29 de julho de 2022

Mensagem de Sua Santidade Papa Francisco para a celebração do Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação em 01 de setembro de 2022.

 

Queridos irmãos e irmãs!

«Escuta a voz da criação» é o tema e o convite do «Tempo da Criação» deste ano. O período ecumênico começa no dia 1 de setembro com o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação e termina a 4 de outubro com a festa de São Francisco. É um momento especial para todos os cristãos, a fim de orarmos e cuidarmos, juntos, da nossa casa comum. Inspiração originária do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, este «Tempo» é uma oportunidade para aperfeiçoarmos a nossa «conversão ecológica», uma conversão encorajada por São João Paulo II como resposta à «catástrofe ecológica» pressagiada por São Paulo VI já em 1970. [1]

Se se aprende a escutá-la, notamos uma espécie de dissonância na voz da criação. Por um lado, é um canto doce que louva o nosso amado Criador; por outro, é um grito amargo que se lamenta dos nossos maus-tratos humanos.

O canto doce da criação convida-nos a praticar uma «espiritualidade ecológica» (Francisco, Carta enc. Laudato si', 216), atenta à presença de Deus no mundo natural. É um convite a fundar a nossa espiritualidade na «consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal» (ibid., 220). Particularmente para os discípulos de Cristo, esta experiência luminosa reforça a consciência de que «por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência» (Jo 1, 3). 

Neste «Tempo da Criação», retomemos a oração na grande catedral da criação, gozando do «grandioso coro cósmico» [2] de inúmeras criaturas que cantam louvores a Deus. Unamo-nos a São Francisco de Assis cantando «Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas» (cf. Cântico do Irmão Sol). Unamo-nos ao Salmista cantando «Todo o ser vivo louve o Senhor» ( Sl 150, 6).

Esta canção doce, infelizmente, é acompanhada por um grito amargo. Ou melhor, por um coro de gritos amargos. Primeiro, é a irmã Madre Terra que grita. À mercê dos nossos excessos consumistas, geme implorando para pararmos com os nossos abusos e a sua destruição. Depois gritam as diversas criaturas. 

À mercê de um «antropocentrismo despótico» (Laudato si', 68), nos antípodas da centralidade de Cristo na obra da criação, estão a extinguir-se inúmeras espécies, cessando para sempre os seus hinos de louvor a Deus. Mas gritam também os mais pobres entre nós. Expostos à crise climática, sofrem mais severamente o impacto de secas, inundações, furacões e vagas de calor que se vão tornando cada vez mais intensas e frequentes. E gritam ainda os nossos irmãos e irmãs de povos indígenas. 

Por causa de predatórios interesses econômicos, os seus territórios ancestrais são invadidos e devastados por todo o lado, lançando «um clamor que brada ao céu» (Francisco, Exortação Apóstólica Pós-sinodal Querida Amazonia, 9). Enfim gritam os nossos filhos. Ameaçados por um egoísmo míope, os adolescentes pedem-nos ansiosamente, a nós adultos, que façamos todo o possível para prevenir ou pelo menos limitar o colapso dos ecossistemas do nosso planeta.

Escutando estes gritos amargos, devemo-nos arrepender e mudar os estilos de vida e os sistemas danosos. O apelo evangélico inicial – «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu» (Mt 3, 2) –, ao convidar a uma nova relação com Deus, pede também uma relação diferente com os outros e com a criação. O estado de degrado da nossa casa comum merece a mesma atenção que outros desafios globais, como as graves crises sanitárias e os conflitos bélicos. «Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa» (Laudato si', 217).

Como pessoas de fé, sentimo-nos ainda mais responsáveis por adotar comportamentos diários em consonância com a referida exigência de conversão. Mas esta não é apenas individual: «a conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária» (ibid., 219). Nesta perspetiva, a própria comunidade das nações é chamada a empenhar-se, com espírito de máxima cooperação, especialmente nos encontros das Nações Unidas dedicados à questão ambiental.

A cimeira COP 27 sobre o clima, que se vai realizar no Egito em novembro de 2022, constitui a próxima oportunidade para promover, todos juntos, uma eficaz implementação do Acordo de Paris. Também por este motivo dispus recentemente que a Santa Sé, em nome e por conta do Estado da Cidade do Vaticano, adira à Convenção-Quadro da ONU sobre as Mudanças Climáticas e ao Acordo de Paris, com a esperança de que a humanidade do século XXI «possa ser lembrada por ter assumido com generosidade as suas graves responsabilidades» (ibid., 165). 

Alcançar o objetivo de Paris de limitar o aumento da temperatura a 1,5°C é bastante árduo e requer uma colaboração responsável entre todas as nações para apresentar planos climáticos ou Contribuições Determinadas a nível nacional mais ambiciosos, para reduzir a zero, com a maior urgência possível, as emissões globais dos gases de efeito estufa. Trata-se de «converter» os modelos de consumo e produção, bem como os estilos de vida, numa direção mais respeitadora da criação e do progresso humano integral de todos os povos presentes e futuros, um progresso fundado na responsabilidade, na prudência/precaução, na solidariedade e atenção aos pobres e às gerações futuras. 

Na base de tudo, deve estar a aliança entre o ser humano e o meio ambiente que, para nós crentes, é «espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho». [3] A transição realizada por esta conversão não pode negligenciar as exigências da justiça, especialmente para com os trabalhadores mais afetados pelo impacto das mudanças climáticas.

Por sua vez, a cimeira COP 15 sobre a biodiversidade, que terá lugar no Canadá em dezembro, proporcionará à boa vontade dos Governos uma oportunidade importante para adotarem um novo acordo multilateral para deter a destruição dos ecossistemas e a extinção das espécies. Segundo a antiga sabedoria dos Jubileus, temos necessidade de «recordar, regressar, repousar e restaurar». [4] 

Para impedir um colapso ainda mais grave da «rede da vida» – Biodiversidade – que Deus nos concedeu, rezemos e convidemos as nações a porem-se de acordo sobre quatro princípios-chave: 

1º. ⇒ Construir uma base ética clara para a transformação que precisamos a fim de salvar a biodiversidade

2º. ⇒ Lutar contra a perda de biodiversidade, apoiar a sua conservação e recuperação e satisfazer de forma sustentável as necessidades das pessoas

3º. ⇒ Promover a solidariedade global, tendo em vista que a biodiversidade é um bem comum global que requer um empenho compartilhado

4º. ⇒ Colocar no centro as pessoas em situações de vulnerabilidade, incluindo as mais afetadas pela perda de biodiversidade, como as populações indígenas, os idosos e os jovens.

Repito: «Quero pedir, em nome de Deus, às grandes empresas extrativas – mineiras, petrolíferas, florestais, imobiliárias, agro-alimentares – que deixem de destruir florestas, zonas úmidas e montanhas, que deixem de poluir rios e mares, que deixem de intoxicar as pessoas e os alimentos». [5]

É impossível não reconhecer a existência duma «dívida ecológica» (Laudato si', 51) das nações economicamente mais ricas, que poluíram mais nos últimos dois séculos; isso exige que elas realizem passos mais ambiciosos tanto na COP 27 como na COP 15. Além duma decidida ação dentro das suas fronteiras, inclui cumprir as suas promessas de apoio financeiro e técnico às nações economicamente mais pobres, que já sofrem o peso maior da crise climática. 

Além disso, seria oportuno pensar urgentemente também num maior apoio financeiro para a conservação da biodiversidade. Significativas, embora «diversificadas» (cf. ibid., 52), são também as responsabilidades dos países economicamente menos ricos; os atrasos dos outros não podem jamais justificar a inação de quem quer que seja. É necessário agirem todos, com decisão. Estamos a chegar a «um ponto de ruptura» (cf. ibid., 61).

Durante este «Tempo da Criação», rezemos para que as cimeiras COP 27 e COP 15 possam unir a família humana (cf. ibid., 13) para enfrentar decididamente a dupla crise do clima e da redução da biodiversidade. Recordando a exortação de São Paulo para nos alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram (cf. Rm 12, 15), choremos com o grito amargo da criação, escutemo-lo e respondamos com os fatos para que nós e as gerações futuras possamos ainda alegrar-nos com o canto doce de vida e de esperança das criaturas.


Roma, São João de Latrão, na Memória de Nossa Senhora do Carmo, dia 16 de julho de 2022.

FRANCISCO





[1] Cf. Discurso à FAO, 16 de novembro de 1970.

[2] São João Paulo II, Audiência Geral, 10 de julho de 2002.



[5] Vídeo-mensagem aos Movimentos Populares, 16 de outubro de 2021.

15 de julho de 2022

Mensagem do Santo Padre aos participantes na conferência "Resiliência de Pessoas e Ecossistemas sob Estresse Climático" - Casina Pio IV, 13-14 jul. 2022.


Saúdo cordialmente os organizadores e participantes da "Conferência sobre Resiliência de Pessoas e Ecossistemas sob Estresse Climático", promovida pela Pontifícia Academia de Ciências. Agradeço a Sua Eminência o Cardeal Peter Turkson, Chanceler da Academia, Sua Excelência Dom Marcelo Sánchez Sorondo e a todos os responsáveis ​​por tornar possível este encontro.

O fenômeno das mudanças climáticas tornou-se uma emergência que não permanece mais à margem da sociedade. Em vez disso, assumiu um lugar central, remodelando não apenas os sistemas industriais e agrícolas, mas também afetando negativamente a família humana global, especialmente os pobres e aqueles que vivem nas periferias econômicas do nosso mundo. Atualmente, enfrentamos dois desafios: diminuir os riscos climáticos através da redução das emissões e ajudar e capacitar as pessoas a se adaptarem às mudanças climáticas que se agravam progressivamente. Esses desafios nos chamam a pensar em uma abordagem multidimensional para proteger os indivíduos e o nosso planeta.

A fé cristã oferece uma contribuição particular neste sentido. O livro do Gênesis diz-nos que o Senhor viu que tudo o que tinha feito era muito bom (cf. Gn 1,31) e confiou aos homens a responsabilidade de serem administradores do seu dom da criação (cf. Gn 2,15). No Evangelho de Mateus, Jesus reforça a bondade do mundo natural, lembrando-nos do cuidado de Deus por todas as suas criaturas (cf. Mt 6:26.28-29). À luz desses ensinamentos bíblicos, então, cuidar da nossa casa comum, mesmo sem considerar os efeitos das mudanças climáticas, não é simplesmente um esforço utilitário, mas uma obrigação moral para todos os homens e mulheres como filhos de Deus. Com isso em mente, cada um de nós deve se perguntar: “Que tipo de mundo queremos para nós mesmos e para aqueles que virão depois de nós”?

Para ajudar a responder a essa pergunta, falei de uma “conversão ecológica” (cf. Laudato Si’, 216-221) que exige uma mudança de mentalidade e um compromisso de trabalhar pela resiliência das pessoas e dos ecossistemas em que vivem. Esta conversão tem três elementos espirituais importantes que eu gostaria de oferecer para sua consideração. A primeira implica gratidão pelo dom amoroso e generoso da criação de Deus. A segunda exige reconhecer que estamos unidos em uma comunhão universal uns com os outros e com o resto das criaturas do mundo. A terceira envolve abordar os problemas ambientais não como indivíduos isolados, mas em solidariedade como uma comunidade.

Com base nesses elementos, são necessários esforços corajosos, cooperativos e visionários entre os líderes religiosos, políticos, sociais e culturais em nível local, nacional e internacional para encontrar soluções concretas para os graves e crescentes problemas que enfrentamos. Estou pensando, por exemplo, no papel que as nações mais favorecidas economicamente podem desempenhar na redução de suas próprias emissões e na prestação de assistência financeira e tecnológica para que as áreas menos prósperas do mundo sigam seu exemplo. Também é crucial o acesso a energia limpa e água potável, o apoio dado aos agricultores de todo o mundo para a mudança para uma agricultura resiliente ao clima, o compromisso com caminhos sustentáveis ​​de desenvolvimento e estilos de vida sóbrios destinados a preservar os recursos naturais do mundo e o fornecimento de educação e saúde aos mais pobres e vulneráveis ​​da população global.

Aqui, gostaria de mencionar também duas preocupações adicionais: a perda de biodiversidade (cf. Laudato Si', 32-33) e as muitas guerras travadas em várias regiões do mundo que, juntas, trazem consigo consequências prejudiciais para a sobrevivência e o bem-estar humanos, incluindo problemas de segurança alimentar e poluição crescente. Essas crises, juntamente com a do clima da Terra, mostram que “tudo está conectado” (Fratelli Tutti, 34) e que promover o bem comum de longo prazo de nosso planeta é essencial para uma genuína conversão ecológica.

Pelas razões acima mencionadas, aprovo recentemente que a Santa Sé, em nome e em nome do Estado da Cidade do Vaticano, adere à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e ao Acordo de Paris, com a esperança de que “embora a pós-industrial pode muito bem ser lembrado como um dos mais irresponsáveis ​​da história, mas há motivos para esperar que a humanidade no alvorecer do século XXI seja lembrada por ter assumido generosamente suas graves responsabilidades (Laudato Si', 165).

Queridos irmãos e irmãs, apraz-me que seu trabalho nestes dias se dedique a examinar o impacto das mudanças em nosso clima e buscar soluções práticas que possam ser implementadas prontamente para aumentar a resiliência das pessoas e dos ecossistemas. Trabalhando juntos, homens e mulheres de boa vontade podem abordar a escala e a complexidade das questões que estão diante de nós, proteger a família humana e o dom da criação de Deus dos extremos climáticos e promover os bens da justiça e da paz.

Com a certeza das minhas orações para que a vossa Conferência dê bons frutos, invoco sobre todos vós as abundantes bênçãos de Deus Todo-Poderoso.


Vaticano, 13 de julho de 2022.
Papa Francisco



1 de julho de 2022

Mensagem do Papa Francisco por ocasião da 1ª. Reunião dos Estados-parte no Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares


Carta apresentada por Dom Paul R. Gallagher
Secretário para as Relações com os Estados e as Organizações Internacionais da Missão da Santa Sé na ONU  

À Sua Excelência, o Embaixador
Alexander Kmentt
Presidente da Primeira  Reunião dos Estados-Partes
no Tratado sobre a proibição  das armas nucleares


Estou feliz por saudar Vossa Excelência e os distintos participantes por ocasião desta primeira Reunião dos Estados-Partes no Tratado sobre a proibição das armas nucleares.

Na minha mensagem à conferência diplomática convocada há cinco anos para negociar este Tratado, perguntei: «Por que estabelecer este exigente e clarividente objetivo no atual cenário internacional caraterizado por um clima instável de conflitualidade, que é ao mesmo tempo causa e indicação das dificuldades que se encontram ao promover e fortalecer o processo de desarmamento e de não proliferação nucleares?» (Mensagem para a Conferência das Nações Unidas finalizada a negociar um instrumento juridicamente vinculante para proibir as armas nucleares, que leve à sua total eliminação, 23 de março de 2017).

Neste momento particular da história, em que o mundo parece estar numa encruzilhada, a visão corajosa deste instrumento jurídico, fortemente inspirado por argumentações éticas e morais, parece ainda mais oportuna. Com efeito, esta reunião tem lugar num momento que, inevitavelmente, exige mais reflexão sobre a segurança e a paz. No contexto atual, falar de desarmamento ou apoiá-lo pode parecer paradoxal para muitos. No entanto, devemos permanecer conscientes dos perigos de abordagens míopes da segurança nacional e internacional e dos riscos de proliferação. Como todos sabemos, se não o fizermos, o preço será inevitavelmente pago por um número de vidas inocentes tiradas, e medido em termos de carnificina e destruição. Por conseguinte, renovo enfaticamente o meu apelo a fazer silenciar todas as armas e a eliminar as causas dos conflitos através do recurso incansável à negociação: «Quem faz a guerra esquece a humanidade» (Pós-Angelus , 27 de fevereiro de 2022).

A paz é indivisível, e para ser verdadeiramente justa e duradoura, deve ser universal. É um modo de raciocinar enganador e contraproducente pensar que a segurança e a paz de uns estão separadas da segurança coletiva e da paz de outros. É também uma das lições que a pandemia da Covid-19 demonstrou tragicamente. «A segurança do nosso próprio futuro depende da garantia da segurança pacífica dos outros, pois se a paz, a segurança e a estabilidade não forem fundadas no plano global, jamais serão gozadas. Somos responsáveis individual e coletivamente pelo bem-estar, quer presente quer futuro, dos nossos irmãos e irmãs» (Mensagem por ocasião da Conferência sobre o impacto humanitário das armas nucleares , 07 de dezembro de 2014).

A Santa Sé está certa de que um mundo livre de armas nucleares é necessário e ao mesmo tempo possível. Num sistema de segurança coletiva, não há lugar para armas nucleares e outras armas de destruição de massa. Com efeito, «se tomarmos em consideração as principais ameaças contra a paz e a segurança, com as suas múltiplas dimensões neste mundo multipolar do século XXI , como por exemplo o terrorismo, os conflitos assimétricos, a segurança informática, as problemáticas ambientais, a pobreza, muitas dúvidas emergem acerca da insuficiência da dissuasão nuclear para responder de modo eficaz a tais desafios. Estas preocupações assumem ainda mais consistência quando consideramos as catastróficas consequências humanitárias e ambientais que derivam de qualquer utilização das armas nucleares com efeitos devastadores indiscriminados e incontroláveis no tempo e no espaço» (Mensagem para a Conferência das Nações Unidas finalizada a negociar um instrumento juridicamente vinculante para proibir as armas nucleares, que leve à sua total eliminação, 23 de março de 2017).  Também não podemos ignorar a precariedade que deriva da simples manutenção destas armas: o risco de acidentes, involuntários ou não, que poderiam conduzir a cenários verdadeiramente preocupantes.

As armas nucleares são uma responsabilidade pesada e perigosa. Representam um “multiplicador de risco” que proporciona apenas a ilusão de uma “espécie de paz”. Desejo reafirmar aqui que a utilização de armas nucleares, bem como a sua mera posse, é imoral. Procurar defender e garantir a estabilidade e a paz através de uma falsa sensação de segurança e de um “equilíbrio do terror”, sustentado por uma mentalidade de medo e desconfiança, conduz inevitavelmente a relações envenenadas entre os povos e dificulta qualquer forma possível de verdadeiro diálogo. A sua posse leva facilmente a ameaças da sua utilização, tornando-se uma espécie de “chantagem” que deveria ser abominável para as consciências da humanidade.

A este respeito, «todos devem estar convencidos de que nem a renúncia à competição militar, nem a redução dos armamentos, nem a sua completa eliminação, que seria o principal, de modo algum se pode levar a efeito, se não se proceder a um desarmamento integral, que atinja o próprio espírito, isto é, se não trabalharem todos em concórdia e sinceridade, para afastar o medo e a psicose de uma possível guerra» (Papa João XXIII , Pacem in terris ).

Por estas razões, é importante reconhecer a necessidade global e premente da responsabilidade a diferentes níveis. Tal responsabilidade é partilhada por todos e abrange dois níveis: em primeiro lugar, um nível público, como Estados-membros da mesma família de nações. Em segundo lugar, um nível pessoal, como indivíduos e membros da mesma família humana e como pessoas de boa vontade. Qualquer que seja o nosso papel ou status, a cada um de nós correspondem vários níveis de responsabilidade: como podemos eventualmente imaginar de apertar o botão para lançar uma bomba nuclear? Como podemos, em boa consciência, empenhar-nos em modernizar os arsenais nucleares? É oportuno que este Tratado reconheça também que a educação para a paz pode desempenhar um papel importante, ajudando os jovens a tomar consciência dos riscos e consequências das armas nucleares para as gerações presentes e futuras.

Os tratados de desarmamento existentes são muito mais do que meras obrigações jurídicas. São também compromissos morais baseados na confiança entre Estados e entre os seus representantes, enraizados na confiança que os cidadãos depositam nos seus governos, com consequências éticas para as gerações presentes e futuras da humanidade. A adesão e o respeito pelos acordos internacionais de desarmamento e pelo direito internacional não são uma forma de fraqueza. Pelo contrário, constituem uma fonte de força e de responsabilidade, uma vez que aumentam a confiança e a estabilidade. Além disso, como no caso deste Tratado, oferecem cooperação e assistência internacional às vítimas e também ao meio ambiente: aqui o meu pensamento dirige-se aos Hibakusha, os sobreviventes dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, e a todas as vítimas dos testes de armas nucleares.

Concluindo, ao lançar as bases para a implementação deste Tratado, desejo encorajar-vos, representantes dos Estados, organizações internacionais e sociedade civil, a prosseguir no caminho que escolhestes para promover uma cultura de vida e paz baseada na dignidade da pessoa humana e na consciência de que somos todos irmãos e irmãs. Por sua vez, a Igreja católica permanece irrevogavelmente empenhada em promover a paz entre povos e nações e em incentivar a educação para a paz através das suas instituições. Este é um dever ao qual a Igreja se sente vinculada perante Deus e todos os homens e mulheres do nosso mundo. Possa o Senhor abençoar cada um de vós e os vossos esforços ao serviço da justiça e da paz.


Francisco




Nota do blog extraídas da Pacem in Terris:

"É-nos igualmente doloroso constatar como em estados economicamente mais desenvolvidos se fabricaram e ainda se fabricam gigantescos armamentos. Gastam-se nisso somas enormes de recursos materiais e energias espirituais. Impõem-se sacrifícios nada leves aos cidadãos dos respectivos países, enquanto outras nações carecem da ajuda indispensável ao próprio desenvolvimento econômico e social".

"A todo custo se deverá evitar que pela terceira vez desabe sobre a humanidade a desgraça de uma guerra mundial, com suas imensas catástrofes econômicas e sociais e com as suas muitas depravações e perturbações morais".