresenta as variações no campos de visão devido aos efeitos da poluição lumínica não é apenas um problema para astrônomos, também o é para nossos ciclos circadianos e para os ecossistemas. Mens sana in corpore sano, lembra?
Pode parecer que não haja nestas "sementes" que proponho, algo que as una à nossa fé, mas se você buscar ter uma visão sobrenatural, poderá encontrar incômodas respostas.
Pode parecer que não haja nestas "sementes" que proponho, algo que as una à nossa fé, mas se você buscar ter uma visão sobrenatural, poderá encontrar incômodas respostas.
Te deixo com estas palavras de São João da Cruz e a análise destas feita pelo Frei Patrício Sciadini, OCD:
"[...] Esposa:
XV
A noite sossegada,
Quase aos levantes do raiar da aurora;
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e enamora [...]"
"[...] A noite sossegada
Durante este sono espiritual que a alma dorme no peito do seu Amado, possui e goza todo o sossego, descanso e quietude de uma noite tranqüila. Recebe, ao mesmo tempo, em Deus, uma abissal e obscura compreensão divina. Por isso, diz que seu Amado é, para ela, a noite sossegada.
Quase aos levantes do raiar da aurora
Esta noite tranqüila, como canta aqui a alma, não é semelhante à noite escura. É, antes, como noite já próxima aos levantes da aurora, ou por assim dizer, semelhante ao raiar da manhã. O sossego e quietude em Deus, de que goza a alma, não lhe é de todo obscuro, como uma noite cercada; pelo contrário, é um repouso e tranquilidade em luz divina, num novo conhecimento de Deus, em que o espírito se acha suavissimamente quieto, sendo elevado à luz divina.
Muito adequadamente dá o nome de levantes da aurora, isto é, manhã, a essa mesma luz divina; porque assim como os levantes matutinos dissipam a escuridão da noite e manifestam a luz do dia, assim esse espírito sossegado e quieto em Deus é levantado da treva do conhecimento natural à luz matutina do conhecimento sobrenatural do próprio Deus.
Não se trata, contudo, de conhecimento claro em que nem é totalmente noite, nem é totalmente dia, mas conforme dizem, está entre duas luzes. Assim, esta solidão e sossego da alma em Deus nem percebe ainda com total claridade a luz divina, nem tampouco deixa de participar algum tanto dessa luz.
O pássaro solitário
Nesta quietação, o entendimento é levantado com estranha novidade acima de todo o conhecimento natural, à divina iluminação, como alguém que depois de um demorado sono, abrisse de repente, os olhos à luz não esperada.
Tal conhecimento foi significado por Davi nestes termos: "Vigiei e me fiz como pássaro solitário no telhado" (Sl 101, 8). Como se dissesse: abri os olhos do meu entendimento e me achei acima de todas as inteligências naturais, solitário sem elas no telhado, isto é, sobre todas as coisas terrenas. Diz ter feito semelhante ao pássaro solitário, porque nesta espécie de contemplação, o espírito adquire as propriedades desse pássaro, as quais são cinco.
Primeira - ordinariamente se põe ele no lugar mais alto; assim também, o espírito, neste estado eleva-se à mais alta contemplação.
Segunda - sempre conserva o bico voltado para o lado onde sopra o vento; o espírito, de modo semelhante, volve o bico de seu afeto para onde lhe vem o espírito de amor, que é Deus.
Terceira - permanece sempre sozinho e não tolera outros pássaros junto a si; se acontece algum vir pousar onde ele se acha, logo levanta vôo. Assim o espírito, nesta contemplação, está sempre em solidão de todas as coisas, despojado de tudo, sem consentir que haja em si outra coisa a não ser essa mesma solidão em Deus.
Quarta - canta muito suavemente; o mesmo faz o espírito, para com Deus, por esse tempo e os louvores que a Ele dá, são impregnados de suavíssimo amor, sobremaneira deliciosos para si mesmo e preciosíssimo para Deus.
Quinta - não tem cor determinada; assim também o espírito perfeito não só deixa de ter, neste excesso, cor alguma de afeto sensível ou de amor-próprio, mas até carece agora de qualquer consideração particular, seja das coisas do céu ou da terra, nem poderá delas dizer coisa alguma, por nenhum modo ou maneira, porquanto é um abismo essa notícia de Deus que lhe é dada.
A música calada
Naquele sossego e silêncio da referida noite, bem como naquela notícia de luz divina, claramente vê a alma uma admirável conveniência e disposição da sabedoria de Deus, na diversidade de todas as criaturas e obras. Com efeito, toda e cada uma delas têm certa correspondência a Deus, pois cada uma, a seu modo, dá sua voz testemunhando o que nela é Deus. De sorte que parece à alma uma harmonia de música elevadíssima, sobrepujando todos os concertos e melodias do mundo.
Chama essa música "calada", porque é conhecimento sossegado e tranqüilo, sem ruído de vozes; e assim goza a alma nele, a um tempo, a suavidade da música calada, pois nele se conhece e goza essa harmonia de música espiritual. Não somente lhe é isto o Amado, mas também é.
A solidão sonora
Significa mais ou menos a mesma coisa que a música calada; porque esta música, embora seja silenciosa para os sentidos e potências naturais, é solidão muito sonora para as potências espirituais. Estas, na verdade, estando já solitárias e vazias de todas as formas e apreensões naturais, podem perceber no espírito, mui sonoramente, o som espiritual da excelência de Deus em si e nas suas criaturas.
Realiza-se então o que dissemos ter visto São João, em espírito, no Apocalipse, a saber: vozes de muitos citaristas em seus instrumentos. Isto sucedeu no espírito e não em cítaras materiais, pois consistia em certo conhecimento de louvores que cada um dos bem-aventurados, em sua glória particular, eleva a Deus continuamente, qual música harmoniosa.
Com efeito, na medida em que cada qual possui de modo diverso os dons divinos, assim cada um canta seu louvor diferentemente, e todos unidos cantam numa só harmonia de amor como num concerto.
De modo semelhante, a alma percebe, mediante aquela sabedoria tranqüila em todas as criaturas, não só superiores como inferiores que, em proporção dos dons recebidos por Deus, cada uma dá sua voz testemunhando ser Ele quem é. Conhece também como cada qual, à sua maneira, glorifica a Deus, tendo-O em si segundo a própria capacidade. E assim, todas estas vozes fazem uma melodia admirável cantando a grandeza, a sabedoria e ciência do Criador.
Tudo isto quis dizer o Espírito Santo no livro da Sabedoria, por estas palavras: "O Espírito do Senhor encheu a redondeza da terra e este mundo que contém tudo quanto Ele fez tem a ciência da voz" (Sb 1, 7). Esta é a solidão sonora que a alma conhece aqui e que consiste no testemunho de Deus dado por todas as coisas em si mesmas. E porquanto a alma não percebe esta música sonora sem a solidão e o alheamento de todas essas coisas exteriores, dá-lhe o nome de música calada e solidão sonora, que para ela é o próprio Amado.
A ceia que recreia e que enamora
A ceia, aos amados, causa recreação, fartura e amor. Com estes três efeitos são produzidos pelo Amado na alma e por esta comunicação tão suave, ela aqui O chama "ceia que recreia e que enamora". Notemos como a Sagrada Escritura dá o nome de ceia à visão divina.
Com efeito, a ceia é o remate do trabalho do dia e o princípio do descanso noturno; assim também, esta notícia sossegada a que nos referimos, faz a alma experimentar cer fim de males e posse de bens, em que se enamora de Deus mais intensamente do que antes. Eis porque o Amado é para ela a ceia que a recreia dando fim aos males e a enamora dando-lhe a posse de todos os bens.
A fim de dar, porém, a entender melhor qual seja para alma esta ceia que, como dissemos é o próprio Amado, convém notar aqui o que o mesmo amado Esposo declara no Apocalipse: "Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3, 20).
Nestas palavras mostra Ele como traz a ceia consigo e esta não é outra coisa senão o próprio sabor e deleite de que Ele mesmo goza. E unindo-se à alma lhe comunica fazendo com que ela participe de seu gozo e isto significa cearem juntos. Nestes termos é simbolizado o efeito da divina união da alma com Deus: os mesmos bens próprios a Deus se tornam comuns à alma Esposa, sendo-lhe comunicados por Ele, de modo liberal e generoso".
Fonte: SCIADINI, Frei Patrício OCD. Cânticos Espirituais São João da Cruz: Um convite para entrar na intimidade de Deus. Fortaleza: Edições Shalom, 2003.
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Nota¹: Esta imagem foi realizada por um astrofotógrafo brasileiro, #KikoFairbairn, e ele não usou telescópio ou luneta, apenas câmera digital e filtros para ruídos. Clique na imagem para vê-la ampliada e para visitar sua página com outras maravilhosas astrofotografias.
Consegue ver o que perdemos na troca que fazemos diuturnamente? Imagine agora as demais criaturas de Deus sob a nossa responsabilidade. Trocamos estas luzes pelo LED de computadores, televisores e smartphones. Trocamos o silêncio por fones de ouvido ou caixas de som que nos adoecem.
Ontem, dentro de uma composição do metrô carioca durante um trecho elevado das vias públicas, vi nuvens maravilhosas misturadas com a poluição de aerossóis e elementos químicos, e um sol maravilhoso se por "entre os prédios", cuja visão magnetizava meu olhar pela janela da composição, ainda que esmagada pela multidão. Falei baixinho "Que maravilha!" e olhei hipnotizada para fora o quanto pude e para minha surpresa, uma mulher sentada olhou para trás, o viu e apenas fez um muxoxo... Pensei rindo, é mesmo preciso ter olhos para ver e ouvidos para ouvir.
Todo mundo quer que a Trindade esteja à sua disposição - insanamente -, mas é incapaz de agradecer por ter saúde e todos os sentidos funcionando para apreciar os rituais silenciosos da Criação louvando-O.
Somos tão tolos e, muitas vezes, tão míseros.
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