Quaresma 2023

Oferta penitencial de um texto, ou um podcast, ou um vídeo por dia - durante a Quaresma 2023 - para um momento de meditação a ser realizado após as orações próprias do período.  Material não autoral. 

Em elaboração.



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46º. dia, 08 de Abril - Terceiro Dia do Tríduo Pascal
Sábado de Aleluia (Tenebrae) 






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45º. dia, 07 de Abril - Segundo Dia do Tríduo Pascal
Sexta-feira Santa (Tenebrae) 





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44º. dia, 06 de Abril - Primeiro Dia do Tríduo Pascal
Ofício das Trevas (Tenebrae) 







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43º. dia, 05 de Abril - 




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42º. dia, 04 de Abril - “O Espírito Santo recorda-nos o acesso ao Pai”
por  Papa Francisco (17.05.2020)

Na despedida dos discípulos (cf. Jo 14, 15-21), Jesus dá-lhes tranquilidade e paz, com uma promessa: «Não vos deixarei órfãos» (v. 18). Defende-os daquela dor, daquele sentimento doloroso, da orfandade. Hoje, no mundo, há um grande sentimento de orfandade: tantos têm muitas coisas, mas falta o Pai. E isto repete-se na história da humanidade: quando falta o Pai, falta algo e há sempre o desejo de encontrar, de voltar a encontrar o Pai, até nos mitos antigos. 

Pensemos nos mitos de Édipo, de Telémaco e em muitos outros: procurar sempre o Pai que falta. Hoje podemos dizer que vivemos numa sociedade onde falta o Pai, um sentido de orfandade que diz respeito à pertença e à fraternidade.

É por isso que Jesus promete: «Rogarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Paráclito» (v. 16). “Vou-me embora” - diz Jesus - “mas virá outro que vos ensinará o acesso ao Pai. Recordar-vos-á o acesso ao Pai”. O Espírito Santo não vem para “ter os seus clientes”; vem para indicar o acesso ao Pai, para recordar o acesso ao Pai, aquele que Jesus abriu, aquele que Jesus mostrou. Não existe uma espiritualidade só do Filho, só do Espírito Santo: o centro é o Pai. O Filho é o enviado do Pai e volta para o Pai. O Espírito Santo é enviado pelo Pai para recordar e ensinar o acesso ao Pai.

Somente com esta consciência de filhos que não são órfãos podemos viver em paz entre nós. As guerras, tanto as pequenas como as grandes, têm sempre uma dimensão de orfandade: falta o Pai para fazer a paz. Por isso, quando à primeira comunidade Pedro diz que respondam ao povo por que são cristãos (cf. 1 Pd 3, 15-18), diz: «Fazei-o com docilidade e respeito. Tende uma consciência reta» (v. 16), ou seja, a mansidão que o Espírito Santo dá. 

O Espírito Santo ensina-nos esta mansidão, esta docilidade dos filhos do Pai. O Espírito Santo não nos ensina a insultar. E uma das consequências do sentido de orfandade é o insulto, as guerras, pois se não há o Pai, não há os irmãos, perde-se a fraternidade. São - esta docilidade, respeito e mansidão - atitudes de pertença, de pertença a uma família que está certa de ter um Pai.

«Rogarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Paráclito» (Jo 14, 16), que vos recordará o acesso ao Pai, lembrando-vos que temos um Pai que é o centro de tudo, a origem de tudo, a unidade de todos, a salvação de todos, porque enviou o seu Filho para salvar todos nós. E agora envia o Espírito Santo para nos recordar o acesso a Ele, ao Pai e, a partir desta paternidade, a atitude fraterna de mansidão, de docilidade e de paz.

Peçamos ao Espírito Santo que nos recorde sempre, sempre, este acesso ao Pai, que nos recorde que temos um Pai. E a esta civilização, que tem um grande sentido de orfandade, conceda a graça de voltar a encontrar o Pai, o Pai que dá sentido a toda a vida e faz com que os homens sejam uma família.

Oração para fazer a Comunhão espiritual

"Meu Jesus, creio que estais presente no Santíssimo Sacramento. Amo-vos acima de tudo e a minha alma suspira por Vós. Mas dado que agora não posso receber-vos no Santíssimo Sacramento, vinde, pelo menos espiritualmente, ao meu coração. Abraço-vos como se já estivésseis comigo: uno-me inteiramente a Vós. Ah! Não permitais que eu volte a separar-me de Vós!"


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41º. dia, 03 de Abril - Meditações para a Quaresma
por Opus Dei


Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem” (Mt 5,44). Essas indicações de Cristo estão entre as mais surpreendentes da sua pregação. Talvez muitas vezes elas contrastem com as nossas reações mais imediatas. Percebemos que essas palavras não sugerem uma reação superficial, como se simplesmente nos pedissem para ceder a quem nos faz o mal. É muito mais: devemos amar e rezar.

As palavras de Jesus são claras (...). Não é opcional, é uma ordem. (...). Ele sabe muito bem que amar os inimigos vai além das nossas possibilidades, mas foi por esta razão que se fez homem: não para nos deixar tal como somos, mas para nos transformar em homens e mulheres capazes de um amor maior, aquele do seu e do nosso Pai (...). Este mandamento, de responder ao insulto e à ofensa com o amor, gerou no mundo uma nova cultura: a cultura da misericórdia (...). É a revolução do amor, em que os protagonistas são os mártires de todos os tempos” [1].

Para conseguir isso, poremos toda a nossa esperança na graça. “Guardarei as vossas leis; não me abandoneis jamais” (Sal 119,8), pedimos com o salmo. Essa ajuda de Deus não só atua em nossa vontade, mas também na inteligência e no coração. 

Penso que não tenho inimigos" – escrevia São Josemaría, numa época de perseguições - "Na minha vida, encontrei-me com pessoas que me causaram algum mal, um mal positivo. Não acho que sejam inimigos: sou muito pouca coisa para tê-los. No entanto, a partir de agora, eles e elas ficam incluídos na categoria dos meus benfeitores, para que se peça a Deus por eles, diariamente” [2].

“Que razão tens para não amar?" – pergunta-se São João Crisóstomo - "Que o outro respondeu aos teus favores com injúrias? Que quis derramar teu sangue em agradecimentos por teus benefícios? Mas, se amas por Cristo, essas são razões que devem te mover a amar ainda mais. Porque o que destrói as amizades do mundo, isso é o que afiança a caridade de Cristo. Como? Primeiro, porque este ingrato é para ti causa de um prêmio maior. Segundo, porque ele precisamente necessita de mais ajuda e cuidado mais intenso” [3]

Como o mundo seria cinza se todas as pessoas fossem iguais e se todos parecessem para nós igualmente agradáveis. A realidade não é essa, e Jesus nos pede que amemos, rezemos e sirvamos a todos. Pensar o contrário, traz-nos à cabeça as palavras de Caim, impregnadas de inveja e ódio: “Sou eu, porventura, o guarda do meu irmão?” (Gen 4,9). Se dirigirmos o olhar a Cristo, ressoa em nossa alma o seu amor a todos os homens: “Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45). 

Hoje, nos fará bem pensar num inimigo – creio que todos nós temos um – alguém que nos fez mal ou que nos quer fazer mal ou tenta nos prejudicar: Rezemos por ele. Peçamos ao Senhor a graça de amá-lo” [4]. No entanto, não é preciso pensar em lugares distantes, em campos de batalha ou inimigos poderosos. Talvez no nosso próprio lar tenhamos que lutar por compreender, perdoar e não guardar rancor de um irmão, uma filha ou do nosso cônjuge. Quantas vezes pudemos comprovar como a graça faz possível o que antes sequer tínhamos imaginado.

Os homem sem remédio são aqueles que deixam de prestar atenção em seus próprios pecados para reparar nos pecados dos outros" – escreve Santo Agostinho - "Não procuram o que é necessário corrigir, mas em que podem morder. E, ao serem incapazes de escusarem-se a si mesmos, estão sempre dispostos a acusar os outros” [5]. Empreender a tarefa de amar os inimigos traz como consequência que, ao mesmo tempo, aprendemos a colocar o foco em nossa debilidade, em nossas faltas, em tudo aquilo da nossa vida que ainda deve identificar-se com Cristo. 

Esta atitude está impregnada de um realismo muito mais prático, porque o que podemos realmente mudar, ajudados por Deus, é o que temos em nosso coração. Abandonamos um campo de batalha de fantasia – a vida dos outros – para encher o mundo de bem, a partir de uma luta muito mais próxima. Deixamos que Deus mude o curso da história, enquanto nós retificamos o rumo que temos em nossas mãos.

Temos que compreender a todos, temos que conviver com todos, temos que desculpar a todos, temos que perdoar a todos. Não diremos que o injusto é justo, que a ofensa a Deus não é ofensa a Deus, que o mau é bom. No entanto, perante o mal, não responderemos com outro mal, mas com a doutrina clara e com a ação boa: afogando o mal em abundância de bem" (cfr. Rom 12, 21) [6]

Não se trata de não corrigir quando a circunstância assim o mereça. Também não se trata de ser ingênuos, mas todo o contrário: trata-se de adquirir a sabedoria de Deus. O amor maduro, generoso e discreto é capaz de se esquecer dos agravos, não tem em conta as falta de apreço, arma-se de coragem e imita Cristo ao pé da cruz: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). 

Podemos pedir a Nossa Senhora, rainha da paz, que nos ensine a amar a todos os seus filhos, a rezar por aqueles que talvez nos tenham prejudicado, e que nos ajude a trazer o campo de batalha para a nossa própria alma.


[1] Francisco, Ângelus, 24.02.2019.
[2] São Josemaria, Caderno 4, 28/10/1931, citado em Caminho. Edição comentada, p. 810.
[3] São João Crisóstomo, Homilia sobre são Mateus, 60, 3.
[4] Francisco, Homilia, 19.06.2018.
[5] Santo Agostinho, Sermão 19.
[6] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 182.


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40º. dia, 02 de Abril - Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor,
por Papa Francisco


No calvário, confrontam-se duas mentalidades; vemos, no Evangelho, como as palavras de Jesus crucificado se contrapõem às dos seus adversários. Estes vão repetindo, como se fosse um refrão, «salva-te a ti mesmo». Dizem-no os chefes: «Salve-se a si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito» (Lc 23, 35). Proferem-no os soldados: «Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo» (23, 37). E também um dos malfeitores, tendo ouvido tais palavras, repete-as: «Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo» (23, 39). 

Salvar-se a si mesmo, olhar por si mesmo, pensar em si mesmo; não nos outros, mas apenas na própria saúde, no próprio sucesso, nos próprios interesses; ter, poder e aparecer. "Salva-te a ti mesmo": é o refrão da humanidade, que crucificou o Senhor. Reflitamos nisto.

Mas, à mentalidade do «eu», opõe-se a de Deus; o "salva-te a ti mesmo" confronta-se com o Salvador que Se oferece a Si mesmo. No Calvário, segundo o Evangelho de hoje, também Jesus toma a palavra três vezes como os seus adversários (cf. 23, 34.43.46). Em nenhum dos casos, porém, reivindica qualquer coisa para Si mesmo; na verdade, nem sequer Se defende ou justifica a Si mesmo. Reza ao Pai e oferece misericórdia ao bom ladrão. Particularmente uma das suas expressões marca a diferença do "salva-te a ti mesmo": «Perdoa-lhes, Pai» (23, 34).

Detenhamo-nos nestas palavras. Quando são pronunciadas pelo Senhor? Num momento específico: durante a crucifixão, quando sente os cravos perfurar-Lhe os pulsos e os pés. Tentemos imaginar a dor lancinante que isso provocava. Lá, na dor física mais aguda da Paixão, Cristo pede perdão para quem O está perfurando. Naqueles momentos, apetecer-nos-ia apenas gritar toda a nossa raiva e sofrimento; Jesus, ao contrário, diz: "Perdoa-lhes, Pai". 

Diversamente doutros mártires referidos na Bíblia (cf. 2 Mac 7, 18-19), não repreende os algozes nem ameaça castigos em nome de Deus, mas reza pelos ímpios. Cravado no patíbulo da humilhação, aumenta a intensidade do dom, que se torna “per-dão”.

Irmãos, irmãs! Pensemos que Deus procede assim também conosco: quando Lhe provocamos dor com as nossas ações, Ele sofre e o único desejo que tem é poder perdoar-nos. Para nos darmos conta disto, contemplemos o Crucificado. É das suas chagas, daqueles orifícios de dor causados pelos nossos cravos que brota o perdão. Fixemos Jesus na cruz e pensemos que nunca recebemos palavras melhores: "Perdoa-lhes, Pai". Fixemos Jesus na cruz e vejamos que nunca recebemos um olhar mais terno e compassivo. Fixemos Jesus na cruz e convençamo-nos de que nunca recebemos um abraço mais amoroso. Fixemos o Crucificado e digamos: «Obrigado, Jesus! Amas-me e perdoas-me sempre, mesmo quando me custa amar e perdoar a mim mesmo».

Lá, enquanto é crucificado, no momento mais difícil, Jesus vive o seu mandamento mais difícil: o amor aos inimigos. Pensemos em alguém que nos feriu, ofendeu, decepcionou; em alguém que nos irritou, não nos compreendeu ou não foi um bom exemplo. Quanto tempo nos demoramos a pensar em quem nos fez mal! Como também a olhar para nós mesmos e a lamuriar-nos pelas feridas que nos infligiram os outros, a vida ou a história. 

Hoje Jesus ensina-nos a não perdermos nisso, mas a reagir, a romper o círculo vicioso do mal e dos queixumes, a reagir aos cravos da vida com o amor, aos golpes do ódio com a carícia do perdão. Mas nós, discípulos de Jesus, seguimos o Mestre ou o nosso instinto rancoroso? É uma pergunta que devemos colocar a nós mesmos: seguimos o Mestre ou o nosso instinto rancoroso? Se queremos verificar a nossa pertença a Cristo, vejamos como nos comportamos com quem nos feriu. 

O Senhor pede-nos para responder, não como nos apetece a nós nem como fazem todos, mas como Ele procede conosco. Pede-nos para quebrar a corrente do «amo-te se me amares; sou teu amigo, se fores meu amigo; ajudo-te se me ajudares». Assim não! Em vez disso, compaixão e misericórdia para com todos, porque Deus vê um filho em cada um. Não nos divide em bons e maus, em amigos e inimigos. Somos nós que o fazemos, fazendo-O sofrer. 

Para Ele, todos somos filhos amados, que deseja abraçar e perdoar. Vemos isto também naquele convite para o banquete de núpcias do filho: aquele senhor envia os seus servos à encruzilhada dos caminhos, dizendo-lhes «tragam todos, brancos, pretos, bons e maus, todos, sãos e doentes, todos...» ( cf. Mt 22, 9-10). O amor de Jesus é para todos; nisto, não há privilégios. Todos. O privilégio de cada um de nós é ser amado, perdoado.

"Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem". O Evangelho sublinha que Jesus «dizia» (23, 34) isso, isto é, não o dissera uma vez por todas no momento da crucifixão, mas passou as horas na cruz com estas palavras nos lábios e no coração. Deus não Se cansa de perdoar. Devemos compreender isto… e não só com a mente, mas compreendê-lo com o coração: Deus não Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de Lhe pedir perdão, mas Ele nunca Se cansa de perdoar. Ele não suporta até certo ponto para depois mudar de ideias, como nós somos tentados a fazer. 

Jesus – ensina o Evangelho de Lucas – veio ao mundo para nos trazer o perdão dos nossos pecados (cf. Lc 1, 77) e, no fim, deixou-nos esta ordem concreta: pregar a todos, no seu nome, o perdão dos pecados (cf. Lc 24, 47). Irmãos e irmãs, não nos cansemos do perdão de Deus: nós, sacerdotes, de o ministrar; e, cada cristão, de o receber e testemunhar. Não nos cansemos do perdão de Deus.

"Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem". Notemos mais uma coisa. Jesus não só implora o perdão, mas diz também o motivo: perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Como é possível? Os seus opositores tinham premeditado a morte d’Ele, organizado a sua captura, os julgamentos e agora estão lá, no Calvário, para assistir ao seu fim... e, todavia, Cristo justifica aqueles violentos, porque não sabem. 

É assim que Jesus Se comporta conosco: faz-Se nosso advogado. Não Se coloca contra nós, mas por nós contra o nosso pecado. E é interessante o argumento que usa: porque não sabem, ou seja, aquela ignorância do coração que temos todos nós pecadores. Quando se usa violência, nada mais se sabe sobre Deus, que é Pai, nem sobre os outros, que são irmãos. Esquece-se a razão por que se está no mundo e chega-se a realizar absurdas crueldades. 

Vemo-lo na loucura da guerra, onde se torna a crucificar Cristo. Sim, Cristo é pregado na cruz mais uma vez nas mães que choram a morte injusta de maridos e filhos. É crucificado nos refugiados que fogem das bombas com os meninos no braço. É crucificado nos idosos deixados sozinhos a morrer, nos jovens privados de futuro, nos soldados mandados a matar os seus irmãos. Hoje, Cristo está crucificado aí.

"Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem". Muitos ouvem esta frase incrível; mas apenas um a acolhe. É um malfeitor, crucificado ao lado de Jesus. Podemos pensar que a misericórdia de Cristo suscitou nele uma última esperança e o levou a pronunciar estas palavras: «Jesus, lembra-te de mim» (Lc 23, 42), como se dissesse: «Todos se esqueceram de mim, mas Tu pensas até naqueles que Te crucificam. Então poderia haver também para mim um lugar contigo?» 

O bom ladrão acolhe Deus, quando a vida dele está prestes a terminar e, assim, a sua vida recomeça; no inferno do mundo, vê abrir-se o Paraíso: «Hoje estarás comigo no Paraíso» (23, 43). Eis o prodígio do perdão de Deus, que transforma o último pedido dum condenado à morte na primeira canonização da história.

Irmãos, irmãs! Nesta semana, abramo-nos à certeza de que Deus pode perdoar todo o pecado. Deus tudo perdoa; pode perdoar todo o afastamento, mudar em dança todo o lamento (cf. Sal 30,12); a certeza de que, com Cristo, há sempre lugar para cada um; a certeza de que, com Jesus, a vida nunca acaba. Nunca é tarde demais; com Deus, sempre se pode voltar a viver. Coragem! Caminhemos para a Páscoa com o seu perdão. 

Porque Cristo intercede continuamente por nós junto do Pai (cf. Heb 7, 25) e, olhando para o nosso mundo violento e, o nosso mundo ferido, não Se cansa de repetir (e em silêncio, no coração, repitamos com Ele): "Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem".






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39º. dia, 01 de Abril - Lidando com a ansiedade,
por Irmã Margaret Dorgan, DCM - Tradução Antonieta Vigário


Santa Teresa do Menino Jesus é uma mestra espiritual pragmática, que quer que nós usemos todos os aspectos da nossa experiência humana por Deus. Com ela, nada é desprovido de valor. Ela é maravilhosamente capacitada em transformar o que parece negativo em positivo. 

Mesmo antes de fazer dezessete anos, escreve à sua irmã: “Ah! Saibamos aproveitar, aproveitar os mais pequeninos momentos; vamos agir como avarentas, e a ser ciosas das mais pequeninas coisas pelo Amado. Já passou outro ano, e tal como este assim também a nossa vida passará e brevemente diremos: «acabou». Não percamos tempo; em breve a eternidade brilhará para nós” (Carta 101). Teresinha  tinha então pouco mais do que sete anos e meio para viver.

Tornar cada momento valioso significa que centramos a nossa atenção naquilo em que, no presente, estamos a lidar nas nossas vidas. O que aconteceu antes e o que virá depois contém a sua própria medida da graça de Deus. Mas só este <<Hoje>> encerra a graça que nos está a ser oferecida. Nós centramos a nossa atenção para encarar este hoje, para o aceitar em toda a sua individualidade e acolher o que Deus tem guardado neste dia para nós. 

Este hoje é a nossa ligação com a eternidade — eternidade, que nascerá para nós como uma espécie muito diferente de dia —, um dia que nunca acaba. O movimento do tempo não é assim. Cada hora passa e outra chega. O ontem foi-se e o amanhã ainda não chegou, e quando ele chegar este hoje já não existirá. Por isso, nós agarramos cada hora e deixamos que ela nos mostre o seu tesouro para nós.

A apreensão acerca do futuro afasta-nos do dom que hoje Deus nos está a oferecer. Desperdiçamos a nossa energia interior, que devia de estar centrada na graça que nos está a ser dada. Para receber essa graça em toda a plenitude de força e de luz, não podemos deixar-nos levar pelo contínuo arrastão da preocupação. A ansiedade distrai da mensagem de amor misericordioso que o nosso Deus nos quer oferecer.

Teresinha diz, “Jesus dá-me a cada momento aquilo que eu sou capaz de suportar e nada mais. Se no momento seguinte Ele aumenta o meu sofrimento, Ele aumenta também a minha força. Eu só sofro por um instante” (Últimas Recordações). É por pensarmos demasiado no passado e no futuro que ficamos sem coragem, explica ela.

Mas o que é que acontece se não somos capazes de não nos preocuparmos? O que sucede se isto se pega à vida como um intruso que não se vai embora? Teresinha diria para oferecermos o peso desse intruso enquanto não nos virmos livres dele. Tu podes pedir a Deus para estar contigo durante essa visita não desejada. E usa essas contínuas lembranças para pedir esperança.

A jovem carmelita sofreu uma intensa purificação espiritual, que é chamada noite escura do espírito. Foi assaltada por dúvidas acerca da eternidade — pensamentos indesejados que faziam troça da sua fé, dizendo-lhe que não existia nada depois desta vida terrena. A preocupação pode ser aquilo que nos ataca, e ela motiva-nos a fazer mais atos de esperança e de confiança, pedindo à misericórdia de Deus para penetrar na nossa consciência. 

Ela explica o seu próprio modo de agir: “A cada nova ocasião de combate, quando o meu inimigo me provoca, eu porto-me com bravura.... Viro as costas ao adversário sem me dignar olhá-lo de frente... corro para o meu Jesus” (História de uma Alma). Quando a ansiedade nos assalta, também nós podemos tratá-la como um adversário com o qual nos recusamos a lutar. 

Não fiquemos envolvidos num diálogo-de-surdos com as preocupações. Elas enfraquecem-nos e consomem a nossa energia no que ainda não aconteceu. Elas absorvem as graças do momento presente. E no entanto, se nós estamos tão cansados com o seu persistente aborrecimento que não as podemos aguentar, ofereçamo-las como se fossem um inseto que está a fazer barulho à nossa volta e que não voa para longe. Usemo-las para centrar a nossa atenção na misericórdia de Deus.

Podemos usar este método com tudo aquilo que nos tira a paz. Usemo-lo com as tentações em toda a sua variedade — com os pensamentos de orgulho ou de ira, com o que quer que seja que nos solicita com aborrecidas investidas para nos afastar de Deus. Não nos empenhemos num duelo direto porque isso seria só pôr essas imagens mais firmemente na nossa imaginação. 

Façamos um rápido voo para a misericórdia de Deus. Uma desejo de ajuda, e digamos: “Ó Jesus, vem em meu auxílio”. Este recolhimento em paz põe-nos imediatamente em contato com Cristo, que está sempre presente para cada um de nós. Assim se transforma o que é negativo em positivo.

Teresinha reflete também nos sentimentos que estão para além do nosso controle e diz: “Eu não me permito cair na armadilha” (Últimas Recordações). Caíste na armadilha? Teresinha conta como abrir a armadilha é voltar imediatamente para o amor misericordioso de Deus. 

Quanto mais nós usamos este método, mais nós ganhamos um hábito. Quando as tentações ou as ansiedades não desejadas chegam aos nossos pensamentos, nós damo-nos conta de que estamos a ir mais rapidamente — quase automaticamente — para a libertação que a lembrança do amor misericordioso de Deus nos dá.

Cada um pode dizer a Jesus: "Ainda que eu ande por vales tenebrosos, não temerei porque Tu estás comigo. Qualquer que seja o vale, qualquer que seja a escuridão, eu tenho um poderoso Salvador que me ama. Só a bondade e o amor me acompanham todos os dias da minha vida" (Salmo 23). Diz isso a Jesus...



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38º. dia, 31 de Março - A oração de um carmelita para a Quaresma,
por Pe. Paulo Ricardo/ Equipe Christo Nihil Praeponere em 22.03.2017

É uma especialidade da Ordem do Carmo fazer-nos entrar em contato com Deus no mais íntimo de nosso ser — experiência que é, na verdade, fundamental para a fé cristã, e que foi condensada por Santo Agostinho na famosa frase de suas Confissões: "Eis que estavas dentro, e eu fora" (X, 27, 38). 

Santa Teresa d'Ávila comparava a alma do justo, por exemplo, a um jardim onde Deus encontra as suas delícias; Santa Teresinha do Menino Jesus, por sua vez, cantava a alegria de ter encontrado "o Céu na terra" — nada menos que Deus morando em seu coração; e Santa Elisabete da Trindade não tomou este nome senão para honrar a inabitação trinitária em si.

A Quaresma, tempo de profunda interiorização, nada mais é que um resgate sempre necessário, portanto, do que precisamos fazer por toda a nossa vida: "mergulhar", "descer sempre mais", "fazer uma viagem" para dentro de nossa alma, até encontrarmos Aquele que é mais íntimo que o que há de mais íntimo de nós, para usar outra expressão agostiniana (cf. Confissões, III, 6, 11).

Um outro carmelita que compreendeu, viveu e transmitiu essa verdade foi o Beato Francisco Palau, sacerdote espanhol do século XIX e beatificado em 1988. São de sua pena, a propósito, as expressões "mergulhar" e "descer sempre mais", colhidas da seguinte oração para a Quaresma, a qual compartilhamos com todos os nossos visitantes:

"Senhor,
nesta Quaresma,
tempo de mergulhar no meu interior,
de revisão e de conversão,
ensina-me a descer sempre mais
até onde Tu te encontras: o meu coração.

Como "descer" até aí?
Pelo silêncio, encontrando tempo para rezar,
pela leitura da Tua Palavra que tanto me quer dizer,
pelos Sacramentos,
especialmente a Confissão e a Santa Missa.

Também pela aceitação das contrariedades,
o peso das circunstâncias e da monotonia da vida…
com os olhos postos em Ti.

Senhor, Tu que estás no meu íntimo,
ajuda-me nesta Quaresma,
a fazer uma viagem ao meu interior,
para aí me encontrar conTigo!"


Que possamos, pela intercessão do bem-aventurado Francisco Palau, transformar essa brevíssima prece em um verdadeiro "projeto de vida": procurando a Deus, de fato, pelo silêncio, pela leitura da Palavra de Deus, pelos Sacramentos e pela aceitação das contrariedades, seguramente estaremos no caminho da perfeição.



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37º. dia, 30 de Março - A Liberdade da Pessoa, Valor e Limites,
pelo Compêndio da Doutrina Social da Igreja


O homem pode orientar-se para o bem somente na liberdade, que Deus lhe deu como sinal altíssimo da Sua imagem: «Deus quis “deixar o homem nas mãos do seu desígnio” (cf. Eclo 15, 14), para que ele procure espontaneamente o seu Criador e, aderindo livremente a Ele, consiga a plena e bem-aventurada perfeição. A dignidade humana exige, portanto, que o homem atue segundo a sua consciente e livre escolha, isto é, movido e determinado por convicção pessoal interior, e não por um impulso interior cego, ou por mera coação externa».

O homem justamente aprecia a liberdade e com paixão a busca: justamente quer e deve formar e guiar, de sua livre iniciativa, a sua vida pessoal e social, assumindo por ela plena responsabilidade. A liberdade, com efeito, não só muda convenientemente o estado de coisas externas ao homem, mas determina o crescimento do seu ser pessoa, mediante escolhas conformes ao verdadeiro bem: desse modo, o homem gera-se a si próprio, é pai do próprio ser, constrói a ordem social.

A liberdade não se opõe à dependência criatural do homem para com Deus. A Revelação ensina que o poder de determinar o bem e o mal não pertence ao homem, mas somente a Deus (cf. Gn 2, 16-17). «O homem é certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer “de todas as árvores do jardim”. Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da “árvore da ciência do bem e do mal”, chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização, precisamente nesta aceitação».

O reto exercício do livre arbítrio exige precisas condições de ordem econômica, social, política e cultural que «são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os fortes como os frágeis à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina». 

A libertação das injustiças promove a liberdade e a dignidade humana: porém é «necessário, antes de tudo, apelar para as capacidades espirituais e morais da pessoa e para a exigência permanente de conversão interior, se se quiser obter mudanças econômicas e sociais que estejam realmente ao serviço do homem».


. O vínculo da liberdade com a verdade e a lei natural


No exercício da liberdade, o homem põe atos moralmente bons, construtivos da pessoa e da sociedade, quando obedece à verdade, ou seja, quando não pretende ser criador e senhor absoluto desta última e das normas éticas. A liberdade, com efeito, «não tem o seu ponto de partida absoluto e incondicionado em si própria, mas na existência em que se encontra e que representa para ela, simultaneamente, um limite e uma possibilidade. É a liberdade de uma criatura, ou seja, uma liberdade dada, que deve ser acolhida como um gérmen e fazer-se amadurecer com responsabilidade». Caso contrário, morre como liberdade, destrói o homem e a sociedade.

A verdade sobre o bem e o mal é reconhecida prática e concretamente pelo juízo da consciência, o qual leva a assumir a responsabilidade do bem realizado e do mal cometido: «Desta forma, no juízo prático da consciência, que impõe à pessoa a obrigação de cumprir um determinado ato, revela-se o vínculo da liberdade com a verdade. Precisamente por isso a consciência se exprime com atos de “juízo” que refletem a verdade do bem, e não com “decisões” arbitrárias. 

E a maturidade e responsabilidade daqueles juízos — e, em definitivo, do homem que é o seu sujeito — medem-se, não pela libertação da consciência da verdade objetiva em favor de uma suposta autonomia das próprias decisões, mas, ao contrário, por uma procura insistente da verdade deixando-se guiar por ela no agir».

O exercício da liberdade implica a referência a uma lei moral natural, de caráter universal, que precede e unifica todos os direitos e deveres. A Lei natural «não é senão a luz do intelecto infusa por Deus em nós, graças à qual conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei, deu-a Deus ao homem na criação» e consiste na participação na Sua lei eterna, a qual se identifica com o próprio Deus. Esta lei é chamada natural porque a razão que a promulga é própria da natureza humana. Ela é universal, estende-se a todos os homens enquanto estabelecida pela razão. 

Nos seus preceitos principais, a lei divina e natural é exposta no Decálogo e indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral. Ela tem como eixo a aspiração e a submissão a Deus, fonte e juiz de todo o bem, e bem assim o sentido do outro como igual a si mesmo. A lei natural exprime a dignidade da pessoa humana e estabelece as bases dos seus direitos e dos seus deveres fundamentais.

Na diversidade das culturas, a lei natural liga os homens entre si, impondo princípios comuns. Por quanto a sua aplicação requeira adaptações à multiplicidade de condições de vida, segundo os lugares, as épocas e as circunstâncias, ela é imutável, permanece «sob o influxo das idéias e dos costumes e constitui a base para o seu progresso... Mesmo que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la, nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades».

Os seus preceitos, todavia, não são percebidos por todos de modo claro e imediato. As verdades religiosas e morais podem ser conhecidas «por todos e sem dificuldade, com firme certeza e sem mistura de erro», somente com a ajuda da Graça e da Revelação. A lei natural é um fundamento preparado por Deus para a Lei revelada e para a Graça, em plena harmonia com a obra do Espírito.

A lei natural, que é lei de Deus, não pode ser cancelada pela iniqüidade humana. Ela põe o fundamento moral indispensável para edificar a comunidade dos homens e para elaborar a lei civil que tira conseqüências de natureza concreta e contingente dos princípios da lei natural. Se se ofusca a percepção da universalidade da lei moral, não se pode edificar uma comunhão real e duradoura com o outro, porque sem uma convergência para a verdade e o bem, «de forma imputável ou não, os nossos atos ferem a comunhão das pessoas, com prejuízo para todos»

Somente uma liberdade radicada na comum natureza pode tornar todos os homens responsáveis e é capaz de justificar a moral pública. Quem se autoproclama medida única das coisas e da verdade não pode conviver e colaborar com os próprios semelhantes.

A liberdade é misteriosamente inclinada a trair a abertura à verdade e ao bem humano e, muito freqüentemente, prefere o mal e o fechamento egoístico, arvorando-se em divindade criadora do bem e do mal: «Estabelecido por Deus na justiça, o homem, seduzido pelo Maligno, logo no começo da história — lê-se na Gaudium et spes —, abusou da sua liberdade, erguendo-se contra Deus e desejando alcançar o seu fim à margem de Deus. [...] Recusando muitas vezes reconhecer Deus como seu princípio, o homem, por isso mesmo, desfaz a justa ordenação para o seu fim último e simultaneamente para consigo mesmo e também para com os outros homens e todas as coisas criadas».

A liberdade do homem necessita, portanto, de ser libertada. Cristo, com a força do Seu mistério pascal liberta o homem do amor desordenado de si mesmo, que é fonte do desprezo do próximo e das relações caracterizadas pelo domínio sobre o outro; Ele revela que a liberdade se realiza no dom sincero de si e, com o Seu sacrifício na Cruz, reintroduz todo homem na comunhão com Deus e com os próprios semelhantes.


. A igualdade em dignidade de todas as pessoas


«Deus não faz distinção de pessoas» (At 10, 34; cf. Rm 2, 11; Gal 2, 6; Ef 6, 9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem e semelhança. A Encarnação do Filho de Deus manifesta a igualdade de todas as pessoas quanto à dignidade: «Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal 3, 28; cf. Rm 10, 12; 1 Cor 12, 13; Col 3, 11).

Uma vez que no rosto de cada homem resplandece algo da glória de Deus, a dignidade de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante os outros homens. Este é o fundamento último da radical igualdade e fraternidade entre os homens independentemente da sua raça, nação, sexo, origem, cultura, classe.

Somente o reconhecimento da dignidade humana pode tornar possível o crescimento comum e pessoal de todos (cf. Tg 2, 1-9). Para favorecer um semelhante crescimento é necessário, em particular, apoiar os últimos, assegurar efetivamente condições de igual oportunidade entre homem e mulher, garantir uma objetiva igualdade entre as diversas classes sociais perante a lei.

Também nas relações entre povos e Estados, condições de eqüidade e de paridade são o pressuposto para um autêntico progresso da comunidade internacional. Apesar dos avanços nesta direção, não se deve esquecer de que ainda existem ainda muitas desigualdades e formas de dependência.

A uma igualdade no reconhecimento da dignidade de cada homem e de cada povo, deve corresponder a consciência de que a dignidade humana poderá ser salvaguardada e promovida somente de forma comunitária, por parte de toda a humanidade. Somente pela ação concorde dos homens e dos povos sinceramente interessados no bem de todos os outros, é que se pode alcançar uma autêntica fraternidade universal; vice-versa, a permanência de condições de gravíssima disparidade e desigualdade empobrece a todos.

O “masculino” e o “feminino” diferenciam dois indivíduos de igual dignidade, que porém não refletem uma igualdade estática, porque o específico feminino é diferente do específico masculino e esta diversidade na igualdade é enriquecedora e indispensável para uma harmoniosa convivência humana: «A condição para assegurar a justa presença da mulher na Igreja e na sociedade é a análise mais penetrante e mais cuidada dos fundamentos antropológicos da condição masculina e feminina, de forma a determinar a identidade pessoal própria da mulher na sua relação de diversidade e de recíproca complementaridade com o homem, não só no que se refere às posições que deve manter e às funções que deve desempenhar, mas também e mais profundamente no que concerne a sua estrutura e o seu significado pessoal».

A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher: mulher e homem se completam mutuamente, não somente do ponto de vista físico e psíquico, mas também ontológico. É somente graças a essa dualidade do «masculino» e do «feminino» que o «humano» se realiza plenamente. 

É «a unidade dos dois», ou seja, uma “unidualidade” relacional, que consente a cada um sentir a própria relação interpessoal e recíproca como um dom que é ao mesmo tempo uma missão: «A esta “unidade dos dois”, está confiada por Deus não só a obra da procriação e a vida da família, mas a construção mesma da história». 

«A mulher é “auxiliar” para o homem, assim como o homem é “auxiliar” para a mulher!»: no seu encontro realiza-se uma concepção unitária da pessoa humana, baseada não na lógica do egocentrismo e da auto-afirmação, mas na lógica do amor e da solidariedade.

As pessoas deficientes são sujeitos plenamente humanos, titulares de direitos e deveres: «apesar das limitações e dos sofrimentos inscritos no seu corpo e nas suas faculdades, põem mais em relevo a dignidade e a grandeza do homem». Dado que a pessoa deficiente é um sujeito com todos os seus direitos, ela deve ser ajudada a participar na vida familiar e social em todas as suas dimensões e em todos os níveis acessíveis às suas possibilidades.

É necessário promover com medidas eficazes e apropriadas os direitos da pessoa deficiente: «Seria algo radicalmente indigno do homem e seria uma negação da humanidade comum admitir à vida da sociedade, e portanto ao trabalho, só os membros na plena posse das funções do seu ser, porque, procedendo desse modo, recair-se-ia numa forma grave de discriminação, a dos fortes e sãos contra os fracos e doentes». 

Uma grande atenção deverá ser reservada não só às condições físicas e psicológicas de trabalho, à justa remuneração, à possibilidade de promoções e à eliminação dos diversos obstáculos, mas também às dimensões afetivas e sexuais da pessoa deficiente: «Também ela precisa de amar e de ser amada, precisa de ternura, de proximidade, de intimidade», segundo as próprias possibilidades e no respeito da ordem moral, que é a mesma para os sãos e para os que têm uma deficiência.


. Sociabilidade Humana
 

A pessoa é constitutivamente um ser social, porque assim a quis Deus que a criou. A natureza do homem se patenteia, destarte, como natureza de um ser que responde às próprias necessidades a base de uma subjetividade relacional, ou seja, à maneira de um ser livre e responsável, que reconhece a necessidade de integrar-se e de colaborar com os próprios semelhantes e é capaz de comunhão com eles na ordem do conhecimento e do amor: «Uma sociedade é um conjunto de pessoas ligadas de maneira orgânica por um princípio de unidade que ultrapassa cada uma delas. Assembléia ao mesmo tempo visível e espiritual, uma sociedade que perdura no tempo; ela recolhe o passado e prepara o futuro».

Importa pôr de manifesto que a vida comunitária é uma característica natural que distingue o homem do resto das criaturas terrenas. O agir social comporta um sinal particular do homem e da humanidade, o de uma pessoa operante em uma comunidade de pessoas: este sinal determina a sua qualificação interior e constitui, num certo sentido, a sua própria natureza. 

Tal característica relacional, à luz da fé, adquire um sentido mais profundo e estável. Feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), e constituído no universo visível para viver em sociedade (cf. Gn 2, 20.23) e dominar a terra (cf. Gn 1, 26.28-30), a pessoa humana é, por isso, desde o princípio, chamada à vida social: «Deus não criou o homem como um “ser solitário”, mas o quis como um “ser social”. A vida social não é, portanto, extrínseca ao homem, dado que ele não pode crescer nem realizar a sua vocação senão em relação com os outros».

A sociabilidade humana não desemboca automaticamente na comunhão das pessoas, no dom de si. Por causa da soberba e do egoísmo, o homem descobre em si gérmenes de insociabilidade, de fechamento individualista e de opressão do outro. Toda sociedade digna desse nome pode considerar estar na verdade quando cada membro seu, graças à própria capacidade de conhecer o bem, persegue-o para si e para os outros. 

É por amor do bem próprio e de outrem que se dá a união em grupos estáveis, tendo como fim a conquista de um bem comum. Também as várias sociedades devem adentrar por relações de solidariedade, de comunicação e de colaboração, a serviço do homem e do bem comum.

A sociabilidade humana não é uniforme, mas assume multíplices expressões. O bem comum depende, efetivamente, de um são pluralismo social. As múltiplas sociedades são chamadas a constituir um tecido unitário e harmônico, onde cada uma possa conservar e desenvolver a própria fisionomia e autonomia. 

Algumas sociedades, como a família, a comunidade civil e a comunidade religiosa são mais imediatamente conexas com a íntima natureza do homem, enquanto outras procedem da vontade livre: «A fim de favorecer a participação do maior número na vida social, é preciso encorajar a criação de associações e instituições de livre escolha, “com fins econômicos, culturais, sociais, esportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no âmbito interno das comunidades políticas como no plano mundial”. Esta “socialização” exprime, igualmente, a tendência natural que impele os seres humanos a se associarem para atingir objetivos que ultrapassam as capacidades individuais. Desenvolve as qualidades da pessoa, particularmente seu espírito de iniciativa e de responsabilidade. Ajuda a garantir seus direitos».



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36º. dia, 29 de Março - Quaresma: Gestos exteriores, posturas interiores
por  Juan José Léniz Ulloa


Como posso fazer desta Quaresma uma Quaresma diferente? Sem dúvidas, a grande tentação que surge neste momentos é viver os tempos litúrgicos especiais como se não tivessem nada de especial. Rezando a respeito lembrei de um episódio simples, mas que chamou a minha atenção sobremaneira…

Em certo Centro de Evangelização, enquanto a Missa estava sendo celebrada, uma criança passou diante do presbitério e fez uma respeitosa reverência ao altar. O seu piedoso gesto, que provavelmente aprendera obedientemente dos seus pais, gerou uma reação de ternura nos presentes.

Logo após a Missa, os objetos litúrgicos (dentre eles, o altar) foram retirados para dar início a outra atividade. Em determinado momento, a mesma criança que fizera a vênia ao altar durante a Missa, passou novamente diante do palco e, mesmo não tendo altar nenhum, fez a vênia. O gesto despertou uma discreta risada no meio dos presentes.


O que nos diz esse episódio sobre a Quaresma?

Aquilo que parecia ser um gesto de piedade não passou de ser o cumprimento de uma regra fortalecido pela eficácia do costume. Provavelmente lhe disseram os pais: “Quando você passar por aqui, precisa fazer uma reverência”, e a criança, obediente, aprendeu aquilo que os pais orientaram. Contudo, sem pretender ignorar a condição da criança, podemos nos perguntar: será que os pais da criança deram para ela pelo menos uma noção básica, sobre o milagre que estava reverenciando, ou simplesmente se preocuparam com ensinar a criança o gesto externo?

Não queremos avaliar a atitude dos pais, pois este texto não é sobre a formação espiritual dos filhos, antes, queremos nos perguntar: será que isso acontece conosco? Será que vivemos práticas espirituais ou atos de piedade pela força do costume ou pelo mero cumprimento de uma regra? Por exemplo, quando fazemos a genuflexão ao entrarmos numa igreja ou capela, lembramos que fazemos isso porque entramos no mesmo espaço que um Rei e queremos render-lhe homenagem?

Quando erguemos os braços ou batemos palmas em uma oração comunitária, simplesmente respondemos à sonoridade e ritmo da música ou estamos orando com o nosso corpo? Quando, na fila da comunhão, fazemos uma reverência ou até nos ajoelhamos, o fazemos lembrando que vamos receber o próprio Deus dentro de nós, ou o fazemos porque todo mundo faz? Quando pedimos a bênção dos alimentos, o fazemos para agradecer pela Providência de Deus que cuida de nós, ou é meramente uma convenção social que indica o início da refeição? 


Quaresma, a origem dos gestos exteriores

Todos os momentos da vida espiritual (que é intrinsecamente interior) são marcados por um gesto corporal (intrinsecamente exterior). Podemos dizer que os gestos exteriores têm a sua origem e razão de ser na espiritualidade. Esse princípio e vínculo faz com que cada um destes gestos seja bom por natureza.

Efetivamente, os gestos exteriores fazem parte da composição da prática religiosa. Basta ver a vida de Jesus Cristo, cujas palavras e sinais iam sempre acompanhados por um gesto corporal. Este exemplo foi adotado pela Igreja desde os primeiros séculos até os nossos dias. Na celebração dos Sacramentos, por exemplo, superabundam os gestos corporais que, por sua vez, estão cheios de significado espiritual. 

Se os gestos são naturalmente bons, o que há de negativo no exemplo que demos no início? O gesto sempre deve ir acompanhado do seu significado espiritual, caso contrário, é esvaziado. Todavia, podemos afirmar que o gesto foi feito para permanecer cheio de significado. Se o gesto encontra seu princípio no seu significado espiritual, o esvaziamento do gesto torna-se uma espécie de anulação da “razão de ser” do gesto, ou do logos do gesto.

Contudo, o verdadeiro logos de toda vivência espiritual cristã, é o Cristo, o logos de Deus. Consequentemente, a negação do logos da espiritualidade é uma negação do próprio Cristo. Em palavras mais simples, se Jesus é a Palavra que preenche, o esvaziamento do gesto pode ser compreendido como uma negação do mesmo. De forma ainda mais grave, podemos dizer que um gesto vazio significa uma não-encarnação do mistério, como uma verdadeira negação ou rejeição do “logos que se fez carne”.


Gestos esvaziados de sentido

Qual seria um bom exemplo de um esvaziamento do gesto? Os fariseus. Eles eram uma seita judaica nos tempos de Jesus, assim como os saduceus, essênios e zelotas, porém mereceram a repreensão de Jesus de forma particular pela sua arrogância e falta de conversão interior. Jesus chamava-os constantemente “hipócritas”, ainda exorta-os citando as Sagradas Escrituras quando diz: “Bem profetizou Isaías a respeito de vós: este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; em vão me prestam culto” (Mc 7,6-7).

Com a mesma firmeza advertia seus discípulos: “Cuidado! Guardai-vos do fermento dos fariseus” (Mc 8,15). Os fariseus costumavam cumprir as leis ao pé da letra e ensiná-las de forma rigorosa. É necessário ressaltar que para os judeus dos tempos bíblicos (inclusive para Jesus), a Lei não é tida como algo ruim, antes é vista como algo muito positivo e encontra-se no centro do judaísmo. O salmista canta com júbilo: “A lei do Senhor é perfeita” (Sl 19/18, 8), e ainda: “Eis que venho fazer com prazer a vossa vontade, Senhor” (Sl 39).

Para o povo de então, o cumprimento da Lei não é uma imposição nem opressão, ao contrário, é a forma mais excelente de amar a Deus. Vale ressaltar que Jesus nunca repreendeu os fariseus pelas suas práticas, antes os repreendeu porque estas estavam esvaziadas de sentido. Os gestos externos como o dízimo, jejuns e orações, não eram acompanhados da postura interior sincera, antes procuravam vanglória e privilégios.


Quaresma, a ação de Deus não é exterior

Ora, nos profetas, começa a se compreender que a ação de Deus não é meramente exterior e que não se expressa somente em terras e vitórias militares. Deus manifesta o desejo da mesma resposta do seu povo nas práticas: “Amor eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6, 6).

Este movimento de interiorização da Lei não anula as práticas externas, mas as solidifica numa base profunda e sincera por parte do povo. Em Jeremias, Ezequiel e Oseias, o conhecimento de Deus é apresentado como a via para Deus e como meta a aspirar por todos: “todos me conhecerão, dos menores aos maiores” (Jr 31,34). Consecutivamente o conhecimento de Deus e do seu amor deve levar o povo à conversão do coração.

Desta forma, o cumprimento das normas surge como uma consequência da mudança interior: “Porei no seu íntimo um espírito novo: removerei do seu corpo o coração de pedra e lhes darei um coração de carne, a fim de que andem de acordo com os meus estatutos e guardem minhas normas e as cumpram” (Ez 11,19-20).


A perfeição da Lei 

A grande novidade trazida por Cristo é a perfeição da Lei, um dos temas mais polêmicos na sua pregação. O Senhor deixa claro: “não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Nesse ‘dar pleno cumprimento’ esconde-se aquilo que é possivelmente a mensagem central de Jesus: o amor. Cristo não muda nada da Lei, de fato Ele reafirma: “não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (Mt 5,18), mas Ele vem apresentar o amor como a perfeição da vivência desta Lei, pois “o amor é a plenitude da Lei” (Rm 13,10).

Longe de apresentar propostas relativistas ou um relaxamento das exigências da Lei, Jesus vem apresentar o caminho pleno, que inclusive é mais exigente do que a Lei em si. Em Mateus, no capítulo 5 do versículo 20 ao 48, temos uma série de ressalvas por parte de Jesus sobre a vivência da Lei, com a conhecida fórmula: "ouvistes que foi dito… eu porém vos digo…". Desce aqui Jesus em várias das Leis estabelecidas por Moisés e nos convida a viver acima desta Lei. Veremos que a Lei de Jesus é muito mais exigente do que a Lei de Moisés. Dessa forma, no tempo da quaresma recebemos a graça de lutarmos por essa vivência interior. 

Compreendemos que esta "nova Lei" vivida no amor corresponde ao tempo da graça, vivido na quaresma, ao dia do Senhor. Jesus, falando sobre o divórcio, lembra que Moisés deu cabimento a algumas atitudes pela dureza do coração do homem, mas que no princípio não era assim. 

Com a expressão "no princípio" não se refere a alguma lembrança histórica, mas se refere ao Gênesis e à Lei natural de Deus, a condição do homem antes do pecado. Cristo mostra que há normas que Deus permitiu o homem viver, mas que já é chegado o tempo de viver mais alto, a perfeição no amor, através do Cristo que é a abolição do pecado.


Quaresma, o Amor não apaga a Lei

O Amor não apaga a Lei, nem poupa de nenhuma das suas exigências, ao contrário, ele pede mais. É preciso primeiro viver a Lei para poder viver o amor. Segundo Jesus, o amor está acima da Lei. A Lei torna-se assim, em Cristo, uma base para o amor. O amor é a perfeição da Lei, então, como poderei viver o amor se não consigo viver em primeiro lugar a Lei? O convite de Jesus é exigente e radical.

Cristo mostra o amor real ofertando a sua vida na Cruz, e chama a vivê-lo, comunicando-o em forma de mandamento: “dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34). Neste contexto da "nova lei", Jesus não só se coloca ao nível de Moisés que é profeta (que fala em nome de Deus), mas se coloca ao nível do autor da Lei, o próprio Deus.

Há fariseus que fizeram a sua experiência com Cristo, dentre os quais destaca Nicodemos, porém, provavelmente o testemunho mais marcante talvez seja de São Paulo, que de fariseu, defensor rigoroso da Lei (a ponto de condizer com a morte de Estevão), passou a ser o Apóstolo do Amor, aquele que proclamou: “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1 Cor 6,12). 

Esta frase, central na teologia moral paulina, indica que existindo ou não uma lei que exerça autoridade sobre o indivíduo, é necessária a adesão pessoal ao plano de Deus e evitar aquilo que não convenha para se tornar um novo homem em Cristo.

Talvez esta possa ser a Quaresma da união entre gestos exteriores e posturas interiores. Não é bom que deixemos as práticas exteriores, mas que as preenchamos com espiritualidade e orações agradáveis a Deus.




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35º. dia, 28 de Março - Que diz a Igreja sobre a ecologia?
por Opus Dei, Textos Espirituais em 16.08.2021


Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? (…) Exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra.” Francisco, Laudato si’, ponto 160.


1. Que diz a Igreja sobre a ecologia?

A preocupação pela salvaguarda da natureza é um dos sinais dos nossos tempos e a reflexão da Igreja sobre o assunto aparece de forma significativa na doutrina social da Igreja após o Concílio Vaticano II.

A visão católica baseada na Bíblia apresenta a criação do homem como um ser intrinsecamente superior à natureza, que é confiada ao seu domínio a fim de promover o desenvolvimento humano integral. Mas o homem domina em nome de Deus, como guardião da criação divina e, portanto, o domínio do homem não é absoluto. Deus confiou o mundo à pessoa humana para o gerir de forma responsável, para assegurar a prosperidade integral e sustentável. Assim, as escolhas e ações relacionadas com a ecologia (ou seja, o uso do mundo criado por Deus) estão sujeitas à lei moral tanto como todas as outras escolhas humanas.

É importante que fique claro que a relação do homem com o mundo é um elemento constitutivo da identidade humana. É uma relação que nasce como fruto da união ainda mais profunda do homem com Deus (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 452). Ao criar o homem, Deus deu-lhe a responsabilidade de cuidar da natureza e confiou-lhe a tarefa de contribuir para levar a criação à sua plenitude através do seu trabalho (cf. Gn 1,26-29).

De fato, a antropologia cristã leva-nos a compreender a origem da degradação ecológica: como resultado do pecado original, a relação do homem com a natureza foi danificada, uma vez que a experiência mostra que o desenvolvimento do progresso técnico pode ter consequências negativas para a natureza. Por esta razão, a Igreja vê na crise ecológica não só um desafio técnico-científico, mas também um problema moral: o homem está a esquecer o respeito devido à criação e ao Criador

Os cristãos são chamados a trabalhar pelo Reino dos Céus a partir das realidades temporais, convencidos de que quanto mais o nosso poder aumenta, maior é a nossa responsabilidade individual e coletiva. Cf. Gaudium et Spes, 34.


Meditar com São Josemaría

Os ensinamentos de São Josemaría proporcionam ideias muito inovadoras para exprimir a mensagem cristã com a linguagem da ecologia.

São Josemaría apelava a um amor apaixonado pela criação e pelo mundo, pregando uma espiritualidade destinada a santificar a partir de dentro todas as estruturas temporais a fim de as levar à sua plenitude em Cristo, ponto-chave que ilumina o problema ambiental. Fala-nos constantemente em devolver à matéria o seu significado mais nobre, considerando que a nossa fé nos ensina que toda a criação, o movimento da terra e das estrelas, as ações corretas das criaturas, e tudo o que é positivo na sucessão da história, tudo, numa palavra, veio de Deus e está ordenado para Deus (É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 130).

Também tem em mente o compromisso do homem de continuar a missão de Jesus entre as criaturas: Cristo traz a salvação e não a destruição da natureza; com Ele aprendemos que não é cristão comportar-se mal para com o homem, criatura de Deus, feito à Sua imagem e semelhança (Amigos de Deus, Virtudes Humanas, 73).

Nosso Senhor quis que os Seus filhos, que recebemos o dom da fé, manifestemos a visão otimista original da criação, o "amor ao mundo" que palpita no cristianismo. Portanto, não deve faltar nunca entusiasmo no teu trabalho profissional nem no teu empenho por construir a cidade temporal (Forja, 703).


2. A ecologia nas Escrituras e nos ensinamentos da Igreja

Já no Gênesis encontramos o ponto central nas considerações da Igreja sobre ecologia: o homem, criado à imagem de Deus, "recebeu o mandato de governar o mundo em justiça e santidade" (Gaudium et Spes, 34). Deus confiou assim o cuidado de animais, plantas e outros elementos naturais à pessoa humana. 

É lícito utilizá-los para fins legítimos, tais como alimentação, vestuário, trabalho ou investigação, sempre dentro de limites razoáveis e com vista a cuidar e salvar vidas humanas. (Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2417). O uso da natureza deve ser sempre acompanhado de respeito, uma vez que o mundo foi criado por Deus, Seu único proprietário que, além disso, considerou que tudo era bom.

No Novo Testamento, Jesus vem ao mundo para restaurar a ordem e a harmonia que o pecado tinha destruído. Ao curar a relação do homem com Deus, Jesus Cristo também reconcilia o homem com o mundo. Embora o objetivo último do homem seja o reino dos céus, os primeiros frutos desse novo céu e dessa nova terra já estão misteriosamente aqui, neste mundo. Os cristãos, continuando o trabalho de salvação, têm a preocupação de aperfeiçoar esta terra, especialmente naquilo que ela pode contribuir para o progresso da sociedade humana.

Esta posição também tem sido defendida por grandes santos da Igreja, incluindo, por exemplo, São Filipe Néri e São Francisco de Assis (que São João Paulo II nomeou santo padroeiro da ecologia), cuja delicadeza para com a natureza é um exemplo para todas as pessoas.

Desde o Concílio Vaticano II, todos os Papas têm exortado os cristãos a cuidar da criação: Paulo VI saudou a iniciativa das Nações Unidas de proclamar um Dia Mundial do Ambiente, convidando as pessoas a tomarem consciência deste tema. São João Paulo II advertiu contra a tentação de ver a natureza como um objeto de conquista e contra o perigo de eliminar a "responsabilidade superior do homem", equacionando a dignidade de todos os seres vivos. Além disso, o Catecismo da Igreja Católica inclui vários pontos sobre o respeito pela integridade da criação (2415-2418).

Bento XVI também desenvolveu o tema na sua encíclica Caritas in veritate (n. 48-52), na qual recorda que "a proteção do ambiente, dos recursos e do clima exige que todos os líderes internacionais atuem em conjunto e se mostrem dispostos a agir de boa fé, no respeito pela lei e em solidariedade com as regiões mais fracas do planeta".

Recentemente, o Papa Francisco dedicou um grande esforço à promoção da consciência ecológica, tanto através da sua encíclica Laudato si', sobre os cuidados da casa comum, como através de numerosas intervenções e audiências.

Em suma, a Igreja está interessada na relação do homem com a natureza, tal como está interessada em todos os aspetos da vida do homem e da sua relação com Deus: "A natureza é a expressão de um plano de amor e de verdade. Ela precede-nos e foi-nos dada por Deus como âmbito de vida. Fala-nos do Criador" (cf. Romanos 1,20) e do Seu amor pela humanidade. Está destinado a encontrar a "plenitude" em Cristo no fim dos tempos (cf. Efésios 1:9-10; Colossenses 1:19-20). Também ela é, portanto, uma "vocação" (Caritas in veritate, 48). A natureza não é mais importante do que a pessoa humana, mas faz parte do plano de Deus e, como tal, deve ser protegida e respeitada.


3. A necessidade de um compromisso ecológico

O comportamento do ser humano para com a natureza, de acordo com o acima exposto, deve ser orientado pela convicção de que a natureza é um dom que Deus colocou nas suas mãos.

Por esta razão, a Igreja convida-nos a ter presente que a utilização dos bens da terra constitui um desafio comum para toda a humanidade.

Uma vez que a questão ecológica diz respeito ao mundo inteiro, todos nos devemos sentir responsáveis pelo desenvolvimento planetário sustentável: trata-se de um dever comum e universal de respeitar um bem coletivo (cf. Compêndio, n. 466; Caritas in veritate, nn. 49-50).

Esta responsabilidade estende-se não só às exigências do presente, mas também às do futuro (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, n. 467). Afinal, não podemos falar de desenvolvimento sustentável sem solidariedade intergeracional (cf. Laudato si', n. 159).


4. Laudato si' e a ecologia integral

Na Laudato si', o Papa Francisco aborda questões como as alterações climáticas, a questão da água, a perda da biodiversidade, a degradação social, a tecnologia, o destino comum dos bens, a globalização, a justiça entre gerações e o diálogo entre religião e ciência.

Além disso, o Papa propõe que se pense nos diferentes aspetos de uma ecologia integral, que integra claramente as dimensões humana e social (cf. Laudato si', n. 137 - 162).

Preocupado com a complexidade do nexo entre crise ambiental e pobreza, uma vez que a degradação ambiental afeta principalmente os mais desfavorecidos, o Papa salienta a necessidade de nos guiarmos por critérios de justiça e caridade nas esferas ambiental, social, cultural e econômica.

O Papa Francisco convida-nos, finalmente, a uma conversão ecológica "que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã" (Laudato si', n. 217).



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34º. dia, 27 de Março - A oração pessoal é o fundamento para uma vida de fé,
por José Leonardo Nascimento


O futebol é uma das paixões na minha família. Até hoje, eu, meu pai, minha irmã, meus irmãos e dois sobrinhos batemos uma bolinha (ou jogamos aquele baba, como dizemos por aqui). Algo interessante sobre o futebol é que é bastante difícil dominar os fundamentos, mesmo após anos de prática. Sempre que, num lance simples, um de nós comete aquela famosa pixotada, seja não conseguindo dominar uma bola simples, errando um passe curto ou chutando a bola por cima do muro, surgem comentários do tipo: o sujeito joga bola a vida toda e não aprende nunca!

Se o passe, o domínio e o chute são fundamentos básicos do futebol, a oração pessoal é o fundamento mais básico da vida de fé. Quanta gente cresce os dentes dentro da Igreja, participa da missa todos os domingos, reza o Rosário todos os dias, reza ao acordar, antes de dormir, antes das refeições, mas sequer sabe o que é oração pessoal.

Por muitos e muitos anos, minha vida de oração se resumiu à repetição mecânica de uma sequência bem estabelecida de orações antes de dormir e ao acordar: "Em nome do Pai… Pai-Nosso…; 3 x Ave-Marias…; Santo Anjo do Senhor…; Ó minha Senhora e também minha mãe…; São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate…; A Cruz sagrada seja a minha luz…"

Por repetição mecânica, eu quero dizer recitar tudo na velocidade da luz, dependendo do cansaço e do sono, sem refletir sobre uma só frase do que eu rezava. Não faz muitos anos que descobri que eu não sabia rezar. É como se pela, primeira vez na vida, eu tivesse jogado futebol com um profissional e ele me dissesse:

Cara, a vida toda você tentou dominar a bola do jeito errado. Não é assim que se faz. Você tem que reaprender tudo do zero.”


Sem oração pessoal não é possível crescer na fé nem se tornar um bom imitador de Cristo

Eu comecei do zero mesmo, aprendendo o que é oração pessoal, como é que se conversa com Deus, como se medita Sua Palavra, como contemplar as verdades da fé. Sem oração pessoal, não é possível crescer “de fé em fé” e se tornar um bom imitador de Cristo; assim como sem dominar os fundamentos do futebol você passa a vida jogando bola e continua um grande perna de pau.

Nós rezamos porque queremos conversar com Deus. Queremos louvá-Lo, render-Lhe graças, exaltar Seu nome, fazer alguma súplica, pedir forças, saúde, libertação, cura, o pão de cada dia. A oração é, portanto, diálogo, e não cabe numa fórmula. As fórmulas – as orações que recitamos todos os dias – são auxílio, um guia para nos dirigirmos a Deus. Se apenas recito um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria sem piedade, sem atenção, sem meditar o que estou dizendo, em nada aquela oração aproximará meu coração de Deus.

A primeira coisa que não podemos esquecer é que a oração é um ato de humildade, porque, ao nos dirigirmos a Deus, devemos reconhecer a Sua grandeza e a nossa indignidade, exatamente como o publicano que sequer levantou os olhos para o céu, e apenas repetia: “Meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador!”.


A oração que vem do coração

Na oração verdadeira, que vem do coração, é como se estivéssemos assinando um contrato com Deus, firmando um compromisso com Ele: antes de pedir qualquer coisa, estamos dizendo que queremos nos endireitar, corrigir nossa conduta, abandonar o mal que praticamos. Perceba que não há espaço para ser arrogante ao se dirigir a Deus. Antes de tudo, é necessário assumir-se pecador, reconhecer-se mau, infiel, afinal, como posso querer consertar algo que não está com defeito?

Por isso mesmo, uma censura recorrente que Deus faz ao Seu povo é a apresentação de sacrifícios vazios, que não acompanham a mudança de atitude:

“Não preciso dos novilhos de tua casa
Nem dos carneiros que estão nos teus rebanhos […]
Imola a Deus um sacrifício de louvor
E cumpre os votos que fizeste ao Altíssimo.
Invoca-me no dia da angústia
E então te livrarei e hás de louvar-me.”


Como começar a oração pessoal?

Quer fazer sua oração pessoal? Comece acusando-se diante de Deus. Ponha em revista seus pecados, apresentando-os ao Senhor. Você pode começar com a fórmula usada pelo publicano – “Meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador!” –, mas não pare nisso. Peça o auxílio do Espírito Santo para reconhecer cada um dos seus pecados e confessá-los ao Senhor.

O próximo passo, ainda como uma espécie de preparação para a oração, é reconhecer a quem estou me dirigindo: ao Deus misericordioso que é o “meu escudo protetor, a minha glória que levanta minha cabeça”. De nada adianta reconhecer a própria miséria se não acredito na misericórdia de Deus, por isso preciso proclamá-la, invocá-la, pois, como diz o salmista, “quando eu chamei em alta voz pelo Senhor, do Monte santo ele me ouviu e respondeu”. 

Por isso “eu me deito e adormeço bem tranquilo, acordo em paz, pois o Senhor é meu sustento”. Como você deve ter percebido, recorro, com frequência, à Palavra de Deus ao falar de oração. Seja para reconhecer-se pecador, para suplicar a misericórdia de Deus ou para reconhecer a sua grandeza e soberania, os Salmos são especialmente oportunos, porque nos ajudam a encontrar as palavras certas para nos dirigirmos ao nosso Criador.


A meditação é fundamental na vida de oração

Espere aí!”, você pode dizer. “Como é oração pessoal, se vou continuar lendo um texto pronto?”

É que neste ponto entra uma palavra fundamental na vida de oração: a meditação. Comece a sua oração pessoal com a leitura de um Salmo. Pode ser um Salmo de súplica ou de louvor. Há 150 para você escolher. Como exemplo, eis um trecho do Salmo 77:

“Deus meu, teu caminho é santo
Qual Deus é grande como o nosso Deus?
Tu és o Deus que realiza maravilhas,
E mostraste aos povos teu poder.”

Leia o Salmo todo, mas identifique um trecho como esse, que exalta Deus, e repita quantas vezes forem necessárias, pensando no que isso significa, no caminho santo de Deus, na grandeza de Deus, nas maravilhas que Ele realiza, no poder que Ele mostra. Não tenha pressa. Deixe a Palavra ir convencendo seu coração de todas essas coisas sobre Deus. Transforme as palavras de Davi em suas palavras, transforme o louvor de Davi em seu louvor.

Pronto. Você acabou de dar seus primeiros passos na meditação da Palavra.


A oração pessoal é o alicerce da vida espiritual

Antes de avançar no tema, é necessário compreender que a oração não é um diálogo entre iguais. Na minha insignificância, ouso dirigir-me ao Todo-poderoso porque confio que Ele me ama. Acontece que essa confiança ainda é pequena, assim como a minha fé. Rezo, mas, no fundo, custa-me crer naquilo que leio ou proclamo a respeito de Deus.

Se a minha fé fosse maior, eu não andaria angustiado, preocupado, não perderia a minha paz tão frequentemente, porque confiaria no que o próprio Jesus disse, que não nos afligíssemos, preocupados com o que comer ou beber, porque deveríamos buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas as outras coisas viriam em acréscimo.

Exatamente porque nossa fé é pequena, que a oração pessoal é – como disse São Josemaría Escrivá – o alicerce da vida espiritual. Ao rezar, mergulhamos no infinito mistério do amor de Deus, que vai nos dando, à medida que O buscamos, uma fé mais robusta. Porque precisamos crescer na fé, precisamos rezar mais e mais.


A Palavra de Deus

Para nós, iniciantes na oração, há um caminho bastante simples e tremendamente eficiente para rezar: a meditação a partir da Palavra de Deus. Após iniciar a oração com os passos que apresentei aqui – confessar-se pecador, implorar a misericórdia de Deus e exaltar a Sua infinita bondade –, escolha algum livro da Bíblia – se você está começando agora, recomendo começar com algum dos Evangelhos. Fixe-se em algum trecho que exprima alguma verdade de fé, como:

Uma árvore boa não dá frutos maus, uma árvore má não dá bom fruto. Porquanto cada árvore se conhece pelo seu fruto.”


Peça a presença e o auxílio do Espírito Santo

Vá repetindo esse trecho devagar, pedindo que o Espírito Santo ilumine sua mente e o ajude a compreender e viver essa verdade. Passe dez, quinze, vinte minutos meditando, pensando, deixando-o ressoar em seu coração. Rezar é como garimpar: você vai batendo na rocha sem obter nada além de terra, mas insiste na esperança de encontrar ouro

Quando Deus quer, Ele ilumina sua inteligência e você compreende algo a respeito d’Ele ou de você mesmo: “Meu Deus! Meus frutos têm sido maus! Só agora percebi que os frutos que tenho produzido são o egoísmo, o orgulho e a vaidade. Perdão, Senhor! Faz meu coração ser humilde como o seu!”

Meu irmão, você cresceu na fé e viveu uma experiência de conversão. Isso é ter oração pessoal.



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33º. dia, 26 de Março - Orações sobre o Acolher,
por Papa Francisco


Oração I

"Deus de misericórdia,
na vossa admirável providência
quisestes que o Apóstolo Paulo
anunciasse o vosso amor aos habitantes de Malta,
que ainda não Vos conheciam.
Ele proclamou-lhes a vossa palavra
e curou as suas doenças.

Salvos do naufrágio,
São Paulo e os companheiros de viagem
encontraram aqui, acolhendo-os,
pessoas pagãs de bom coração,
que os trataram com invulgar humanidade,
apercebendo-se que precisavam
de abrigo, segurança e assistência.
Ninguém conhecia os seus nomes,
a proveniência nem a condição social;
sabiam apenas uma coisa:
que precisavam de ajuda.

Não era momento para discussões,
juízos, análises e cálculos:
era o momento de prestar socorro;
deixaram as suas ocupações
e assim fizeram.

Acenderam uma grande fogueira,
e fizeram-nos enxugar e aquecer.
Acolheram-nos com coração aberto
e, juntamente com Públio,
o primeiro no governo e na misericórdia,
encontraram alojamento para eles.

Pai bom,
concedei-nos a graça dum bom coração
que palpite de amor pelos irmãos.
Ajudai-nos a reconhecer de longe as necessidades
daqueles que lutam por entre as ondas do mar,
atirados contra as rochas duma costa desconhecida.
Fazei que a nossa compaixão
não se reduza a palavras vãs,
mas acenda a fogueira do acolhimento,
que faz esquecer o mau tempo,
aquece os corações e os une:
lareira da casa construída sobre a rocha,
da única família dos vossos filhos,
todos irmãos e irmãs.
Vós amai-los sem distinção
e quereis que nos tornemos um só
com o vosso Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor,
pelo poder do fogo enviado do Céu,
o vosso Espírito Santo,
que queima toda a inimizade,
e de noite ilumina o caminho
rumo ao vosso reino de amor e de paz.
Amém."


Oração II

"Ó Deus, a vossa misericórdia é infinita
e inesgotável o tesouro da vossa bondade:
aumentai benignamente a fé do povo a Vós consagrado,
para que todos compreendam com sabedoria
o amor que os criou,
o Sangue que os redimiu,
o Espírito que os regenerou.
Por Cristo nosso Senhor.
Amém."




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32º. dia, 25 de Março - Sobre o Marxismo,
por São Josemaría Balaguer - Amigos de Deus, 
Viver diante de Deus e dos Homens, Ponto 171


Temos obrigação de defender a liberdade pessoal de todos, sabendo que foi Jesus Cristo quem nos adquiriu essa liberdade; se não agimos assim, com que direito podemos reclamar a nossa? Devemos difundir também a verdade, porque veritas liberabit vos, a verdade nos liberta, ao passo que a ignorância escraviza. 

Cumpre-nos defender o direito, que todos os homens têm, de viver, de possuir o necessário para desenvolver uma existência digna, de trabalhar e descansar, de escolher o seu estado, de formar um lar, de trazer filhos ao mundo dentro do matrimônio e de poder educá-los, de passar serenamente o tempo da doença ou da velhice, de ter acesso à cultura, de associar-se com os demais cidadãos para atingir fins lícitos, e, em primeiro lugar, de conhecer e amar a Deus com plena liberdade, porque a consciência - se for reta - descobrirá as pegadas do Criador em todas as coisas.

Precisamente por isso, urge repetir - não me meto em política, afirmo a doutrina da Igreja - que o marxismo é incompatível com a fé de Cristo. Existe coisa mais oposta à fé que um sistema que baseia tudo em eliminar da alma a presença amorosa de Deus? 

Gritai-o com muita força, de modo que se ouça claramente a vossa voz: para praticar a justiça, não precisamos do marxismo para nada. Pelo contrário, esse erro gravíssimo - pelas suas soluções exclusivamente materialistas, que ignoram o Deus da paz - ergue obstáculos no caminho para a felicidade e para o entendimento entre os homens.

Dentro do cristianismo encontramos a boa luz que dá sempre resposta a todos os problemas. Basta que vos empenheis sinceramente em ser católicos, non verbo neque lingua, sed opere et veritate, não com palavras nem com a língua, mas com obras e de verdade. Dizei isso sempre que surgir a ocasião - e procurai-a, se for preciso -, sem reticências, sem medo.



[Num momento que as nações e partidos marxistas só trazem o mal ao mundo das maneiras mais infernais, precisamos aumentar nossas orações e pedir perdão a Deus pela loucura. Se eles sequer imaginassem o que lhes acontecerá eternamente em troca do mal que fizeram a tantas almas e seus corpos...

"Meu Deus! Eu creio, adoro, espero e amo-Vos.
Peço-Vos perdão pelos os que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam."]

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31º. dia, 24 de Março - Jesus e a Ansiedade,
por Sarah Robsdottir 

Fulton Sheen, o amado sacerdote e popular personalidade da TV americana dos anos 50, uma vez expôs o que Jesus enfrentou no Jardim do Getsêmani:

“Pode-se adivinhar o horror psicológico dos estágios progressivos de medo, ansiedade e tristeza que prostraram [Jesus] antes mesmo de um único golpe ter sido dado. Diz-se que os soldados temem muito mais a morte antes da hora zero de ataque do que no calor da batalha…”

Agora, se você já lutou com as emoções listadas acima – medo, ansiedade e tristeza – você provavelmente está familiarizado com os comentários dolorosos frequentemente feitos por amigos bem intencionados.

O conselho “tenha fé”, sempre me causou mais dor, embora eu tenha certeza de que nunca foi oferecido com o mínimo de indelicadeza. Ainda assim, esta “consolação” infere que minha angústia deriva de uma falta de fé. Ou que se eu for dotado com a quantidade perfeita de fé, minha ansiedade irá de alguma forma desaparecer.

É por isso que nunca esquecerei o que senti há anos durante uma meditação das 03h da manhã sobre a agonia de Jesus no Jardim: Jesus tinha uma fé perfeita! Pensei: "Ele sabia que a ressurreição estava bem ao virar da esquina, mas seus poros ainda escorriam sangue!"

Mas como posso comparar a angústia de Nosso Senhor sobre sua iminente crucificação com minhas provações? A agonia de Jesus foi, obviamente, diferente de qualquer outra. No entanto, São Paulo descreve a vida de um cristão como sendo “crucificado com Cristo”; ele também fala sobre “compartilhar o sofrimento de Jesus e receber seu conforto”.

Portanto, vá em frente, siga estas dicas de Nosso Senhor para administrar sua ansiedade.

01. Cantar um hino

Há apenas uma passagem das Escrituras onde se menciona que Jesus cantou uma canção, e é bem antes de seus amigos o abandonarem: “Terminando o canto dos Salmos, saíram para o monte das Oliveiras” (Marcos 14,26).

Os estudiosos de hoje poderiam nos dar uma boa ideia do que Jesus teria cantado, com base no rito da Páscoa judaica. Como o povo judeu, eu acho que os Salmos são os melhores hinos de conforto. Eu sempre murmuro um salmo à primeira pitada de nervosismo, silenciosamente quando outras pessoas estão por perto, mas super alto quando estou sozinho no carro.


02. Rezar "mais intensamente"

Eu falo com Deus o dia todo, muitas vezes enquanto lavo a louça ou dobro a roupa. Mas nada acalma minha alma e me prepara para uma melhor noite de sono do que passar 15 a 20 minutos em uma forma mais profunda de oração meditativa a cada noite. É aí que costumo ser atormentado pela tristeza sobre o passado e experimentar pensamentos de corrida sobre o futuro. Nesses momentos, penso frequentemente em Jesus no Getsêmani, que “entrou em agonia e orava ainda com mais instância”.

Por esta razão, escondo-me da minha família atrás de uma porta fechada. Ajoelho-me e falo francamente com Deus em minhas próprias palavras, listando cada um dos dilemas que me atormentam. Então, depois de fechar a boca e ouvi-lo em silêncio por um tempo (porque a oração é mais sobre Deus mudar nossas mentes, do que nós mudarmos a dele), concluo rezando o terço, sempre com a intenção de receber a graça de aceitar a vontade de Deus.


03. Esperar pelo anjo

Finalmente, espere que Deus envie um anjo para te consolar (vá em frente e peça um). Há um famoso quadro do artista Carl Heinrich Bloch do século 19 intitulado “Anjo com Jesus Cristo antes da prisão no Jardim do Getsêmani”. Esta pintura retrata Lucas 22,43, onde Deus enviou um anjo para confortar Jesus. Eu amo os detalhes sobre esta ilustração, mas minha parte favorita é como o anjo está apoiando a mão de Jesus, levantando-a em oração.

Envia-me teu anjo”! Eu implorei a Jesus outra noite, pedindo especificamente a mesma pessoa que o consolou. Imediatamente, imaginei dois braços poderosos ao meu redor, assim como no quadro. O momento foi um pouco revolucionário, embora eu tenha certeza de que a ansiedade é uma cruz que posso carregar durante toda a minha vida. Mas, como Jesus, não tenho que carregá-la sozinho. E com a ajuda de sua graça, este fardo se torna cada dia mais leve.



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30º. dia, 23 de Março - Excerto do livro "Imitação de Cristo".
por Thomas Kempis

Capítulo V
Dos admiráveis efeitos do amor divino


1. A alma: Bendigo-vos, Pai celestial, Pai de meu Senhor Jesus Cristo, por vos terdes dignado lembrar-vos de mim, pobre criatura. Ó Pai de misericórdia e Deus de toda consolação! (2Cor 1,3), graças vos dou porque, apesar de minha indignidade, me recreais às vezes com vossa consolação. Sede para sempre bendito e glorificado, com vosso Filho unigênito e o Espírito Santo consolador, por todos os séculos. Ah! Senhor Deus, santo amigo de minha alma, tanto que entrais em meu coração, exulta de alegria o meu interior. Vós sois a minha glória e o júbilo de meu coração; vós sois a minha esperança e meu refúgio no dia da tribulação.

2. Mas, como ainda sou fraco no amor e imperfeito na virtude, necessito ser consolado e confortado por vós; por isso visitai-me mais vezes e instruí-me com santas doutrinas. Livrai-me das más paixões e curai meu coração de todos os afetos desordenados, para que eu, sanado e purificado interiormente, seja apto para amar, forte para sofrer e constante para perseverar.

3. Jesus: Grande coisa é o amor! É um bem verdadeiramente inestimável que por si só torna suave o que é difícil e suporta sereno toda a adversidade. Porque leva a carga sem lhe sentir o peso e torna o amargo doce e saboroso. O amor de Jesus é generoso, inspira grandes ações e nos excita sempre à mais alta perfeição. O amor tende sempre para as alturas e não se deixa prender pelas coisas inferiores. O amor deseja ser livre e isento de todo apego mundano, para não ser impedido no seu afeto íntimo nem se embaraçar com algum incômodo. Nada mais doce do que o amor, nada mais forte, nada mais sublime, nada mais amplo, nada mais delicioso, nada mais perfeito ou melhor no céu e na terra; porque o amor procede de Deus, e em Deus só pode descansar, acima de todas
as criaturas.

4. Quem ama, voa, corre, vive alegre, é livre e sem embaraço. Dá tudo por tudo e possui tudo em todas as coisas, porque sobre todas as coisas descansa no Sumo Bem, do qual dimanam e procedem todos os bens. Não olha para as dádivas, mas eleva-se acima de todos os bens até aquele que os concede. O amor muitas vezes não conhece limites, mas seu ardor excede a toda medida. O amor não sente peso, não faz caso das fadigas e quer empreender mais do que pode; não se escusa com a impossibilidade, pois tudo lhe parece lícito e possível. Por isso de tudo é capaz e realiza obras, enquanto o que não ama desfalece e cai.

5. O amor vigia sempre, e até no sono não dorme. Nenhuma fadiga o cansa, nenhuma angústia o aflige, nenhum temor o assusta, mas qual viva chama a ardente labareda irrompe para o alto e passa avante. Só quem ama compreende o que é amar. Bem alto soa aos ouvidos de Deus o afeto da alma que diz: Meu Deus, meu amor! Vós sois todo meu, e eu todo vosso!

6. A alma: Dilatai-me o amor, para que possa, no âmago do coração, saborear quão doce é amar, no amor desmanchar-me e nadar. Prenda-me o amor, e eleve-me acima de mim, num transporte de fervor excessivo. Cante eu o cântico do amor, siga-vos ao alto, ó meu Amado, desfaleça minha alma no vosso louvor, no júbilo do amor. Amar-vos quero mais que a mim, e a mim só por amor de vós, e em vós a todos que deveras vos amam, conforme ordena a lei do amor que de vós dimana.

7. O amor é pronto, sincero, piedoso, alegre e amável; forte, sofredor, fiel, prudente, longânime, viril e nunca busca a si mesmo. Pois, logo que alguém procura a si mesmo, perde o amor. O amor é circunspecto, humilde e reto; não é frouxo, não é leviano, nem cuida de coisas vãs; é sóbrio, casto, constante, quieto, recatado em todos os seus sentidos. O amor é submisso e obediente aos superiores, mas aos próprios olhos é vil e desprezível; devoto e agradecido para com Deus, confia e espera sempre nele, ainda quando está desconsolado, porque no amor não se vive sem dor.

8. Quem não está disposto a sofrer tudo e fazer a vontade do Amado não é digno de ser chamado amante. Àquele que ama cumpre abraçar por seu amado, de boa vontade, tudo o que for duro e amargo e dele não se apartar por nenhuma contrariedade.


Reflexões


Nós temos dois principais modos de exercitar nosso amor a Deus: um afetivo e o outro efetivo, ou, como diz S. Bernardo, ativo. Pelo afetivo, nos afeiçoamos a Deus e ao que ele se afeiçoa; pelo efetivo, servimos a Deus e fazemos o que ele nos ordena. O afetivo nos une à bondade de Deus e o efetivo nos faz cumprir sua vontade: um nos enche de complacência, benevolência, desejos, suspiros e ardores espirituais, fazendo-nos praticar as sagradas infusões e fusões de nosso espírito com o espírito de Deus, e o outro difunde em nós a sólida resolução, a firmeza de coragem e a inviolável obediência que se exige para cumprir os desígnios da vontade de Deus e para sofrer, aceitar, apreciar e abraçar tudo que provém de seu bel-prazer; o afetivo nos faz comprazer-nos em Deus e o efetivo
nos faz agradar a Deus; pelo afetivo nós concebemos e pelo efetivo produzimos; pelo afetivo colocamos Deus no nosso coração, como um estandarte de amor ao qual todos os nossos afetos se ordenam; pelo efetivo nós o colocamos sobre o nosso braço como uma espada de dileção pela qual fazemos todos os atos heróicos das virtudes (Amour de Dieu, 1. VI, cap. I, II, 83).

Ó meu caro Teótimo, como deve ser grande a extensão da força deste amor de Deus sobre todas as coisas! Ele deve ultrapassar todos os afetos, vencer todas as dificuldades, e preferir a honra da benevolência de Deus a todas as coisas: mas digo a todas as coisas absolutamente, sem nenhuma exceção nem reserva. E digo assim com este cuidado tão grande porque há pessoas que abandonariam corajosamente os bens, a honra e a própria vida por Nosso Senhor, mas seriam incapazes de abandonar por ele alguma outra coisa de muito menos importância (Amour de Dieu, 1. X, cap. VIII, II, 323).

O amor é forte como a morte (Ct 8,6): a morte separa a alma do moribundo de seu corpo e de todas as coisas do mundo; o amor sagrado separa a alma do amante de seu corpo e de todas as coisas do mundo; e não há nisto nenhuma outra diferença, a não ser esta: a morte sempre opera por efeito o que o amor só opera ordinariamente por afeição. Mas, digo ordinariamente, Teótimo, porque algumas vezes o amor sagrado é tão violento que, mesmo por efeito, causa a separação do corpo e da alma, fazendo os amantes morrer de uma morte tão feliz que vale mais do que cem vidas (Amour de Dieu, 1. VII, cap. IX, II, 174).



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29º. dia, 22 de Março - 11 Conselhos para ensinar os filhos a pensar,
por Luis Olivera


Aprende a pensar aquele que pergunta sempre, que sai da jaula das modas, que se atreve a inventar problemas e a pensar sobre si mesmo, sobre a vida, sobre tudo.


1. Em primeiro lugar, é preciso agir conforme a verdade das coisas: ensinar os filhos a não se enganarem, a serem sinceros, a agirem com coerência. “Podemos conhecer a química cerebral que explica o movimento de um dedo, mas isso não explica por que esse movimento é usado para tocar piano e não para apertar um gatilho” (Marcus Jacobson). E também “não podemos baratear a verdade” (F. Suárez), rebaixando o seu valor, como se fosse uma liquidação.

2. Um segundo ponto é que “o treinamento é um privilégio da inteligência humana” (José Antonio Marina). É preciso enriquecer a linguagem, é preciso estimular o diálogo, o exercício mental de raciocinar, de defender uma causa, de ter argumentos para as próprias decisões, e não somente fazer o que fazem os outros, como os bois no pasto. Aprender a pensar é descobrir como é grande o poder da moda sobre o mundo inteiro, e saber sair da jaula em que a moda pode encerrar-nos. O pensador livre – ou seja: o pensador – não deve sacrificar a sua liberdade no altar da moda. Sacrificar a verdade no altar da moda é uma das perversões mais nocivas para um pensador… E no entanto é excessiva a frequência com que a razão fica presa na jaula da moda. Treinamento e cultivo, porque “a terra que não é lavrada, trará abrolhos e espinhos, ainda que seja fértil. Assim sucede com o entendimento do homem” (Santa Teresa de Ávila).

3. Já que é impossível não se equivocar nunca, pelo menos por utilidade e por dever temos de aprender com os nossos enganos: se quisermos aprender a pensar, deveremos descobrir o mundo tão humano do erro. “Errar é humano”, diziam já os antigos. O erro é o preço que o animal racional tem que pagar.

4. Seremos mais inteligentes e mais livres quando conheçamos melhor a realidade, quando saibamos avaliá-la melhor e quando sejamos capazes de abrir mais caminhos novos. Seria um erro pensar – observa Leonardo Polo – que o homem inventou a flecha porque tinha necessidade de comer pássaros. Também o gato tem essa necessidade, e o ilustre felino nunca inventou nada. O homem inventou a flecha porque a sua inteligência descobriu a oportunidade escondida no graveto.

5. Manter aberta a nossa capacidade de dirigir a própria conduta mediante valores pensados. É preciso passar do regime do impulso irracional para o regime da inteligência. Mais do que ensinar a pensar, a função dos pais há de ser a de motivar os filhos para que queiram pensar por sua própria conta. Com atitudes positivas, as crianças topam qualquer parada; com atitudes negativas, pensar parece lhes uma coisa cansativa e agir parece lhes uma coisa medíocre.

6. Ensinar a tomar decisões. A inteligência é a capacidade de resolver problemas vitais. Não é muito inteligente quem não seja capaz de decidir, mesmo que dentro do seu refúgio isolado consiga resolver facilmente problemas de trigonometria. Se admitirmos que educar é essencialmente ajudar a crescer na liberdade e na responsabilidade, então aprender a decidir bem acaba sendo um dos aspectos chave nessa tarefa: quanto maior a capacidade de decisão, mais liberdade.

7. Devemos recuperar – e estimular – nas crianças a sadia estratégia de perguntar continuamente. As três perguntas fundamentais são: “O que é?”, “Por que isso é assim?” e “Como é que você sabe?” Aristóteles definia a ciência como “o conhecimento certo pelas causas”: portanto, é preciso habituar-se a perguntar os porquês. Os pais devem estimular, comentar e favorecer (criando o clima adequado) os hábitos intelectuais dos filhos.

8. A inteligência tem de saber aprender, mas sobretudo tem de desfrutar aprendendo. Trata-se de formular perguntas que levem à reflexão, a perguntar-se sobre o próprio pensamento: “Por que o homem pensa?”, “Você já pensou porque é que lembramos das coisas?” “Pensamos quando estamos dormindo?” “O que é que mais faz você pensar?” “Você pode pensar duas coisas diferentes ao mesmo tempo?” Leonardo Polo define o homem como um ser que não somente resolve problemas, mas que também os formula. Com efeito, o ser humano progride propondo a si mesmo novos problemas e tentando resolvê-los.

9. A inteligência deve ser eficazmente lingüística. Graças à linguagem, não somente nos comunicamos com os outros, mas também conosco próprios. A inteligência não se parece a uma coleção de fotografias, mas a um rio. Rio e inteligência “discorrem”. A nossa língua original – a língua materna – é um rio em que deságuam milhares de afluentes. “A pluma e a palavra são as armas do pensador” (J.A. Jauregui): aprender a pensar é aprender a tocar os instrumentos do pensamento: a pluma e a palavra.

10. Fomentar a leitura e controlar o uso da televisão. Já que estamos falando do vôo da inteligência, trata-se de “ser mais inteligentes que a televisão” (Jiménez). Os livros “tem de ser obras que alimentem a inteligência sem deixar o coração seco”, ou seja, devem “iluminar a mente com a verdade e não mergulhá-la nas névoas da dúvida ou na escuridão do erro” (F. Suárez).

11. Urge encontrar momentos para refletir, para pensar, coisa aliás muito menos trabalhosa do que muitas das necessidades que inventamos. Pensar sobre o sentido da vida, das coisas, do homem, de Deus. Quando Unamuno disse que costumava sair para passear com os pastores de ovelhas para aprender a pensar, para desprender-se dos preconceitos e dos dogmas de escola, muitos rasgaram as vestes. Unamuno, porém, estava sendo sincero. Um pastor de ovelhas tem tempo para pensar, para dar rédea solta à sua imaginação e para descobrir horizontes filosóficos que jamais foram vistos por nenhum outro pensador. Fernando Corominas diz que é preciso “instalar” na mente e no coração dos filhos as coisas boas antes que cheguem as nocivas. Esse “chegar antes” é educar pensando no futuro. Sempre que nos abandonamos, retornamos à selva. Essa selva de que falo metaforicamente é sempre uma claudicação da inteligência.



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28º. dia, 21 de Março - Doar-nos aos outros por amor a Deus é a receita para sermos felizes também na terra,
por Pe. Álvaro del Portillo

Chegamos ao limiar da Semana Santa. Daqui a poucos dias, ao assistirmos às cerimônias litúrgicas do solene Tríduo Pascal, participaremos das últimas horas da vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando se ofereceu ao Pai Eterno como Sacerdote e Vítima da Nova Aliança, selando com o seu Sangue a reconciliação de todos os homens com Deus. 

Apesar da sua carga dramática, à qual não podemos nem devemos nos acostumar – o Inocente carregado com as culpas dos pecadores, o Justo que morre no lugar dos injustos! –, a tragédia da Semana Santa é fonte da mais pura alegria para os cristãos: "Feliz culpa, que mereceu tal Redentor!"[1], canta a Igreja no Pregão pascal a propósito do pecado dos nossos primeiros pais e – dizemo-lo nós – dos nossos erros pessoais diários, na medida em que servem para que retifiquemos, cheios de dor de amor, e para que cresçamos em espírito de compunção.

Minhas filhas e meus filhos, nestes dias que se avizinham, aconselho-os a que procurem fomentar nas suas almas muitos atos de reparação e de dor – dor de amor –, pedindo ao Senhor perdão pelas faltas de vocês e pelas da humanidade inteira. Ponham-se junto de Cristo com o pensamento e com o desejo naquelas provas amargas da Paixão, e procurem consolá-lo com as suas palavras cheias de carinho, com as suas obras fiéis, com a sua mortificação e com a sua penitência generosa, sobretudo no cumprimento fiel dos deveres de cada momento. 

Se assim o fizerem, podem ter a certeza de que ajudarão Jesus a levar a Cruz – essa Cruz que pesa e que pesará sobre o Corpo místico de Cristo até o final dos séculos –, sendo corredentores com Ele. Participarão da glória da sua Ressurreição, porque padeceram com Ele[2], e ficarão repletos de alegria, de uma alegria que nada nem ninguém poderá tirar-lhes[3].

Filhas e filhos da minha alma, nunca esqueçamos que o gaudium cum pace, a alegria e a paz que o Senhor nos prometeu se somos fiéis, não depende do nosso bem-estar material nem de que as coisas corram na medida dos nossos desejos. Não se fundamenta em motivos de saúde nem no êxito humano. Em todo caso, essa seria uma felicidade efêmera, perecedoura, ao passo que nós aspiramos a uma bem-aventurança eterna. 

A alegria profunda que preenche completamente a alma tem a sua origem na união com Nosso Senhor. Lembrem-se daquelas palavras que o nosso amadíssimo Fundador do Opus Dei, São Josemaría Escrivá, repetiu numa das suas últimas tertúlias: «Se queres ser feliz, sê santo; se queres ser mais feliz, sê mais santo; se queres ser muito feliz – já na terra! –, sê muito santo» [4].

Minha filha, meu filho: a receita está muito experimentada, porque o nosso santo Fundador, que tanto sofreu pelo Senhor, foi felicíssimo na terra. Melhor dito: precisamente por ter-se unido intimamente a Jesus Cristo na Santa Cruz – nisto consiste a santidade, em identificarmo-nos com Cristo crucificado –, recebeu o prêmio da alegria e da paz.

Escutai o que nos confiava em 1960, pregando uma meditação na Sexta-feira Santa. Na sua oração pessoal, rememorava essa forja de sofrimentos que foi a sua vida e animava-nos a não termos «medo da dor, nem da desonra, sem pontos de soberba. O Senhor, quando chama uma criatura para que seja d'Ele, faz que ela sinta o peso da Cruz. Sem pôr-me como exemplo, posso dizer-vos que, ao longo da minha vida, sofri dor, amargura. Mas, em meio a tudo isso, encontrei-me sempre feliz, Senhor, porque Tu foste o meu Cireneu.

«Rejeita o medo da Cruz, meu filho! Tu vês Cristo pregado nela e, apesar disso, procuras apenas aquilo que é prazeroso? Isso não está certo! Não te lembras de que o discípulo não é mais do que o Mestre?» (cf. Mt 10, 24).

«Senhor, mais uma vez renovamos a aceitação de tudo aquilo que, na ascética, se chama tribulação, embora eu não goste desta palavra. Eu não tinha nada: nem idade, nem experiência, nem dinheiro; sentia-me humilhado, não era… nada, nada! E, dessa dor, chegavam respingos aos que estavam ao meu lado. Foram anos tremendos, mas jamais me senti desgraçado. Senhor, que os meus filhos aprendam da minha pobre experiência. Sendo miserável, nunca estive amargurado. Caminhei sempre feliz! Feliz, chorando; feliz, com penas. Obrigado, Jesus! E perdoa-me por não ter sabido aproveitar melhor a lição»[5].

Ao meditarmos nestas palavras do São Josemaría, a conclusão que temos de tirar é clara: nunca, em nenhuma circunstância, devemos perder a alegria sobrenatural que emana da nossa condição de filhos de Deus. Se alguma vez ela vier a faltar-nos, recorreremos imediatamente à oração e à direção espiritual, ao exame de consciência bem feito, a fim de descobrirmos a causa e aplicarmos o remédio oportuno.

É verdade que, por vezes, essa ausência de alegria pode nascer da doença ou do cansaço; então, é obrigação grave dos diretores facilitar a esses seus irmãos o descanso e os cuidados oportunos, estando atentos para que ninguém – por causa de uma sobrecarga excessiva de trabalho, por falta de sono, por esgotamento ou por qualquer outra razão – chegue a uma situação que ocasione um dano à sua resposta interior.

Em outros momentos, como o São Josemaría nos assinalava, a perda da alegria esconde raízes ascéticas. Sabeis qual é a mais frequente? A preocupação excessiva pela própria pessoa, o dar voltas e mais voltas em torno de si mesmo. Se cada um de nós é tão pouca coisa, como pode passar pela sua cabeça, meu filho, minha filha, girar em torno do próprio eu? «Se amamos a nós mesmos de um modo desordenado», escreve o São Josemaría, «há motivo para estarmos tristes. Quanto fracasso, quanta pequenez! A posse dessa nossa miséria tem de causar-nos tristeza, desalento. Mas se amamos a Deus sobre todas as coisas e os outros e nós mesmos em Deus e por Deus, quantos motivos de alegria[6].

Esse foi o exemplo do Mestre, que entregou a sua vida por nós. Correspondamos ao que Deus nos pede da mesma maneira, por Ele e pelos outros. Afastemos qualquer preocupação pessoal do nosso horizonte cotidiano; e se alguma nos assaltar, abandoná-la-emos com plena confiança no Sagrado Coração de Jesus e no Coração Dulcíssimo de Maria, nossa Mãe, e ficaremos tranquilos. 

Minhas filhas e meus filhos, temos de preocupar-nos – melhor dito, temos de ocupar-nos – somente das coisas de Deus, que são as coisas da Igreja, da Obra, das almas. Não percebeis que, até humanamente, saímos ganhando? E, além disso, somente assim estaremos sempre cheios do gaudium cum pace, da alegria e da paz, e atrairemos muitas outras pessoas ao nosso caminho.

Permiti-me que insista nisto com outras considerações do São Josemaría, tomadas da tertúlia a que me referia anteriormente. «Ser santo», repisava, «é ser feliz, também aqui na terra. Padre, e o senhor foi sempre feliz? Eu, sem mentir, dizia há poucos dias […] que nunca tive uma alegria completa; quando chega uma alegria, dessas que satisfazem o coração, o Senhor fez-me sentir sempre a amargura de estar na terra; como uma faísca do Amor… E, contudo, nunca fui infeliz, não recordo ter sido infeliz nunca. Percebo que sou um grande pecador, um pecador que ama Jesus Cristo com toda a sua alma»[7].

Você e eu, minha filha, meu filho, nós, sim, somos pecadores. Mas amamos o Senhor com toda a nossa alma? Esforçamo-nos para retificar uma vez e outra – felix culpa! –, tirando motivos de mais amor, de maior compunção, dos nossos tropeços?

Notas:

[1] Missal Romano, Vigília Pascal (Pregão pascal)

[2] Cf. Rm 8, 18.

[3] Cf. Jo 16, 22.

[4] São Josemaria, Notas de uma reunião familiar, 7/06/1975 (AGP, biblioteca, P01, VII-1975, pág. 219).

[5] São Josemaria, Notas de uma meditação, 15/04/1960.

[6] São Josemaria, Carta, 24/03/1931, n. 25.

[7] São Josemaria, Notas de uma reunião familiar, 07/06/1975 (AGP, biblioteca, P01, VII-1975, pág. 219).



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27º. dia, 20 de Março - Oração,
por Frei Anselmo Fracasso, OFM

"Ajuda-me, Senhor, a amar como tu me amas 
e a compreender como Tu me compreendes.
Ensina-me, Senhor, a aceitar os outros como Tu me aceitas, 
respeitando-os como Tu me respeitas 
e suportando-os com paciência, 
como Tu me suportas com paciência infinita.
Ajuda-me, Senhor, a perdoar como Tu me perdoas 
e a fazer pelos outros todo o bem que fazes por mim.
Senhor, Tu que me aceitas como eu sou, 
ajuda-me a ser o que Tu queres que eu seja. 
Tua semelhança no Amor.
Transforma o meu coração para que ele seja bom, 
justo, manso, paciente, compreensivo, generoso, 
tolerante e cheio de misericórdia, 
para que através do meu amor humano semelhante ao Teu, 
eu possa levar ao meu irmão a alegria, 
a paz, o consolo, a esperança, o perdão 
e a salvação do Teu Amor Divino.
Amém."




Rádio Catedral: Programa "O que os olhos não vêem" com Frei Anselmo
Toda quarta-feira das 20h50min às 21h00min


Fonte: O próprio [ folheto entregue na confissão que faço no Convento de Santo Antônio]. 


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26º. dia, 19 de Março - Festa de São José
Ladainha de São José

"Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.

Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.

Deus, Pai dos Céus, tende piedade de nós.
Deus Filho, Redentor do mundo,
Deus Espírito Santo,
Santíssima Trindade, que sois um só Deus,

Santa Maria, rogai por nós.
São José,
Ilustre filho de David,
Luz dos Patriarcas,
Esposo da Mãe de Deus,
Casto guarda da Virgem,
Sustentador do Filho de Deus,
Zeloso defensor de Jesus Cristo,
Chefe da Sagrada Família,
José justíssimo,
José castíssimo,
José prudentíssimo,
José fortíssimo,
José obedientíssimo,
José fidelíssimo,
Espelho de paciência,
Amante da pobreza,
Modelo dos operários,
Honra da vida de família,
Guarda das virgens,
Sustentáculo das famílias,
Alívio dos miseráveis,
Esperança dos doentes,
Patrono dos moribundos,
Terror dos demônios,
Protetor da Santa Igreja,

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, perdoai-nos, Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, atendei-nos, Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós.

V. Ele constituiu-o senhor da sua casa.
R. E fê-lo príncipe de todos os seus bens.

Oremos: 
"Ó Deus, que por inefável providência Vos dignastes escolher a São José por esposo de vossa Mãe Santíssima; concedei-nos, Vo-lo pedimos, que mereçamos ter por intercessor no Céu, aquele que veneramos na Terra como protetor. Vós que viveis e reinais por todos os séculos dos séculos. Amém".



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25º. dia, 18 de Março - Tríduo de  São José, 3º. Dia

Realizar as orações conforme o roteiro do 1°. dia.




Homens, parem de agir como vítimas!
por Jared Zimmerer - Tradução: Equipe Christo Nihil Praeponere 
(Pe. Paulo Ricardo)


O patriarcado hoje costuma ser definido como um sistema social injusto que reforça papéis de gênero e oprime, evocando a típica dominação masculina sobre as mulheres.

Minha própria irmã descobriu recentemente essa versão do patriarcado em um curso de estudos sobre a mulher em uma instituição pública, durante o qual ela foi instada a dar exemplos em sua vida de quando a dominação masculina foi reforçada sobre ela, seja por seu pai ou qualquer outro homem com o qual ela tivesse algum contato. 

Infelizmente para o professor, que tentava tirar uma lição disso, minha irmã não conseguiu recordar uma única vez em que essa noção de misoginia tivesse sido imposta sobre ela. Ainda que meu coração sinceramente se compadeça de qualquer mulher que já tenha sido assediada por um homem, não me parece que devamos culpar o patriarcado por isso.

O fato é que muitos homens e mulheres nunca experimentaram o que é realmente o patriarcado. Em uma época na qual 1 em cada 3 lares sofre com a ausência do pai, será que podemos mesmo continuar a culpar o patriarcado pelas doenças sociais que estamos experimentando? 

Para que um patriarcado esteja em ordem, deve haver um homem desempenhando um papel de liderança. Mas os homens não estão em suas casas; ao contrário, eles estão abandonando seus postos e entrando em expedições egoístas. Se algum chega a abandonar a própria família, como muitos hoje estão fazendo, não se trata propriamente de opressão, mas de covardia. Acredito que a velha e desgastada mania de culpar os homens de ser “opressores” só funciona quando eles estão realmente presentes.

Ainda que o movimento de “liberação” das mulheres tivesse como finalidade libertar as mulheres da abstrata “opressão patriarcal”, o que o movimento provocou, na verdade, foi um retrocesso à servidão: nunca se viu os homens usarem tanto as mulheres como agora. Sem praticamente nenhum senso de compromisso, eles recebem hoje a gratificação imediata do ato sexual, fato que as mulheres exaltam como se se tratasse de verdadeira liberdade.

Mas será liberdade de fato ser jogada de lado como nada mais do que um objeto descartável? Isso não é amor, não é liberdade, não é verdade. É sim uma covardia dos homens, provocada pelo ciclo contínuo de meninos sendo criados para temer seja sua liderança como homens, seja sua capacidade inata de fazer diferença no mundo. É também um resultado da noção, passada a homens e a mulheres, de que “libertar-se do patriarcado” é o mesmo que livrar-se dos “grilhões” da responsabilidade moral.

Essa ideologia tem se espalhado porque fomos ensinados a ver tudo pelas lentes da vitimização. Os grandes heróis de nossa época são os que mais foram oprimidos. Ao invés de olhar para as virtudes que deveríamos cultivar e, mais importante ainda, para os vícios que deveríamos erradicar, as últimas duas ou três gerações foram ensinadas a vislumbrar matéria de opressão em cada ação ou reação da sociedade. 

Graças a essa tolice, a ideologia marxista de consciência social não só aliena as pessoas, como torna-se um verdadeiro perigo. Debaixo do fiasco cultural de um feminismo equivocado e de uma masculinidade caracterizada por violência e indignação encontra-se uma população inteira de homens que não sabem sequer o que seja conduzir uma família. 

Os princípios mal formulados do feminismo, incluindo sua noção de patriarcado, são simplesmente tão errados quanto os dos homens que tratam suas mulheres como animais. Ambos confundem liderança com opressão e imprimem na cultura um medo entre os dois sexos.

Talvez o restabelecimento do patriarcado cristão seja a mudança necessária, o catalisador positivo, para resolver nossos problemas sociais. Algumas das principais características do patriarcado são sua clareza, o conflito que ele gera e o controle que ele detém. Se devem ser elogiadas ou censuradas essas características, tudo depende de como se percebem os objetos a que elas dizem respeito.

O patriarcado é claro no sentido de que as leis dentro de um sistema patriarcal geralmente significam punições mais severas. Assim como o pai dentro de uma casa impõe uma boa dose de medo em tempos de mau comportamento, no patriarcado é muito menor a leniência para com as transgressões feitas à lei. Também é claro o patriarcado no sentido de que um sistema assim chama as coisas por aquilo que elas são. Um inimigo é um inimigo. 

Na modernidade nós temos dificuldades em definir um inimigo. Não queremos ferir os sentimentos de ninguém e trocamos a misericórdia e a justiça cristãs pela noção hodierna de “ser legal”. Jesus nos disse para amarmos nossos inimigos, não para fingirmos que eles não existiam.

Se uma ameaça estivesse a caminho de uma tribo ou de uma nação, os homens se reuniam para discutir como afastá-la e como melhor proteger aqueles sob seu cuidado. Isso significava guerra, conflito, controle. Não o controle de um ditador, mas o controle adquirido por meio de autossacrifício e coragem. Os homens tinham de arriscar suas vidas na linha de combate a fim de manter a salvo suas tribos. 

Eles entendiam que, se alguns dos homens morressem, ao menos sua descendência perduraria. Se as mulheres morressem, no entanto, eles teriam menos oportunidades de “encher a terra” com sua prole. As mulheres eram tidas em alta consideração deste modo porque sua sobrevivência significava a sobrevivência de todo o povo.

Houve épocas obviamente de abuso do patriarcado, e a elas se deve parcialmente a culpa dos desentendimentos de hoje. Por isso faço menção específica do patriarcado cristão. O homem cristão tem consciência da necessidade de viver como o próprio Cristo. Ele de bom grado dá a própria vida por sua família e por seu povo. São Paulo exalta esse patriarcado em Ef 5: “Pois o marido é a cabeça da mulher, assim como Cristo é a cabeça da Igreja”. 

O entendimento paulino de patriarcado pede dos homens que eles ajam exatamente como agiu Cristo crucificado; exorta-os a ganharem o direito de ser a cabeça da casa, não por meio da força bruta, mas através da caridade, fazendo sacrifícios e agindo com honra.

Eis um outro porquê de Jesus ser uma figura tão perigosa: Ele oferece a solução para nossos problemas, Ele oferece o patriarcado cristão. Quando os fariseus questionaram sua fidelidade à lei mosaica, que permitia o divórcio para não deixar os homens matarem suas esposas, Cristo respondeu: “Foi por causa da dureza de vossos corações que Moisés permitiu o divórcio, mas no princípio não era assim”. Jesus volta à origem do homem. 

Ao fazer isso, Ele não põe abaixo os ideais do patriarcado, mas desafia o status quo de um machismo corrosivo e traz de volta à mente o papel do próprio Adão. Este, encontrando-se sozinho e insatisfeito, procura sua amada. Ele procura aquela que será carne de sua carne e que satisfará suas necessidades mais profundas. Jesus repreende a mera noção de medo entre os sexos e, ao invés, institui uma masculinidade baseada no amor crucificado. 

Ele não pede aos homens que “sejam legais”, mas os desafia sim a interiorizar a lei eterna de Deus. Ele manda aos homens que reconheçam uma vez mais o incrível dom do feminino em suas vidas e que o tratem como a joia mais preciosa da Criação.

Acredito que nunca tenha sido tão necessário como agora revisitar os ideais do patriarcado cristão. Um sistema de expectativa dado aos homens para que tomem a frente e sejam os líderes que foram chamados a ser. Por muito tempo os homens deixaram de lado seus deveres como protetores, provedores e líderes de seus lares, tanto em matérias físicas quanto espirituais. 

O patriarcado, complementado pelas virtudes e princípios cristãos, permite que uma sociedade e sua moralidade prosperem porque, quando os homens conduzem suas casas no seguimento de Cristo, protegendo-as dos perigos físicos e espirituais e provendo-lhes os bens materiais e espirituais necessários, as famílias prosperam. Isso significa que os homens precisam dar um passo à frente e parar de agir como vítimas.

Construa suas virtudes, portanto, reze pedindo a graça de Deus e prepare-se para tomar o leme. Esse é o modo como Deus pensou o homem — e o modo como também nós deveríamos pensar.




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24º. dia, 17 de Março - Tríduo de  São José, 2º. Dia


Realizar as orações conforme o roteiro do 1°. dia.




Na oficina de José,
por São Josemaría Escrivá


[39] A Igreja inteira reconhece em São José o seu protetor e padroeiro. Ao longo dos séculos, tem-se falado dele sublinhando diversos aspectos da sua vida, continuamente fiel à missão que Deus lhe confiou. Por isso, desde há muitos anos, agrada-me invocá-lo com este título muito íntimo: Nosso Pai e Senhor.

São José é realmente Pai e Senhor: protege e acompanha no seu caminho terreno aqueles que o veneram, como protegeu e acompanhou Jesus enquanto crescia e se tornava homem. Quando se procura ganhar intimidade com ele, descobre-se que o Santo Patriarca é, além disso, Mestre de vida interior, porque nos ensina a conhecer Jesus, a conviver com Ele, a tomar consciência de que fazemos parte da família de Deus. E São José nos dá esses ensinamentos sendo, como foi, um homem comum, um pai de família, um trabalhador que ganhava a vida com o esforço de suas mãos. E este último aspecto reveste-se também de um significado que é para nós motivo de reflexão e de alegria.

Ao celebrarmos [hoje] a sua festa, quero evocar a sua figura recordando o que dele nos diz o Evangelho, para assim podermos descobrir melhor o que Deus nos transmite através da vida simples do Esposo de Santa Maria. 
 
[40] Tanto São Mateus como São Lucas nos falam de São José como varão que descendia de uma estirpe ilustre: a de Davi e Salomão, reis de Israel. Historicamente, os detalhes desta ascendência são um pouco confusos, não sabemos qual das duas genealogias enumeradas pelos evangelistas diz respeito a Maria - Mãe de Jesus segundo a carne - e qual a José, que era pai do Senhor segundo a lei judaica. Nem sabemos se a cidade natal de São José era Belém, onde se recenseou, ou Nazaré, onde vivia e trabalhava.

Sabemos, porém, que não era uma pessoa rica: era um trabalhador, como milhões de outros homens em todo o mundo; exercia o ofício fatigante e humilde que Deus havia escolhido para Si ao tomar a nossa carne e ao querer viver trinta anos entre nós como outra pessoa qualquer.

A Sagrada Escritura diz-nos que José era artesão. Vários padres acrescentam que foi carpinteiro. São Justino, referindo a vida de trabalho de Jesus, afirma que fazia arados e jugos. Baseando-se provavelmente nessas palavras, Santo Isidoro de Sevilha conclui que José era ferreiro. Seja como for, era um operário que trabalhava a serviço de seus concidadãos, que tinha uma habilidade manual, fruto de anos de esforço e de suor.

Das narrações evangélicas depreende-se a grande personalidade humana de José: em nenhum momento surge aos nossos olhos como um homem apoucado ou assustado perante a vida; pelo contrário, sabe enfrentar os problemas, ultrapassar as situações difíceis, assumir com responsabilidade e iniciativa as tarefas que lhe são confiadas.

Não estou de acordo com a forma clássica de representar São José como um ancião, ainda que com isso se tenha tido a boa intenção de ressaltar a perpétua virgindade de Maria. Eu imagino-o jovem, forte, talvez com alguns anos mais do que a Virgem, mas na plenitude da vida e do vigor humano.

Para viver a virtude da castidade, não é preciso esperar pela velhice ou pelo termo das energias. A castidade nasce do amor e, para um amor limpo, nem a robustez nem a alegria da juventude representam qualquer obstáculo. Jovem era o coração e o corpo de São José quando contraiu matrimônio com Maria, quando soube do mistério da sua Maternidade divina, quando viveu junto d'Ela respeitando a integridade que Deus queria oferecer ao mundo, como um sinal mais da sua vinda às criaturas. Quem não for capaz de entender um amor assim, é porque conhece muito mal o verdadeiro amor e desconhece por completo o sentido cristão da castidade.

Como dizíamos, José era um artesão da Galiléia, um homem como tantos outros. E o que pode esperar da vida um habitante de uma aldeia perdida como Nazaré? Apenas trabalho, todos os dias, sempre com o mesmo esforço. E, no fim da jornada, uma casa pobre e pequena, para recuperar as forças e recomeçar a tarefa no dia seguinte.

Mas o nome de José significa em hebreu "Deus acrescentará". À vida santa dos que cumprem a sua vontade, Deus acrescenta dimensões inesperadas: o que a torna importante, o que dá valor a tudo - o divino. À vida humilde e santa de José, Deus acrescentou - se assim me é permitido falar - a vida da Virgem Maria e a de Jesus, Senhor Nosso. Deus nunca se deixa vencer em generosidade. José podia tornar próprias as palavras pronunciadas por Santa Maria, sua Esposa: "Quia fecit mihi magna qui potens est, fez em mim coisas grandes, Aquele que é Todo-Poderoso, quia respexit humilitatem, porque olhou para a minha pequenez".

José era efetivamente um homem comum, em quem Deus confiou para realizar coisas grandes. Soube viver - tal e como o Senhor queria - todos e cada um dos acontecimentos que compuseram a sua vida. Por isso, a Santa Escritura louva José afirmando dele que era justo. E, na língua hebraica, justo quer dizer piedoso, servidor irrepreensível de Deus, cumpridor da vontade divina; outras vezes, significa bom e caridoso para com o próximo. Numa palavra, justo é aquele que ama a Deus e demonstra esse amor cumprindo os mandamentos divinos e orientando toda a vida para o serviço de seus irmãos, os homens.

[41] A justiça não consiste na simples submissão a uma regra: a retidão deve nascer de dentro, deve ser profunda, vital, porque o justo vive da fé. Viver da fé: essas palavras, que mais tarde foram tema freqüente de meditação para o Apóstolo Paulo, vêem-se amplamente realizadas em São José. Seu cumprimento da vontade de Deus não é rotineiro nem formalista, mas espontâneo e profundo. A lei, que todo o judeu praticante observava, não foi para ele um simples código nem uma fria recompilação de preceitos, mas expressão da vontade do Deus vivo. Por isso soube reconhecer a voz do Senhor quando lhe foi manifestada de forma inesperada e surpreendente.

A história do Santo Patriarca foi uma vida simples, mas não uma vida fácil. Depois de momentos angustiantes, fica sabendo que o Filho de Maria foi concebido por obra do Espírito Santo. E esse Menino, Filho de Deus, descendente de Davi segundo a carne, nasce numa gruta. Os anjos celebram seu nascimento, e personalidades de terras longínquas vêm adorá-lo. Mas o Rei da Judéia deseja a sua morte, e torna-se necessário fugir. O Filho de Deus é, aparentemente, um menino indefeso, que terá de viver no Egito.

[42] Ao narrar estas cenas no seu Evangelho, São Mateus salienta constantemente a fidelidade de José, que cumpre sem hesitações os mandatos de Deus, mesmo que algumas vezes o sentido desses mandatos lhe possa parecer obscuro ou sem conexão com o resto dos planos divinos.

Freqüentes vezes, os Padres da Igreja e os autores espirituais ressaltam esta firmeza da fé de São José. Referindo-se às palavras do Anjo, que o manda fugir de Herodes e refugiar-se no Egito , o Crisóstomo comenta: "Ao ouvir isto, José não se escandalizou nem disse: isto parece um enigma. Ainda há pouco me davas a conhecer que Ele salvaria o seu povo, e agora não só não é capaz de se salvar a si mesmo, como somos nós que temos de fugir, de empreender uma viagem e sofrer uma longa mudança: isso é contrário à tua promessa. José não raciocina desse modo, porque é um varão fiel. Também não pergunta pela data de regresso, apesar de o Anjo a ter deixado indeterminada, posto que lhe tinha dito: permanece lá - no Egito - até que eu te avise. Nem por isso levanta dificuldades, mas obedece, e crê, e suporta todas as provas alegremente".

A fé de José não vacila, sua obediência é sempre estrita e rápida. Para compreendermos melhor esta lição que aqui nos dá o Santo Patriarca, cumpre considerarmos que a sua fé é ativa e que a sua docilidade não se assemelha à obediência de quem se deixa arrastar pelos acontecimentos. Porque a fé cristã é o que há de mais oposto ao conformismo ou à passividade e à apatia interiores.

José abandonou-se sem reservas nas mãos de Deus, mas nunca se recusou a refletir sobre os acontecimentos, e assim pôde alcançar do Senhor esse grau de compreensão das obras de Deus que é a verdadeira sabedoria. Desse modo, aprendeu pouco a pouco que os planos sobrenaturais têm uma coerência divina, embora às vezes estejam em contradição com os planos humanos.

Nas diversas circunstâncias de sua vida, o Patriarca não renuncia a pensar nem desiste da sua responsabilidade. Pelo contrário, coloca toda a sua experiência humana a serviço da fé. Quando volta do Egito, ouvindo que Arquelau reinava na Judéia em lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá. Aprendeu a mover-se dentro do plano divino e, como confirmação de que seus pensamentos vão ao encontro do que Deus realmente quer, recebe a indicação de se retirar para a Galiléia.

Assim foi a fé de José: plena, confiante, íntegra, manifestada numa entrega eficaz à vontade de Deus, numa obediência inteligente. E, junto com a fé, a caridade, o amor. Sua fé funde-se com o Amor: com o Amor a um Deus que estava cumprindo as promessas feitas a Abraão, a Jacó, a Moisés; com o carinho de esposo para com Maria, e com o carinho de pai para com Jesus. Fé e amor na esperança da grande missão que Deus, servindo-se dele também - um carpinteiro da Galiléia -, estava iniciando no mundo: a redenção dos homens.

[43] Fé, amor, esperança: estes são os eixos da vida de São José e os de toda a vida cristã. A entrega de São José aparece-nos urdida por um entrelaçado de amor fiel, de fé amorosa, de esperança confiante. A sua festa é, por isso, uma boa oportunidade para que todos renovemos a nossa entrega à vocação de cristãos que o Senhor concedeu a cada um.

Quando se deseja sinceramente viver de fé, de amor e de esperança, a renovação da entrega não significa retomar uma coisa que estava em desuso. Quando há fé, amor e esperança, renovar-se significa conservar-se nas mãos de Deus, apesar dos erros pessoais, das quedas, das fraquezas: é confirmar um caminho de fidelidade. Renovar a entrega, repito, é renovar a fidelidade àquilo que o Senhor quer de nós: é amar com obras.

O amor tem necessariamente as suas manifestações características. Às vezes, fala-se do amor como se fosse um impulso para a satisfação própria, ou um simples recurso para completarmos em moldes egoístas a nossa personalidade. E não é assim: amor verdadeiro é sair de si mesmo, entregar-se. O amor traz consigo a alegria, mas é uma alegria com as raízes em forma de cruz. Enquanto estivermos na terra e não tivermos chegado à plenitude da vida futura, não pode haver amor verdadeiro sem a experiência do sacrifício, da dor. Uma dor que se saboreia, que é amável, que é fonte de íntima alegria, mas que é dor real, porque supõe vencer o egoísmo e tomar o amor como regra de todas e cada uma de nossas ações.

[44]  As obras do amor são sempre grandes, mesmo que se trate de coisas aparentemente pequenas. Deus aproximou-se dos homens, pobres criaturas, e disse-nos que nos ama: "Deliciae meae esse cum filiis hominum, minhas delícias são estar com os filhos dos homens". O Senhor mostra-nos que tudo tem importância: as ações que, com olhos humanos, consideramos extraordinárias; essas outras que, pelo contrário, qualificamos como algo de pouca categoria. Nada se perde. Nenhum homem é desprezado por Deus. Todos nós, cada um seguindo a sua própria vocação - no seu lar, na sua profissão ou ofício, no cumprimento das obrigações que lhe competem por seu estado, nos seus deveres de cidadão, no exercício dos seus direitos -, todos somos chamados a participar do reino dos céus.

É o que nos ensina a vida de São José: simples, normal e comum, feita de anos de trabalho sempre igual, de dias humanamente monótonos, que se sucedem uns aos outros. Tenho pensado muitas vezes nesse aspecto, ao meditar sobre a figura de São José, e esta é uma das razões que me fazem sentir uma devoção especial por ele.

Quando, no seu discurso de encerramento da primeira sessão do Concílio Vaticano II, no passado dia 08 de dezembro, o Santo Padre João XXIII anunciou que no cânon da missa se mencionaria o nome de São José, uma altíssima personalidade eclesiástica telefonou-me imediatamente para me dizer: "Rallegramenti! Felicitações! Ao escutar a notícia, pensei imediatamente no senhor, na alegria que lhe deve ter causado". Era verdade: porque na assembléia conciliar, que representa a Igreja inteira reunida no Espírito Santo, proclamava-se o imenso valor sobrenatural da vida de São José, o valor de uma vida simples de trabalho feito diante de Deus, em total cumprimento da vontade divina.

[45] Descrevendo o espírito da associação a que dediquei a minha vida - o Opus Dei -, tenho dito que se apóia, como que em seu eixo, no trabalho diário, no trabalho profissional exercido no meio do mundo. A vocação divina confere-nos uma missão, convida-nos a participar na tarefa única da Igreja, para sermos assim testemunhas de Cristo perante os nossos iguais, os homens, e levarmos todas as coisas para Deus.

A vocação acende uma luz que nos faz reconhecer o sentido da nossa existência. É convencermo-nos, sob o resplendor da fé, do porquê da nossa realidade terrena. Nossa vida - a presente, a passada e a que há de vir - ganha um novo relevo, uma profundidade de que antes não suspeitávamos. Todos os fatos e acontecimentos passam a ocupar o seu verdadeiro lugar: entendemos para onde o Senhor nos quer conduzir, e nos sentimos como que avassalados por essa tarefa que Ele nos confia.

Deus tira-nos das trevas da nossa ignorância, do nosso caminhar incerto por entre as vicissitudes da história, e, seja qual for o posto que ocupemos no mundo, chama-nos com voz forte, como o fez um dia com Pedro e com André: "Venite post me, et faciam vos fieri piscatores hominum , segui-me, e eu vos tornarei pescadores de homens".

Quem vive da fé pode encontrar a dificuldade e a luta, a dor e até a amargura, mas nunca cairá no desânimo ou na angústia, pois sabe que a sua vida tem valor, sabe para que veio a esta terra. "Ego sum lux mundi" - exclamou Cristo -; "qui sequitur me non ambulat in tenebris, sed habebit lumen vitae: Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não caminha nas trevas, mas possuirá a luz da vida".

Para merecermos essa luz de Deus, precisamos amar, reconhecer humildemente a necessidade de sermos salvos, e dizer com Pedro: "Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna. E nós cremos e conhecemos que tu és Cristo, o Filho de Deus". Se agirmos assim de verdade, se deixarmos a chamada divina penetrar no nosso coração, também com verdade poderemos repetir que não caminhamos nas trevas, pois, por cima das nossas misérias e dos nossos defeitos pessoais, brilha a luz de Deus, como o sol brilha por cima da tempestade.

[46]  A fé e a vocação de cristãos afetam toda a nossa existência, não apenas uma parte. As relações com Deus são necessariamente relações de entrega, e assumem um sentido de totalidade. A atitude do homem de fé é olhar para a vida, em todas as suas dimensões, sob uma perspectiva nova: a que Deus nos dá.

Todos vós, que hoje celebrais comigo esta festa de São José, sois homens dedicados ao trabalho nas mais diversas profissões humanas, fazeis parte dos lares mais diversos, pertenceis a tão diferentes nações, raças e línguas. Fostes educados em centros de ensino, em oficinas ou escritórios, exercestes a vossa profissão durante anos, travastes relações profissionais e pessoais com os vossos companheiros, participastes na solução dos problemas coletivos das vossas empresas e da vossa sociedade.

Pois bem: recordo-vos, uma vez mais, que nada disso é alheio aos planos divinos. A vossa vocação humana é parte, e parte importante, da vossa vocação divina. Esta é a razão pela qual tendes que vos santificar - contribuindo ao mesmo tempo para a santificação dos outros, dos vossos iguais - precisamente santificando o vosso trabalho e o vosso ambiente: essa profissão ou ofício que preenche vossos dias, que dá uma fisionomia peculiar à vossa personalidade humana, que é a vossa maneira de estar no mundo; esse lar, a vossa família; e essa nação em que nascestes e que amais.

[47] O trabalho acompanha inevitavelmente a vida do homem sobre a terra. Com ele aparecem o esforço, a fadiga, o cansaço, manifestações da dor e da luta que fazem parte da nossa existência humana atual, e que são sinais da realidade do pecado e da necessidade da redenção. Mas o trabalho em si não é uma pena, nem uma maldição ou um castigo: aqueles que falam assim não leram bem a Sagrada Escritura.

É hora de que todos nós, cristãos, anunciemos bem alto que o trabalho é um dom de Deus, e que não faz nenhum sentido dividir os homens em diferentes categorias, conforme os tipos de trabalho, considerando umas ocupações mais nobres do que as outras. O trabalho, todo o trabalho, é testemunho da dignidade do homem, do seu domínio sobre a criação; é meio de desenvolvimento da personalidade; é vínculo de união com os outros seres; fonte de recursos para o sustento da família; meio de contribuir para o progresso da sociedade em que se vive e para o progresso de toda a humanidade.

Para um cristão, essas perspectivas alargam-se e ampliam-se, porque o trabalho se apresenta como participação na obra criadora de Deus que, ao criar o homem, o abençoou dizendo: "Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra e submetei-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra". E porque, além disso, ao ser assumido por Cristo, o trabalho se nos apresenta como realidade redimida e redentora: não é apenas a esfera em que o homem se desenvolve, mas também meio e caminho de santidade, realidade santificável e santificadora.

[48] Convém não esquecer, portanto, que esta dignidade do trabalho se baseia no Amor. O grande privilégio do homem é poder amar, transcendendo assim o efêmero e o transitório. O homem pode amar as outras criaturas, dizer um “tu” e um “eu” cheios de sentido. E pode amar a Deus, que nos abre as portas do céu, que nos constitui membros da sua família, que nos autoriza a falar-lhe também de tu a Tu, face a face.

Por isso, o homem não se deve limitar a fazer coisas, a construir objetos. O trabalho nasce do amor, manifesta o amor, orienta-se para o amor. Reconhecemos Deus não apenas no espetáculo da natureza, mas também na experiência do nosso próprio trabalho, do nosso esforço. O trabalho é assim oração, ação de graças, porque nos sabemos colocados na terra por Deus, amados por Ele, herdeiros de suas promessas. É justo que o Apóstolo nos diga: "Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus".

[49] O trabalho profissional é também apostolado, ocasião de entrega aos outros homens, o momento de lhes revelar Cristo e levá-los a Deus Pai; é conseqüência da caridade que o Espírito Santo derrama nas almas. Entre as indicações que São Paulo dá aos Efésios, sobre o modo como se deve manifestar a mudança que neles operou a conversão, a sua chamada ao cristianismo, encontramos esta: "Aquele que furtava não furte mais, mas trabalhe, ocupando-se com suas mãos em qualquer coisa honesta, a fim de ter com que ajudar a quem esteja em necessidade". Os homens têm necessidade do pão da terra para sustentar as suas vidas, e também do pão do céu para iluminar e dar calor aos seus corações. Com o nosso próprio trabalho, com as iniciativas que possamos promover a partir das nossas ocupações, nas nossas conversas, no convívio com os outros, podemos e devemos concretizar esse preceito apostólico.

Se trabalhamos com esse espírito, a nossa vida, no meio das limitações próprias da condição terrena, será uma antecipação da glória do céu, dessa comunidade com Deus e com os santos, onde reinam somente o amor, a entrega, a fidelidade, a amizade, a alegria. Na ocupação profissional diária e comum encontraremos a matéria - real, consistente, valiosa - para realizarmos toda a vida cristã, para atualizarmos a graça que nos vem de Cristo.

Nessa tarefa profissional, exercida de olhos postos em Deus, entrarão em jogo a fé, a esperança e a caridade. As vicissitudes, as relações e os problemas próprios do trabalho alimentarão a nossa oração. O esforço necessário para levar a cabo as tarefas diárias será ocasião de vivermos essa Cruz que é essencial a todo o cristão. A experiência da nossa fraqueza, os malogros que existem sempre em qualquer esforço humano, dar-nos-ão mais realismo, mais humildade, mais compreensão com os outros. Os êxitos e as alegrias convidar-nos-ão a dar graças e a pensar que não vivemos para nós mesmos, mas para o serviço dos outros e de Deus.

[50] Para viver assim, para santificar a profissão, é necessário em primeiro lugar trabalhar bem, com seriedade humana e sobrenatural. Quero recordar aqui, por contraste, o que conta um desses antigos relatos dos evangelhos apócrifos: "O pai de Jesus, que era carpinteiro, fazia arados e jugos. Certa vez" - continua a narrativa - "uma pessoa de boa reputação encomendou-lhe uma cama. Mas aconteceu que um dos varais era mais curto que o outro, e José não sabia o que fazer. Então o Menino Jesus disse a seu pai: põe os dois paus no chão e alinha-os por uma das extremidades. José assim fez. Jesus colocou-se do outro lado, pegou no varal mais curto e esticou-o, deixando-o tão comprido quanto o outro. José, seu pai, encheu-se de admiração ao ver o prodígio e cobriu o Menino de abraços e beijos, dizendo: feliz de mim, porque Deus me deu este Menino".

José não podia dar graças a Deus por tais motivos; seu trabalho não podia ser dessa espécie. São José não é o homem das soluções fáceis e milagreiras, mas o homem da perseverança, do esforço e - quando necessário - do engenho. O cristão sabe que Deus faz milagres: que os fez há séculos, que continuou a fazê-los depois e que continua a fazê-los agora, porque "non est abbreviata manus Domini , o poder de Deus não diminuiu".

Mas os milagres são uma manifestação da onipotência salvadora de Deus, não um expediente para remediar as conseqüências da inépcia ou para favorecer o nosso comodismo. O milagre que o Senhor nos pede é a perseverança na vocação cristã e divina, a santificação do trabalho de cada dia: o milagre de converter a prosa diária em decassílabos, em verso heróico, pelo amor com que desempenhamos as ocupações habituais. Deus nos espera aí, de tal forma que sejamos almas com senso de responsabilidade, com preocupação apostólica, com competência profissional.

Por isso, como lema para o trabalho de cada um, posso indicar este: "Para servir, servir". Porque, para fazer as coisas, é preciso antes de mais nada saber terminá-las. Não acredito na retidão de intenção de quem não se esforça por alcançar a competência necessária para cumprir bem as tarefas que lhe são confiadas. Não basta querer fazer o bem; é preciso saber fazê-lo. E, se realmente queremos, esse desejo traduzir-se-á no empenho em utilizar os meios adequados para deixar as coisas acabadas, com perfeição humana.

[51] Mas esse serviço humano, essa capacidade que poderíamos chamar técnica, esse saber realizar o ofício próprio, deve, além disso, estar informado por uma característica que foi fundamental no trabalho de São José e que devia ser fundamental em todo o cristão: o espírito de serviço, o desejo de trabalhar com o fim de contribuir para o bem dos demais homens. O trabalho de José não foi um trabalho que visasse a auto-afirmação, embora a dedicação a uma vida operativa tivesse forjado nele uma personalidade amadurecida, bem delineada. O Patriarca trabalhava com a consciência de estar cumprindo a vontade de Deus, pensando no bem dos seus, Jesus e Maria, e tendo em vista o bem dos habitantes da pequena Nazaré.

Em Nazaré, José devia ser um dos poucos artesãos, se não o único. Possivelmente, carpinteiro. Mas, como costuma acontecer nas pequenas povoações, também devia ser capaz de fazer outras coisas: pôr em andamento um moinho que não funcionava, ou consertar antes do inverno as fendas de um teto. José devia tirar muita gente de dificuldades, com um trabalho bem acabado. Seu trabalho profissional era uma ocupação orientada para o serviço, tinha em vista tornar mais grata a vida das outras famílias da aldeia; e far-se-ia acompanhar de um sorriso, de uma palavra amável, de um comentário dito como que de passagem, mas que devolve a fé e a alegria a quem está prestes a perdê-las.

[52] Às vezes, quando se tratasse de pessoas mais pobres do que ele, José devia trabalhar aceitando em troca alguma coisa de pouco valor, que deixasse a outra pessoa com a satisfação de pensar que tinha pago. Normalmente, cobraria o que fosse razoável, nem mais nem menos. Saberia exigir o que em justiça lhe era devido, já que a fidelidade a Deus não pode significar renúncia a direitos que na realidade são deveres: São José tinha de exigir o que era justo, pois com a recompensa desse trabalho precisava sustentar a Família que Deus lhe havia confiado.

Exigir os direitos que nos assistem não deve ser fruto de um egoísmo individualista. Não se ama a justiça, se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é lícito encerrar-se numa religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus esforça-se também por fazer com que se pratique de fato a justiça entre os homens. E não apenas pelo bom motivo de que não se injurie o nome de Deus, mas porque ser cristão significa acolher todas as instâncias nobres que existem no ser humano. Parafraseando um conhecido texto do Apóstolo São João, podemos dizer que quem se proclama justo com Deus, mas não é justo com os outros homens, é um mentiroso; e a verdade não habita nele.

Como todos os cristãos que viveram aquele momento, também eu recebi com emoção e alegria a decisão de celebrar a festa litúrgica de São José Operário. Essa festa, que é uma canonização do valor divino do trabalho, mostra como a Igreja, na sua vida coletiva e pública, se faz eco das verdades centrais do Evangelho, que Deus deseja ver especialmente meditadas nos nossos dias.

[53]  Já falamos muito deste tema em outras ocasiões, mas permito-me insistir de novo na naturalidade e na simplicidade da vida de São José, que não se distanciava de seus vizinhos nem levantava barreiras desnecessárias.

Por isso, embora em alguns momentos ou situações isso possa ser conveniente, normalmente não gosto de falar de operários católicos, de engenheiros católicos, de médicos católicos, etc., como se se tratasse de uma espécie dentro de um gênero, como se os católicos formassem um grupinho separado dos outros, dando assim a sensação de que existe um fosso entre os cristãos e o resto da humanidade. Respeito a opinião contrária, mas penso que é muito mais correto falar de operários que são católicos, ou de católicos que são operários; de engenheiros que são católicos, ou de católicos que são engenheiros: porque o homem que tem fé e que exerce uma profissão intelectual, técnica ou manual, é e sente-se unido aos outros, igual aos outros, com os mesmos direitos e obrigações, com o mesmo desejo de progredir, com o mesmo anseio de enfrentar os problemas comuns e de encontrar solução para eles.

Assumindo todos esses aspectos, o católico saberá fazer da sua vida diária um testemunho de fé, de esperança e de caridade; testemunho simples, normal, sem necessidade de manifestações espetaculares, pondo de manifesto - com a coerência da sua vida - a presença constante da Igreja no mundo, já que todos os católicos são eles mesmos Igreja, são membros, com pleno direito, do único Povo de Deus.

[54] Desde há muito tempo gosto de recitar uma comovente invocação a São José, que a própria Igreja nos propõe, entre as orações preparatórias da missa: "José, varão bem-aventurado e feliz, a quem foi concedido ver e ouvir o Deus que muitos reis quiseram ver e ouvir, e não viram nem ouviram; e não apenas vê-lo e ouvi-lo, mas também segurá-lo nos braços, beijá-lo, vesti-lo e guardá-lo: rogai por nós". Esta oração nos servirá para entrarmos no último tema que hoje queria tocar: o convívio íntimo entre José e Jesus.

Para São José, a vida de Jesus foi uma contínua descoberta da sua própria vocação. Recordávamos atrás aqueles primeiros anos cheios de circunstâncias aparentemente contraditórias: glorificação e fuga, majestade dos magos e pobreza do presépio, cântico dos Anjos e silêncio dos homens. Quando chega o momento de apresentar o Menino no templo, José, que leva a modesta oferenda de um par de pombas, vê Simeão e Ana proclamarem que Jesus é o Messias. E seu pai e sua mãe escutavam com admiração , diz São Lucas. Mais tarde, quando o Menino fica no templo sem que Maria e José o saibam, ao encontrá-lo novamente, depois de o procurarem por três dias, o mesmo evangelista diz que se maravilharam.

José surpreende-se, José admira-se. Deus vai-lhe revelando os seus desígnios e ele esforça-se por entendê-los. Como toda a alma que queira seguir Jesus de perto, descobre imediatamente que não é possível andar com passo cansado nem persistir na rotina. Deus não se conforma com a estabilidade no nível atingido, com o descanso naquilo que já se tem. Deus exige continuamente mais e mais, e seus caminhos não são os nossos caminhos humanos. Como nenhum outro homem antes ou depois dele, São José aprendeu de Jesus a permanecer atento às maravilhas de Deus, a ter a alma e o coração abertos.

[55] Mas se José aprendeu de Jesus a viver de um modo divino, atrever-me-ia a dizer que, sob o aspecto humano, ensinou muitas coisas ao Filho de Deus. Há qualquer coisa que não acabo de gostar no título de pai adotivo com que às vezes se designa José, porque oferece o perigo de sugerir que as suas relações com Jesus eram frias e externas. Certamente a nossa fé nos diz que José não era pai segundo a carne, mas essa não é a única paternidade possível.

A José não só se deve o nome de pai - lemos num sermão de Santo Agostinho -, como se deve mais a ele do que a qualquer outro. E acrescenta: De que forma era pai? Tanto mais profundamente pai, quanto mais casta foi a sua paternidade. Alguns pensavam que era pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como são pais os outros, os que geram segundo a carne, e não recebem seus filhos somente como fruto do seu afeto espiritual. Por isso diz São Lucas: pensava-se que era pai de Jesus. Por que diz apenas que se pensava? Porque o pensamento e o juízo humanos se referem àquilo que costuma acontecer entre os homens. E o Senhor não nasceu do germe de José. Mas à piedade e à caridade de José nasceu um filho da Virgem Maria, que era Filho de Deus.

José amou Jesus como um pai ama o seu filho, dando-lhe tudo o que tinha de melhor. Cuidou daquele Menino como lhe tinha sido ordenado, e fez dele um artesão: transmitiu-lhe o seu oficio. Por isso os vizinhos de Nazaré se referiam a Jesus indistintamente como "faber e fabri filius: artesão e filho do artesão". Jesus trabalhou na oficina de José e junto de José. Como seria José, como teria atuado nele a graça, para ser capaz de desempenhar a tarefa de educar o Filho de Deus nos aspectos humanos?

Porque Jesus devia parecer-se com José: no modo de trabalhar, nos traços do seu caráter, na maneira de falar. No realismo de Jesus, no seu espírito de observação, no seu modo de se sentar à mesa e de partir o pão, no seu gosto em expor a doutrina de maneira concreta, tomando como exemplo as coisas da vida corrente, reflete-se o que foi a infância e a juventude de Jesus e, portanto, o seu convívio com José.

Não é possível desconhecer a sublimidade do mistério. Esse Jesus que é homem, que fala com o sotaque de uma região determinada de Israel, que se parece com um artesão chamado José, esse é o Filho de Deus. E quem pode ensinar alguma coisa a Deus? Mas é realmente homem, e vive normalmente: primeiro como criança, depois como adolescente, ajudando na oficina de José; finalmente como homem maduro, na plenitude da idade. Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça, diante de Deus e dos homens.

[56] Nas coisas humanas, José foi mestre de Jesus; conviveu diariamente com Ele, com carinho delicado, e cuidou d'Ele com abnegação alegre. Não será esta uma boa razão para considerarmos este varão justo, este Santo Patriarca, em quem culmina a fé da Antiga Aliança, como Mestre de vida interior? A vida interior não é outra coisa senão uma relação de amizade assídua e íntima com Cristo, para nos identificarmos com Ele. E José saberá dizer-nos muitas coisas sobre Jesus. Por isso, não abandonemos nunca a devoção que lhe dedicamos: "Ite ad Ioseph, ide a José", como diz a tradição cristã, servindo-se de uma frase tirada do Antigo Testamento.

Mestre de vida interior, trabalhador empenhado no seu ofício, servidor fiel de Deus, em relação continua com Jesus: este é José. Ite ad IosephCom São José, o cristão aprende o que significa pertencer a Deus e estar plenamente entre os homens, santificando o mundo. Procuremos a intimidade com José, e encontraremos Jesus. Procuremos a intimidade com José, e encontraremos Maria, que encheu sempre de paz a amável oficina de Nazaré.



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23º. dia, 16 de Março - Tríduo de  São José, 1º. Dia


Fazer o Sinal da Cruz.
Jaculatória: "Benditos e amados sejam os dulcíssimos nomes de Jesus, Maria e José. Amém."

Oração Inicial para todos os dias

"A vós recorremos, bondoso Patriarca, e com todo o fervor de nosso afligido coração vos pedimos que, deste trono de glória em que vos colocaram vossas virtudes e merecimentos, escuteis propicio nossas súplicas e tenhais piedade de nós.

Humildemente confessamos que nossas tribulações são penas de nossas culpas; por isso com dor de coração, pedimos a Deus perdão de todas elas.

Amoroso São José, pelo amor que professais a vosso Jesus e Maria e pela autoridade que sobre eles exercestes aqui na terra, intercede agora por nós no céu, escutando nossas petições e apresentando-as vos mesmo a vossa Esposa Imaculada e a vosso Divino Filho para que sejam favoravelmente ouvidas, para maior glória de Deus e santificação de nossas almas. 
Amém.

Castíssimo esposo da virgem Maria e amável protetor, meu São José!
Que jamais se ouviu dizer que alguém já tenha invocado vossa proteção e implorado vosso auxilio sem haver sido consolado. 
Cheio de confiança em vosso poder, já que exercestes com Jesus o cargo de pai, venho a vossa presença e me encomendo a vós com todo fervor. 
Não desprezeis minhas súplicas, antes bem, acolhei-as e dignai-vos atendê-las piedosamente. 
Amém."

 
Primeiro Dia

"Aqui nós estamos em vossa gloriosa presença, doce protetor nosso São José, implorando vosso eficaz patrocínio.
Dirige, oh grande santo, uma olhada amorosa sobre nós, miseráveis filhos de Eva, e alcança-nos com a graça que vos pedimos, as virtudes da humildade, pureza e obediência, a honra de morrer assistidos por Jesus, por vossa esposa e por vós, para o bendissermos e o louvarmos no céu eternamente. 
Amém."

[Pede-se a graça que se deseja.]

Rezar por sete vezes um Pai Nosso e uma Ave Maria em memória das sete dores e alegrias de São José.


Oração Final para todos os dias


"Gloriosíssimo patriarca São José, castíssimo esposo da Mãe de Deus,
Ao vosso amparo acudimos, não desprezais nossas súplicas e livrai-nos de todos os perigos.
Bendito patriarca São José, rogai por nós,
Para que sejamos dignos da graça que imploramos.
Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe nossa, uni vossos rogos aos de vosso castíssimo esposo e pelos maternais cuidados que dedicastes ao Menino Jesus, intercedei e rogai por nós para que sejamos dignos de alcançar a graça que vos pedimos.
Sacratíssimo Coração de Jesus, ouvi benigno as súplicas de Maria, cheia de graça, e de José, varão justo, para que por sua intercessão logremos o favor solicitado, se for para a maior honra e glória vossa e bem de nossas almas.
Vós que viveis e reinais por todos os séculos dos séculos. 
Amém."






As sete dores e alegrias de São José


. Primeira Dor: 
"Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo" (Mt 1, 18).

. Primeira Alegria: 
"O anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo" (Mt 1, 20-21).


. Segunda Dor: 
"Veio para o que era seu, e os seus não o acolheram" (Jo 1, 1).

. Segunda Alegria: 
"Foram às pressas à Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido, deitado na manjedoura" (Lc 2, 16).


. Terceira Dor: 
"Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido" (Lc 2, 21).

. Terceira Alegria: 
"A quem porás o nome de Jesus, será chamado Filho do Altíssimo..., e o seu reino não terá fim" (Lc 1, 31 e 32).


. Quarta Dor: 
"Simeão os abençoou e disse a Maria, a mãe de Jesus: Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição. Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações" (Lc 2, 34).

. Quarta Alegria: 
"Porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações" (Lc 2, 30. 32).


. Quinta Dor: 
"O Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise!" (Mt 2, 13).

. Quinta Alegria: 
"Ali ficou até à morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: 'Do Egito chamei o meu Filho'" (Mt 2, 15)


. Sexta Dor: 
"José levantou-se, pegou o menino e sua mãe, entrou na terra de Israel. Mas, quando soube que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá" (Mt 2, 22).

. Sexta Alegria: 
"Depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia, e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno" (Mt 2, 23).


. Sétima Dor: 
"Começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos. Não o tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura" (Lc 2, 44).

. Sétima Alegria: 
"Três dias depois, O encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas" (Lc 2,45).



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22º. dia, 15 de Março - O Inferno de Dante e Nossa Humanidade,
por Dov Lerner, traduzido por Caroline Neves


Eu e meus alunos – judeus ortodoxos da Universidade Yeshiva – encontramos algo mais profundo do que mero sangue no legado textual de Dante para a posteridade. Seu inferno nos proporcionou algo que jamais poderíamos encontrar em seu Purgatório ou Paraíso. Para nós, a verdadeira contribuição do Inferno não foi sua paisagem penal de areias queimadas e piche fumegante. Ao contrário, o que mais nos comoveu foi sua evidente preocupação com nossa humanidade.

Há pouco mais de três semanas, Scott Crider publicou um ensaio no Public Discourse sobre a escrita de um homem que morreu há exatamente sete séculos hoje, oferecendo um argumento convincente para aplicar uma lente pedagógica ao conto de Dante sobre o futuro. No entanto, entre suas eruditas observações encontra-se uma única frase – embora entre parênteses – à qual, com grande respeito, faço alguma exceção.

Crider escreveu:

“Ensinar o Inferno por si só é uma perversão curricular que mal sei como ser tolerante: não é de admirar que gerações de graduados em faculdades pensem em Dante como um algoz cruel, e o cristianismo como todo julgamento e nenhum amor.”

Como culpado de tal perversão curricular – tendo ensinado o Inferno, sem Purgatório ou Paraíso, na primavera passada – espero, ao longo desta pequena peça, induzir uma medida de tolerância para aqueles que optaram por encerrar sua expedição no limite do inferno de Dante.

É verdade que o Inferno é muito mais pavoroso do que os degraus superiores da paisagem pós-morte de Dante. Isso, em parte, explica seu apelo para leitores em quase todos os lugares e quase todas as idades desde sua publicação. Os nove círculos do inferno são povoados por uma série assombrosa de guardas sádicos e suas presas criminosas. 

Lemos sobre o Cérbero de três cabeças cortando a pele dos gulosos enquanto eles rolam na sujeira e na chuva; encontramos pecadores transfigurados em árvores enquanto cães de caça rasgam suas folhas e pés; encontramos tiranos fervendo em torrentes de sangue enquanto centauros belicosos rondam as margens; vemos demônios chicoteando alcoviteiros, cobras atacando ladrões, hipócritas carregados de chumbo e corpos imobilizados nas entranhas silenciosas do covil congelado de Satanás, enquanto ele tritura os três maiores traidores de todos os tempos entre seus dentes manchados e irregulares.

Estas são apenas algumas das figuras e cenas que deram longevidade à primeira parte do poema de Dante. Eles inspiraram passeios em Coney Island e enredos no Inferno de Dan Brown, falando com a curiosidade mórbida que cada um de nós possui, embora em graus variados. Uma imagem realmente vale mais que mil palavras. Enquanto o Purgatório e o Paraíso de Dante estão repletos de personalidades e episódios memoráveis, nenhum se compara ao banquete gráfico de sua horrível paisagem infernal. Eu mesmo confesso que minha perda de quarenta quilos desde março se deve, pelo menos em parte, ao pensamento recorrente do destino medonho dos glutões no terceiro círculo do Inferno.

O que os judeus ortodoxos – e qualquer outra pessoa – podem aprender do Inferno

Dante era, é claro, um católico. Sua preocupação com a escatologia cristológica e o dogma é evidente em toda a Commedia. Pense, por exemplo, nos sete terraços de seu Purgatório e nos sete níveis de limpeza que o acompanham, cada um correspondendo a um dos sete pecados capitais. Mas Dante também era um humanista. Ele se preocupou com a humanidade mesmo além de suas fronteiras teológicas, procurando ensinar a todas as pessoas o caminho da virtude. Em nenhum lugar isso é mais claro do que no Inferno.

Ele foi o primeiro, até onde sabemos, a colocar um grupo de não-cristãos declaradamente no limbo, em vez de condená-los todos ao inferno. O primeiro círculo do Inferno, um lugar que faz fronteira com o paraíso de um erudito – onde poetas, filósofos, cientistas e conquistadores conversam pela eternidade em meio a uma sensação de equanimidade perpétua – é povoado por pagãos que variam de Homero e Sêneca a Tales e Saladino, e é dirigido pelo “mestre dos que sabem”, Aristóteles.

Até este ponto, o limbo era visto como um refúgio para apenas dois grupos de não-cristãos: bebês não batizados e profetas bíblicos de antes do nascimento de Jesus (até que o inferno foi angustiado, é claro, e os últimos foram aceitos no céu). Dante expande o limbo para acomodar aqueles que não compartilhavam sua fé, mas abraçaram sua própria humanidade. Talvez mais visivelmente, o guia de Dante – que o conduz pelo inferno – não é um santo nem um profeta, mas o poeta romano pré-cristão, Virgílio. É verdade que Virgílio tropeça de vez em quando e não consegue levar Dante até o Paraíso, mas consegue levá-lo à segurança e o ensina a escapar da condenação.

No entanto, o fato de Dante poupar alguns pagãos das dores da condenação eterna não chega nem perto da escala do apelo único do Inferno para aqueles que não compartilham sua fé. 

A própria arquitetura de sua paisagem infernal é, ao contrário dos planos superiores, baseada no pensamento de uma figura não-cristã. Sabemos disso porque, uma vez que ele entrou na cidade de Dis e está de pé na borda interna do sexto círculo – depois de ter visto o sofrimento dos luxuriosos e gulosos, e aqueles atormentados pela ganância, raiva e heresia – Dante vira-se para seu guia e implora por uma explicação. Atordoado por cenas de pecadores em apuros – às vezes desmaiando em simpatia e expressando tristeza – Dante permanece incapaz de decifrar nem a rima nem a razão no além. Ao que Virgílio responde: “Você não se lembra das palavras com que sua Ética trata tão plenamente as três disposições que o Céu recusa?”

Acontece que o inferno de Dante, por sua própria confissão, é organizado de acordo com os princípios aristotélicos, conforme delineado na Ética a Nicômaco, onde o antigo filósofo grego distingue entre os males da incontinência e do vício. 

O inferno superior pertence aos incontinentes: aqueles que não controlam seus instintos mais básicos. O inferno inferior é a residência daqueles que voluntariamente escolheram pecar.

Embora Marc Cogan, em seu The Design in the Wax, argumente convincentemente que o Inferno de Dante de forma alguma captura verdadeiramente a noção original de Aristóteles – com afirmações que exigiriam muito mais espaço do que o atribuído a este ensaio – ele continua sugerindo que a decisão de Dante de moldar seu inferno depois de uma idéia grega ao invés de um credo cristão surge de uma necessidade fundamental de torná-lo universal. Nas palavras de Cogan: “Se fosse impossível entender o pecado à parte do cristianismo, seria injusto condenar os pagãos por pecados que eles não poderiam forçosamente reconhecer que estavam cometendo”.

Ao insistir na justiça da punição, Dante demonstra que acredita que o inferno deve estar enraizado não na verdade revelada, mas na razão. Para ele, a única razão para condenar qualquer ser humano ao tormento eterno – incluindo aqueles sem qualquer exposição ao cristianismo – é que eles falharam em desprezar os atos que são condenados pelo senso básico, inato e universal do mal da humanidade. 

Para o próprio Dante, o Inferno é de fato apenas o primeiro passo para o paraíso, mas para aqueles que não compartilham sua fé e não procuram ascender ao seu céu, ainda há muito a ser colhido de seu inferno. Ensinar o Inferno de Dante por si só pode enriquecer e inspirar uma sala cheia de judeus ortodoxos setecentos anos após sua morte.

Ensinado assim, o Inferno não deixa nenhum leitor com a impressão singular de Dante como um algoz cruel, ou do cristianismo como todo julgamento e nenhum amor. Leia desta forma, o poder do inferno de Dante está menos em suas imagens macabras do que em sua convocação para engajar nossa humanidade comum.

Ao insistir em que a punição seja justa, Dante demonstra que acredita que o inferno deve estar enraizado não na verdade revelada, mas na razão.



Os Homens Vazios


Um exemplo de como um judeu ortodoxo – um rabino, na verdade! – pode ler o Inferno e encontrar a verdade universal para ensinar, não precisamos procurar além dos portões do inferno. Esses portões infames estão inscritos com as palavras sombrias:

“Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”
 “Abandone toda a esperança, você que entra aqui”.

Dante descreve um espaço sem estrelas preenchido com o som da agonia. Tão estridentes e penetrantes eram os gritos que o peregrino do poema se volta para seu guia e pergunta quem na terra merece tanto sofrimento. Virgílio lhe diz que esses eram os gritos de almas miseráveis ​​que viveram sem louvor ou infâmia e permanecem sem nome na morte. 

Essas são as almas que T. S. Eliot mais tarde chamou de “homens ocos” – aqueles que insistem em sentar na periferia da história e abraçam a neutralidade como um credo. Apesar de não terem cometido nenhum mal, escreve Dante, eles não podem entrar no céu, pois diminuiriam sua beleza. Embora não tenham feito nada de bom, eles também não podem entrar no inferno, pois sua presença daria aos outros moradores uma sensação de glória por terem pelo menos realmente vivido.

Enquanto o fluxo de mortos sem nome, com rostos manchados de lágrimas e sangue, passa pelo peregrino em busca de uma bandeira em branco, Dante chama a atenção de um homem: aquele que fez “a grande recusa”. A maioria dos estudiosos concorda que esse covarde anônimo é Celestine V: o primeiro papa que Dante coloca no inferno e a figura no centro de The Pope Who Quit, de Jon M. Sweeney.

Nascido Pietro Angelerio, Celestino V serviu como papa por cinco meses em 1294 – durante a vida de Dante – e foi, segundo todos os relatos, um verdadeiro santo. Ele era devotado à piedade e procurou livrar o papado da impropriedade. Ao ver a escala da corrupção apostólica, no entanto, ele renunciou ao cargo em busca do que chamou de “uma consciência imaculada”. 

Para Dante, isso foi um crime contra nossa humanidade comum, um crime que não apenas custou a Celestine um lugar no céu, mas o deixou incapaz até mesmo de entrar no inferno. Para Dante, fugir de uma luta com o mal não é uma opção. É um vício desconectado do dogma e não relacionado ao credo, um mal puro que não consegue compreender o propósito da humanidade.


Quando o mal prospera, o silêncio não é uma opção


A poderosa ética incorporada na antecâmara do inferno de Dante domina o Ocidente há sete séculos. Talvez encontre sua expressão mais explícita no espírito americano. Em 1910, formou a espinha dorsal das famosas falas de Theodore Roosevelt em The Man in the Arena, quando ele fala de “essas almas tímidas que não conhecem nem a vitória nem a derrota”. 

Em 1967, estimulou Martin Luther King Jr. a falar fora das Nações Unidas contra a Guerra do Vietnã, quando disse: “Estou aqui porque concordo com Dante, que os lugares mais quentes do inferno são reservados para aqueles que, em um período de crise moral, mantenham sua neutralidade”. Embora seja verdade que esta antecâmara não é tecnicamente o lugar mais quente do inferno, a paráfrase de MLK reflete o espírito desdenhoso e opróbrio da poesia de Dante.

E enquanto meus alunos e eu estudávamos essa grande recusa, reconhecemos uma ética que está no cerne de uma das mudanças mais importantes da Bíblia hebraica: quando Moisés inicialmente resiste à sua convocação para salvar uma nação de escravos e enfrentar um mal Império. Por sete dias, Moisés lutou com Deus, mas cedeu, em um ataque de devoção, à missão de viver como um agente moral. Em um dos momentos mais importantes de sua vida, Moisés percebeu que quando o mal prospera, o silêncio não é uma opção.

Assim, embora fôssemos uma sala cheia de judeus ortodoxos que passaram as primeiras horas do nosso dia imersos na tradição judaica, o Inferno não parecia muito estranho. Embora, até certo ponto, uma leitura do Purgatório e Paraíso de Dante possa colidir com nossos currículos espirituais – levando-nos profundamente ao território cristológico – no inferno de Dante, apesar de todo o seu terror, sentimos sua imaginação moral e encontramos nossa humanidade comum.



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21º. dia, 14 de Março - A Terapia da Esperança,
por Papa Francisco na Audiência Geral de 24.05.2017


Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje gostaria de analisar a experiência dos dois discípulos de Emaús, sobre a qual fala o Evangelho de Lucas (cf. 24, 13-35). 

Imaginemos a cena: dois homens caminham desiludidos, tristes, decididos a deixar para trás a amargura de um vicissitude mal sucedida. Antes daquela Páscoa estavam cheios de entusiasmo: convencidos de que aqueles dias teriam sido determinantes para as suas expectativas e para a esperança do povo inteiro. Jesus, ao qual tinham confiado a própria vida, parecia ter finalmente chegado à batalha decisiva: agora manifestaria o seu poder, depois de uma longa fase de preparação e de escondimento. Era isso o que eles esperavam. Mas não foi assim.

Os dois peregrinos cultivavam uma esperança somente humana, que agora desabava. Aquela cruz erguida no Calvário era o sinal mais eloquente de uma derrota que não tinham previsto. Se deveras aquele Jesus era segundo o coração de Deus, deviam chegar à conclusão que Deus estava inerme, indefeso nas mãos dos violentos, incapaz de opor resistência ao mal.

Assim, naquela manhã de domingo, os dois fogem de Jerusalém. Ainda tinham nos olhos os momentos da paixão, a morte de Jesus; e na alma o pensamento atormentado pelos acontecimentos, durante o repouso forçado do sábado. Aquela festa de Páscoa, que devia entoar o canto da libertação, transformou-se pelo contrário no dia mais doloroso da sua vida. 

Deixam Jerusalém para ir alhures, a uma aldeia tranquila. Têm toda a aparência de pessoas empenhadas em apagar uma recordação que magoa. Portanto, encontram-se numa estrada, andam, tristes. Este cenário — a estrada — já tinha sido importante nas narrações dos evangelhos; agora tornar-se-á cada vez mais relevante, no momento em que se começa a narrar a história da Igreja.

O encontro de Jesus com aqueles dois discípulos parece ser totalmente casual: assemelha-se a uma das numerosas encruzilhadas que se encontram na vida. Os dois discípulos prosseguem pensativos e um desconhecido caminha ao lado deles. É Jesus; mas os seus olhos não são capazes de o reconhecer. E então Jesus começa a sua “terapia da esperança”. O que acontece nesta estrada é uma terapia da esperança. Quem a faz? Jesus.



Em primeiro lugar pergunta e escuta: o nosso Deus não é um Deus intrometido. Embora já conheça o motivo da decepção dos dois, deixa-lhes o tempo para poder sondar profundamente a amargura que se apoderou deles. Daqui surge uma confissão que é um refrão da existência humana: "Nós esperávamos, mas... Nós esperávamos, mas..." (v. 21). 

Quantas tristezas, quantas derrotas, quantas falências há na vida de cada pessoa! No fundo somos todos um pouco como esses dois discípulos. Quantas vezes na vida esperamos, quantas vezes nos sentimos a um passo da felicidade e, no fim, ficamos desiludidos. Mas Jesus caminha com todas as pessoas desanimadas que procedem cabisbaixas. E caminhando com elas, de forma discreta, consegue restituir-lhes a esperança.

Jesus fala com eles sobretudo através das Escrituras. Quem pega o livro de Deus nas mãos não se cruza com histórias de fácil heroísmo, campanhas de conquista impetuosas. A verdadeira esperança nunca é pouco dispendiosa: passa sempre através das derrotas. A esperança de quem não sofre, talvez nem sequer seja tal. Deus não gosta de ser amado como poderíamos amar um general que leva o seu povo à vitória, aniquilando no sangue os seus adversários. 

O nosso Deus é uma chama esmorecida que arde num dia de frio e de vento, e não obstante a sua presença neste mundo possa parecer frágil, Ele escolheu o lugar que todos nós desdenhamos. Em seguida Jesus repete também aos dois discípulos o gesto fulcral de cada Eucaristia: pegou no pão, abençoou-o e, depois de o partir, ofereceu-o. 

Nesta sequência de gestos, não há porventura toda a história de Jesus? E não há, em cada Eucaristia, também o sinal do que deve ser a Igreja? Jesus pega em nós, abençoa-nos, “parte” a nossa vida — porque não há amor sem sacrifício — e oferece-a aos outros,
oferece-a a todos. 

O encontro de Jesus com os dois discípulos de Emaús é rápido. Todavia, nele está todo o destino da Igreja. Narra-nos que a comunidade cristã não está fechada numa cidadela fortificada, mas caminha no seu ambiente mais vital, ou seja, a estrada. E ali encontra as pessoas com as suas esperanças e as suas desilusões, por vezes pesadas. 

A Igreja escuta as histórias de todos, assim como sobressaem do íntimo da consciência pessoal; para depois oferecer a Palavra de vida, o testemunho de amor, amor fiel até ao fim. E então o coração das pessoas volta a arder de esperança. 

Todos nós, na nossa vida, tivemos momentos difíceis, obscuros; momentos nos quais caminhávamos tristes, pensativos, sem horizontes, somente com um muro à nossa frente. E Jesus sempre está ao nosso lado para nos dar esperança, para nos aquecer o coração e dizer: “Vai em frente, estou contigo. Vai em frente”. 

O segredo da estrada que conduz a Emaús resume-se inteiramente nisto: mesmo através das aparências contrárias, continuamos a ser amados, e Deus nunca deixará de nos querer bem. Deus caminhará sempre conosco, sempre, até nos momentos mais dolorosos, nos períodos mais difíceis, também nos momentos de derrota: ali está o Senhor. E esta é a nossa esperança. Vamos em frente com esta esperança! Porque Ele está ao nosso lado e caminha conosco, sempre!




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20º. dia, 13 de Março - Excerto do livro "Imitação de Cristo",
por Thomas Kempis


Capítulo 7
Como devemos fugir à vã esperança e presunção


1. Insensato é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outrem por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo. Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus tua esperança. Faze de tua parte o que puderes, e Deus ajudará tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus, que ajuda os humildes e abate os presunçosos.

2. Se tens riquezas, não te glories delas, nem dos amigos, por serem poderosos, senão em Deus, que dá tudo, além de tudo, deseja dar-se a si mesmo. Não te desvaneças com a airosidade ou formosura de teu corpo, que com pequena enfermidade se quebranta e desfigura. Não te orgulhes de tua habilidade ou de teu talento, para que não desagrades a Deus, de quem é todo bem natural que tiveres.

3. Não te reputes melhor que os outros, para não seres considerado pior por Deus, que conhece tudo que há no homem. Não te ensoberbeças pelas boas obras, porque os juízos dos homens são muito diferentes dos de Deus, a quem não raro desagrada o que aos homens apraz. Se em ti houver algum bem, pensa que ainda melhores são os outros, para assim te conservares na humildade. Nenhum mal te fará se te julgares inferior a todos; muito, porém, se a qualquer pessoa te preferires. De contínua paz goza o humilde; no coração do soberbo, porém, reinam inveja e iras sem conta.


Reflexões


Há em nós dois tipos de bens: uns que estão em nós e são nossos, e os outros que estão em nós, mas não são nossos. Quando digo que temos bens que são nossos, não quero dizer que eles não vêm de Deus, e que nós os temos por nós mesmos; porque, na verdade, por nós mesmos não temos mais do que miséria e o nada; mas quero dizer que são bens que Deus colocou de tal forma em nós que parecem ser nossos. 

Esses bens são a saúde, as riquezas, as ciências e outros semelhantes. Mas a humildade nos impede de gloriar-nos e estimar-nos por causa desses bens, tanto mais que ela não faz mais caso deles do que de um nada e de uma insignificância; e, com razão, pois não são absolutamente bens estáveis e que nos tornam mais agradáveis a Deus; mas instáveis e sujeitos à sorte. 

E mesmo se não fosse assim, há algo de menos seguro do que as riquezas que dependem do tempo e das estações, do que a beleza que perde seu esplendor por menos que nada? Não é preciso mais do que uma dermatose no rosto para tirar-lhe o brilho; e no que diz respeito às ciências, um pequeno distúrbio do cérebro nos faz perder e esquecer tudo o que sabíamos (Ve. e Entretien, III, 325).


Oração


"Meu Senhor Jesus Cristo, que por mim quisestes ser ridicularizado em presença dos judeus, trazendo as marcas de seus escárnios, fazei que eu não me deixe levar pelo estímulo da vanglória, e possa comparecer ao julgamento sob a insígnia dessas marcas místicas" (Opusc., III, 228).



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19º. dia, 12 de Março - "Poder amar é um dom de Deus",
por Papa Francisco na Audiência Geral de 15.03.2017

Bom dia, estimados irmãos e irmãs!

Sabemos bem que o grande mandamento que o Senhor Jesus nos deixou é o de amar: amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente, e amar o próximo como a nós mesmos (cf. Mt 22, 37-39), ou seja, somos chamados ao amor, à caridade. E esta é a nossa vocação mais sublime, a nossa vocação por excelência; e a ela está vinculado também o júbilo da esperança cristã. 

Quem ama tem a alegria da esperança, de chegar a encontrar o grande amor que é o Senhor. No trecho da Carta aos Romanos que há pouco ouvimos, o Apóstolo Paulo alerta-nos: existe o risco de que a nossa caridade seja hipócrita, que o nosso amor seja hipócrita. Então, devemos interrogar-nos: "Quando se verifica esta hipocrisia? E como podemos estar certos de que o nosso amor é sincero, que a nossa caridade é autêntica? Que não fingimos que praticamos a caridade ou que o nosso amor não é uma telenovela: amor sincero, forte..."

A hipocrisia pode insinuar-se em toda a parte, até no nosso modo de amar. Isto verifica-se quando o nosso amor é interesseiro, impelido por interesses pessoais; e quantos amores interesseiros existem... quando os serviços de caridade nos quais parece que trabalhamos são realizados para nos mostrarmos ou para nos sentirmos satisfeitos: "Mas como sou bom!". Não, isto é hipocrisia! 

Ou então quando visamos situações que tenham «visibilidade» para mostrar a nossa inteligência ou a nossa capacidade. Por detrás de tudo isto existe uma ideia falsa, enganadora, ou seja, se amamos é porque somos bons; como se a caridade fosse uma criação do homem, um produto do nosso coração. 

Ao contrário, a caridade é antes de tudo uma graça, um presente; poder amar é uma dádiva de Deus, que devemos pedir. E Ele concede-o de bom grado, se lho pedirmos. A caridade é uma graça: não consiste em fazer transparecer o que nós somos, mas aquilo que o Senhor nos oferece e que nós recebemos livremente; e não se pode expressar no encontro com o próximo, se antes não for gerado pelo encontro com o semblante manso e misericordioso de Jesus.

Paulo convida-nos a reconhecer que somos pecadores e que até o nosso modo de amar é marcado pelo pecado. No entanto, ao mesmo tempo faz-se portador de um anúncio novo, um anúncio de esperança: o Senhor abre-nos um caminho de libertação, uma vereda de salvação. É a possibilidade de vivermos, também nós, o grande mandamento do amor, de nos tornamos instrumentos da caridade de Deus. 

E isto acontece quando nos deixamos curar e renovar o coração por Cristo ressuscitado. O Senhor ressuscitado que vive no meio de nós, que vive ao nosso lado, é capaz de curar o nosso coração: e fá-lo se lho pedirmos. É Ele quem nos permite, não obstante a nossa pequenez e pobreza, experimentar a compaixão do Pai e celebrar as maravilhas do seu amor. Então, compreende-se que tudo o que podemos ver e fazer pelos irmãos é apenas a resposta àquilo que Deus fez e continua a fazer por nós. 

Aliás, é o próprio Deus que, fazendo morada no nosso coração e na nossa vida, continua a aproximar-se e a servir todos aqueles que encontramos todos os dias no nosso caminho, a começar pelos últimos e pelos mais necessitados, nos quais Ele é o primeiro que se reconhece.

Então, com estas palavras o Apóstolo Paulo não quer tanto repreender-nos, como ao contrário encorajar-nos e reavivar a nossa esperança. Com efeito, todos nós fazemos a experiência de não viver o mandamento do amor plenamente ou como deveríamos. Mas também isto é uma graça, porque nos leva a compreender que sozinhos não somos capazes de amar de maneira autêntica: temos necessidade de que o Senhor renove continuamente este dom no nosso coração, através da experiência da sua misericórdia infinita. 

Só assim voltaremos a apreciar as pequenas coisas, as coisas simples, ordinárias; só assim voltaremos a valorizar todas estas pequenas coisas de todos os dias e seremos capazes de amar os outros como Deus os ama, desejando o seu bem, isto é, que sejam santos, amigos de Deus; e ficaremos contentes com a possibilidade de nos tornarmos próximos de quantos são pobres e humildes, como Jesus faz com cada um de nós quando nos afastamos dele, de nos inclinarmos aos pés dos irmãos como Ele, Bom Samaritano, faz com cada um de nós, mediante a sua compaixão e o seu perdão.

Amados irmãos, o que o Apóstolo Paulo nos recordou é o segredo para sermos — uso as suas palavras — o segredo para sermos «alegres na esperança» (Rm 12, 12): alegres na esperança. O júbilo da esperança, pois sabemos que em cada circunstância, até na mais adversa e inclusive através dos nossos próprios fracassos, o amor de Deus não esmorece. Então, com coração visitado e habitado pela sua graça e pela sua fidelidade, vivamos na jubilosa esperança de partilhar com os irmãos, no pouco que podemos, aquilo que recebemos dele todos os dias. 

Obrigado!



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18º. dia, 11 de Março - A Preguiça,
por Pe. Francisco Faus


Um curso de doutrina católica. O conferencista entra na sala, senta-se à mesa e, encarando o público, anuncia: – "Hoje, vamos falar sobre a preguiça".

Imediatamente um sorriso percorre o auditório, e os presentes entreolham-se com regozijo. Talvez tenha sido também um sorriso a primeira reação do leitor ao ler o título deste caderno, e é possível que tenha folheado rapidamente as páginas e examinado o índice com divertida curiosidade.

Podemos ter a certeza de que nada disso teria acontecido se o tema fosse outro. Por exemplo: o orgulho, a ira, a inveja. Todos eles são assuntos que trazem o nome de um dos sete pecados capitais. Por que será então que só a preguiça, dentre os sete, nos faz sorrir?

Os pecados ou vícios capitais têm este nome – “capitais” – precisamente por serem cabeças (capita, em latim) de muitos outros vícios e pecados. São como que as raízes que o egoísmo lança no mais profundo da alma, e que fazem irromper, como plantas peçonhentas, múltiplas ramificações.

Não é preciso insistir muito, por exemplo, acerca dos efeitos, dos ramos amargos da soberba: discórdias, arrogância, ódios e desprezos, humilhações...  Nada disso, certamente, faz sorrir ninguém.

Da mesma forma, ninguém se regozija ao pensar nos frutos azedos da ira (brigas, agressões, divisões, injúrias) ou nos da inveja (críticas ácidas, deslealdades, inquietações constantes) ou ainda na ruína da saúde ou do lar, que com freqüência é o resultado das desordens da gula (embriaguez), da avareza e da luxúria.

Mas quando pensamos nas ramificações da preguiça, não conseguimos apagar de todo aquele sorriso inicial. Parecem ter qualquer coisa de cômico, e ousaríamos dizer até de simpático: correrias matutinas rumo ao emprego, por não se ter acordado na hora certa; cenas de comedieta italiana entre a mulher e o marido, que se entrincheira na poltrona e no jornal para não ter que ajudar; artes de “cola” em estudantes pouco afeiçoados ao trabalho...

Certamente podemos avistar alguns ramos mais retorcidos da preguiça, perante os quais o sorriso murcha: vidas atoladas na mediocridade, por não terem sabido esforçar-se e trabalhar a sério; constante instabilidade de empregos no profissional irresponsável; amarguras causadas por filhos cuja educação os pais descuraram... Tudo isto nada tem de engraçado.

Pois bem, é isto, precisamente, o que nos pode ajudar a entender o que significa o vício capital da preguiça, vício de fundo – como os outros seis pecados capitais – que, brotando da raiz do egoísmo, corrói a grandeza moral do homem.

As confusões, neste tema, procedem de que, de modo imediato, a palavra preguiça nos sugere pensar naquilo que, benevolamente, costumamos chamar de preguicinhas. Parecem-nos apenas minúcias, fragilidades próprias da condição humana, sempre desculpáveis. Mas, entre as pequenas preguiças e a preguiça sem diminutivos, vai uma grande distância.


O que é a preguiça?

 
Existe uma definição muito simples de preguiça, com a qual é fácil concordar: “a resistência ao esforço e ao sacrifício”. Com efeito, o preguiçoso não tem um ideal de perfeição esforçada, mas de facilidade. Mais do que o bem, move-o a vantagem. Podendo seguir uma linha cômoda, não se esforçará por subir a encosta íngreme do aprimoramento, da perfeição.

O preguiçoso contentar-se-á com “despachar’ as tarefas e responsabilidades, sem se importar em deixá-las acabadas. E, à força de se poupar egoistamente ao esforço, chegará a tornar-se um virtuose na arte lamentável de contornar os deveres, de “dar um jeito” – como se diz popularmente – e de outras tantas manhas da moleza.

Será que percebemos o vírus oculto, que anda emboscado por trás dessas atitudes e comportamentos? É, nem mais nem menos, a fuga do ideal – da perfeição –, a deserção do amor. E essa constatação é importante para penetrarmos no âmago da preguiça como pecado capital.

Há duas formas possíveis de situar-se perante a vida e as suas responsabilidades:

–– pode-se encará-la como uma missão – grande, bela e árdua –, que Deus propõe a cada um de seus filhos, e pela qual vale a pena gastar as melhores energias;

–– ou pode-se encará-la com a mentalidade do aproveitador. Para este, o que importa é passar bem, usufruir os prazeres da vida, fazer o imprescindível e não complicar-se. Assemelha-se a um mata-borrão que, quanto mais absorve – quanto mais a sua alma se embebe de egoísmo –, mais se estraga. É característica desses tais “o comodismo, a falta de vibração, que impelem a procurar o mais fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais curto, mesmo à custa de concessões no caminho da fidelidade a Deus[1].

Com muito acerto escreveu um filósofo cristão dos nossos dias que “a preguiça significa, antes de mais nada, que o homem renuncia à altura da sua dignidade: não quer ser aquilo que Deus quer que seja[2]. E, nesta dolorosa renúncia, se destrói.

Desistir dos ideais é desistir de sermos “nós mesmos”. Porque cada um de nós só pode realizar-se de verdade na medida em que luta por ajustar-se àquilo que Deus lhe propõe como meta na vida. Ou porventura pensamos que Deus, Pai e Amor, Sabedoria infinita, nos lançou no mundo às cegas, sem ter em sua mente um plano para nós?

Furtar-se a este plano de Deus, que é a sua Vontade e o nosso ideal, é a mais radical das frustrações. Na vida, o que nos desencanta não são as pequenas ambições insatisfeitas – no plano do sucesso e do dinheiro, por exemplo –, mas os ideais abandonados ou atraiçoados. Deus ofereceu-nos uma oportunidade, e nós a recusamos. "Quantas vezes Eu quis – dizia Cristo com lágrimas, contemplando Jerusalém – e tu não quiseste!" (Mt 23, 37).
 

Uma pista para desmascarar a preguiça
 


Ouvi contar há tempo, a um homem de Deus, a história verídica de um pastorzinho que todos os dias acompanhava o pai, ajudando-o a conduzir o gado para o pasto. Queimava-o o sol e cansavam-no as longas caminhadas, um dia após outro. Aconteceu que chegaram à fazenda uns estudantes para passar as férias. Acordavam tarde, passeavam longamente, prolongavam conversas à sombra das árvores.

Um dia, um desses estudantes, no meio de um passeio vespertino, aproximou-se do garoto, que voltava cansado do pastoreio.

– “Você – perguntou –, que gostaria de ser quando crescer?”.

A resposta, após um relance ao moço e outro à boiada, não se fez esperar:

– “Eu gostaria de ser ou estudante ou boi”. Não andava pelas alturas, aquele menino. Queria uma vida cômoda: o dolce far niente do estudante em férias ou a paz do boi ruminando no pasto. Mas será que nós andamos por maiores elevações? Uma das formas mais comuns da preguiça, sem diminutivo, é justamente a repugnância pelas alturas espirituais e morais. É o que poderíamos chamar a ambição da mediocridade. Quer-se é viver bem, mas sem exageros de esforço nem loucuras de idealismo. Ser bom, ser um “cristão médio”, com a sua dose medida de religião, vá lá. Mas levar o cristianismo a sério e em plena coerência com a fé, isso considera-se fanatismo.

É muito interessante verificar que a sabedoria dos antigos, já desde os primeiros séculos do cristianismo, ao enfocar a preguiça, contemplava quase que exclusivamente o seguinte conteúdo: a resistência a atingir a altura espiritual e moral própria de um filho de Deus, de um cristão.

Na linguagem clássica cristã (de Cassiano a São Tomás de Aquino, passando por São Gregório Magno), o vício capital da preguiça era designado com o nome de acédia [ou acídia]A acédia é fundamentalmente uma tristeza, uma tristeza ácida e fria – daí o nome –, que invade a alma ao pensar nos bens espirituais – na virtude, na bondade, no amor a Deus e ao próximo –, precisamente porque não são fáceis de alcançar nem de conservar. Exigem esforço, renúncia, sacrifício. E o egoísmo se defende. 

A repugnância que sente por tudo quanto é abnegação e doação generosa vai criando depósitos azedos no coração, e acaba transferindo para Deus e para os próprios bens árduos que Deus pede uma fria antipatia, que pode terminar em aversão: “um tédio que acabrunha”, diz São Tomás[3].

É natural que estes mesmos autores insistam no fato de que a acédia se opõe frontalmente àquilo que é a essência da perfeição cristã: o amor. A preguiça detesta o que o amor abraça, entristece-se com o que alegra o amor.

É possível que já tenhamos tido, alguma vez, a experiência desse tipo de tristeza, ao pensar em Deus e nos ideais cristãos, e nos tenhamos perguntado: por que Cristo exige de todos os seus seguidores que se neguem a si mesmos e tomem a cruz (cfr. Mt 16, 24)? Por que insiste na necessidade de perder a vida – de entregá-la – para achá-la (cfr. Jo 12, 25)? Por que assinala como lei áurea do cristianismo um amor ao próximo tão exigente, que deve ser um constante “servir e dar a vida" pelos outros (cfr. Mc 10, 5)? Não seria mais agradável um programa suave, sem cruzes nem renúncias, feito de bondades descomprometidas?

É bem possível que, sem reparar, tenhamos fixado como ideal de vida a honestidade hipócrita do fariseu – não mato, não roubo, pago o dízimo –, aliada à frase que se esgrime como uma fórmula de auto-canonização: “Não faço mal a ninguém”.

Basta uma leitura superficial dos Evangelhos para concluir que isso não basta. Sede perfeitos, assim como vosso Pai celestial é perfeito (Mt 5, 48). O primeiro de todos os mandamentos é este: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mc 12, 29-31).

Quem quiser seguir a Cristo tem que renunciar à vida fácil. Não se pode entrar no Reino de Deus sem um empenho esforçado: "O reino dos Céus – diz Cristo – é arrebatado à força e são os violentos (os que lutam energicamente) que o conquistam" (Mt 11, 12).

Iludem-se os homens quando pensam que levar Deus a sério vai perturbar-lhes a vida, metendo-os num calvário de compromissos, exigências e complicações. Quando, na realidade, o que complica e estraga a vida, com a maior perturbação que existe – o vazio –, é exatamente o contrário: o medo de levar Deus a sério, a apreensão que faz fugir dos compromissos do ideal cristão.

Nunca é por ter-se dado ou sacrificado que um homem se esvazia, mas por ter-se poupado. E dolorosa como uma queimadura a constatação de que os anos vão passando e o vazio vai aumentando. São duras certas horas de solidão, em que parece que o coração reclama: – “Não sei o que está acontecendo comigo, falta-me alguma coisa e não sei dizer o que é”.

A única coisa que acontece é que não vivemos a “nossa” vida – o que ela deveria ser –, mas um substitutivo rebaixado ou uma falsificação. Somente seremos felizes quando realizarmos a Vontade de Deus a nosso respeito, porque só então é que nos encontraremos a nós mesmos.

Aqui temos, pois, uma primeira pista para descobrir a preguiça de fundo: a renúncia à altura. Assim resume Pieper, com traços vigorosos, essa atitude: “A preguiça, como pecado capital, é a renúncia mal-humorada e triste, estupidamente egoísta, do homem à “nobreza que obriga” de ser filhos de Deus[4].

 

Uma segunda pista
 

Se a palavra “bitolado”, da nossa linguagem familiar, tem algum sentido, este sentido adquire feições, olhos e mãos nos personagens – habitantes de minúsculos asteróides – que o Pequeno Príncipe[5] visita na sua viagem sideral.

O acendedor-de-lampiões vive num mundo reduzido a um lampião esguio, que deve acender e apagar sem descanso, a cada volta do seu asteróide. O bêbado povoa solitariamente um pequenino mundo concentrado na obsessão por garrafas cheias e garrafas vazias. Para o rei, viver é poder dizer de boca cheia (quando pode): “Ordeno-te”.

Acontece que o planeta Terra está povoado por inúmeros “homens de asteróide”. Pessoas muito atarefadas, mas inteiramente polarizadas em uma ou duas ocupações, a que reduzem, na prática, todo o seu “mundo”.

Começávamos estas páginas referindo-nos aos que sorriem, ao ouvirem falar de preguiça. Mas esses mesmos – talvez sejamos nós – sentir-se-ão muito aborrecidos se a referência à preguiça lhes for espetada com endereço pessoal: – “Você é um preguiçoso!”. Uma onda quente de revolta subirá à cabeça e à garganta: – “Eu, preguiçoso? Mas se não tenho nem um minuto livre, se trabalho sem folga nem férias... Precisaria, em todo o caso, é de um pouco mais de descanso...”.

Uma pessoa pode ser ocupadíssima... e ter uma profunda preguiça, a preguiça do homem “bitolado”, isto é, daquele que reduziu o ideal, a vida e o dever a apenas um ou dois asteróides. Estes podem ser, para um homem, o trabalho profissional e o cuidado das condições materiais da família; ou, se se trata de uma mãe de família, a atenção do lar e dos filhos, e um emprego de meio-período que permita reforçar o orçamento familiar; ou ainda, no caso do modesto estudante, a freqüência às aulas, acrescida do serviço num banco.

Todas essas pessoas, trabalhadoras e responsáveis, podem estar padecendo, sem saberem disso, a doença da preguiça setorial. Há setores da vida em que realmente se empenham, produzindo muito; mas há outros, muitas vezes mais importantes, que deixam abandonados como o campo do preguiçoso de que fala a Bíblia: "Passei perto da terra do preguiçoso, junto à vinha de um homem insensato: eis que por toda a parte cresciam abrolhos, urtigas cobriam o solo e o muro de pedra estava por terra" (Prov 24, 30).

Não há dúvida de que o quadro completo da missão de um homem ou de uma mulher não se esgota na profissão e na família, por mais que estes sejam setores importantíssimos, primordiais, da sua vida. Deve haver algo mais. Por acaso pode considerar-se realizado alguém que deixou completamente estéril, ou quase, o campo das suas relações com Deus e da sua formação cristã? Pode pensar que cumpre a sua missão aquele que vive de costas para as necessidades espirituais e materiais do próximo?

Seria muito cômodo anestesiar a consciência, pensando: “Não perco tempo, trabalho muito, vivo para o lar...”, e fazer desses deveres mais ou menos bem cumpridos um sedativo para a alma, esquecida dos outros deveres que não cumpre: deveres para com Deus, deveres sociais, responsabilidades em face dos problemas da comunidade humana. Sempre paira sobre os cristãos mornos o que alguém denominou “o perigo das coisas boas[6]: deixar-nos embalar pela satisfação de umas tantas coisas boas que já fazemos, para acobertar o vazio de outras tantas coisas boas que não fazemos, e deveríamos fazer.

Não é infreqüente, neste ponto, ouvir comentários como o do homem casado que se gaba da luta extenuante que se impõe para sustentar a família, mas não se apercebe de que, desculpando-se com a fadiga do trabalho, nem sequer toma conhecimento do dever de educar os filhos, de conversar com eles, de formá-los. Não raro, é o mesmo tipo de pai que estufa o peito ao contar com quanto sacrifício conseguiu dar aos filhos estudos em colégios de nível; e, ao mesmo tempo, nada fez para lhes proporcionar uma boa formação religiosa e moral, muito mais importante que um brilhante aprendizado de álgebra, biologia ou história.

Essas deficiências são reais e freqüentes. É possível que, ao reconhecê-las, sintamos desejos de retrucar: “Tudo isso é certo, mas onde encontrar tempo para tantas coisas? O meu tempo não dá para mais...”.

Como um comentário desse tipo parece objetivo, será oportuno abordar um outro aspecto da preguiça, que pode esclarecer essas aparentes contradições.

 

As máscaras da preguiça

 
Estamos, nestas páginas, deixando de lado as modalidades mais grosseiras da preguiça – sombra e água fresca –, para concentrar a atenção na preguiça sutil, de fundo, que – como já sabemos – pode estar unida a uma grande boa vontade, a muitas ocupações e até à agitação.

Pois bem, uma das características dessa sutil preguiça é a sua rara habilidade – verdadeiro “engenho e arte” – para se desculpar ou se justificar.

A preguiça mostra-se uma artista consumada no uso de diversas máscaras, com as quais se disfarça, apresentando por fora o rosto do dever cumprido, da laboriosidade ou da responsabilidade.

Vale a pena, por isso, passar a examinar algumas das máscaras mais comuns de que a preguiça costuma valer-se.

 
A máscara da atividade


Antes nos referíamos ao espanto com que pessoas de grande atividade questionam a acusação de preguiça: “Eu, preguiçoso?”. E esquecem-se de que o ativismo, o fato de ter o dia atulhado de ocupações e tarefas e agitado pela “correria”, pode ser um grande álibi da preguiça.

Não tenho um minuto livre”, repete-se constantemente. A vida parece um quebra-cabeças, cujas peças jamais se poderão encaixar, porque o tempo é limitado. “Eu bem que quereria fazer tudo, arranjar tempo para toda a gama dos deveres, mas infelizmente não posso”.


Não posso


Estas palavras não são novas. Lembram-nos alguma coisa muito antiga, uma parábola saída dos lábios de Cristo.

Um homem deu uma grande ceia e convidou a muitos. A parábola começa com uma clara luz: Deus é esse “homem”, que prepara um grande convite de Amor – uma vida de Amor na terra e depois na eternidade –, e chama à porta dos corações dos homens: Vinde, tudo já está preparado. Está pronto o plano que preparei para ti, a missão que te proponho realizar no mundo.

Mas o convite do Amor não obtém resposta: "Todos à uma começaram a escusar-se. Todos. E deram as suas razões, razões objetivas e cheias de sensatez: Comprei um campo e preciso ir vê lo; rogo-te que me dês por escusado. Disse outro: Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te me dês por escusado. Disse também um outro: Casei-me e por isso não posso ir" (Lc 14, 16-20).

E o retrato falado dos nossos não-posso: não podemos assumir determinadas responsabilidades e deveres cristãos... porque andamos muito ocupados.

O Senhor não aceita as desculpas. Para Ele não passam de enganos, máscaras da preguiça, que foge de maiores compromissos de amor porque não quer complicações. "O pai de família – acrescenta o Evangelho – ficou irado" (Lc 14, 21). Uma expressão forte, que convida à reflexão. Deus não aceita as nossas desculpas, e isto porque o não-posso, a maior parte das vezes, significa simplesmente um não-quero.

A preguiça começa por não querer pensar. Há deveres sobre os quais – por medo do sacrifício – “nem se cogita”. Arremedando a frase “viver é muito perigoso” do protagonista de Grande Sertão: Veredas[7], poderíamos dizer que, para alguns, “pensar é muito perigoso”. Resistem a enfrentar seriamente alguns deveres, porque podem vir a impor-se-lhes como uma obrigação de consciência. Por isso, preferem tapar a vista com um pano – a afirmação prévia de que “não dá” –, antes de terem sequer começado a refletir.

Deus, pelo contrário, diz que dá. Tudo aquilo que é expressão da vontade divina, do ideal do cristão, é possível. Depende da nossa boa vontade, ou melhor, da nossa vontade boa, disposta a abraçar e a amar, sem regatear sacrifícios, a vontade de Deus.

Todos temos a experiência de que o nosso querer torna-se poderoso quando há um verdadeiro interesse, ou quando há um verdadeiro amor.

É surpreendente verificar o que acontece, por exemplo, core certas pessoas agoniadas pela “absoluta falta de tempo”. Um belo dia, o amigo, aflito pelo excesso de trabalho, comunica-nos com expressão radiante: – “Sabe que estou fazendo um curso de alemão? É ótimo. São só quatro dias por semana, das sete às dez da noite. E, depois, é quase certo que vou arranjar um emprego numa multinacional..." O ouvinte sente vontade de dizer: “Mas, se há um mês você me disse que não tinha nem meia hora por semana para ensinar o catecismo a seus filhos, e que lhe seria quase impossível conseguir cinco minutos diários para ler o Evangelho...”.

Produziu-se um milagre, por obra e graça do interesse. Quem não “podia” fazer o que, na realidade, não interessava ao seu coração egoísta, agora pode dedicar sem problemas 12 horas semanais à gramática alemã.

Será preciso lembrar os “milagres” que, neste mesmo âmbito do tempo, é capaz de realizar o amor? Uma pessoa apaixonada cria tempo, inventa-o, multiplica-o... e acaba “encontrando” tempo para estar com quem ama.

Seria muito bom que cada um de nós revisasse, sinceramente, o que há por trás dos nossos não-posso. Não demoraríamos a descobrir, com evidência, que se trata de uma falta de interesse ou de uma falta de amor. Não vai ficando, assim, mais clara a estreita relação da preguiça com o "amor do bem" de que tanto falam os clássicos cristãos?

 
A máscara da ordem 


Para começar, não nos esqueçamos de que a ordem é uma virtude, e de que essa virtude é arma específica de combate contra a preguiça. Sobre a virtude da ordem, falaremos mais na segunda parte. Agora, detenhamo-nos na ordem viciada, que se transforma em máscara da preguiça.

Para isso, pode ajudar-nos reparar em que há dois possíveis tipos de ordem, a que poderíamos chamar, respectivamente, ordem defensiva e ordem oblativa.


Ordem defensiva 


Há pessoas que fazem da ordem uma armadura de defesa pessoal. São muito organizadas, até nos mínimos detalhes. Aproveitam bem o tempo. Mas o seu esquema é intocável. Fabricaram para si uma espécie de trilho de aço, por onde deslizam mecanicamente, e não toleram que nada interfira com os planos que traçaram, tão egoístas e tão cômodos.

Pobre da irmãzinha caçula que se atreva a pedir esclarecimentos sobre um teorema ao irmão mais velho, modelo de seriedade escolar, durante o sacrossanto “horário de estudo”. Que se cuide também a esposa ousada, que timidamente peça ao marido que se desvie um instante e pare na quitanda, afastando-o do trilho da sua intocável rotina. Ou o filho, que sente necessidade de comentar com o pai um acontecimento importante de que acaba de ser protagonista, enquanto o pai está realizando a sagrada tarefa de colar-se ao televisor, porque, após um dia estafante, “tem o direito de descansar um pouquinho” (um pouquinho, que podem ser horas e horas inúteis diante do aparelho).

A ordem não pode ser uma barricada defensiva, para ter a vida mais tranqüila. A ordem que é virtude, é um meio para assegurar uma entrega mais perfeita ao cumprimento dos deveres de cada dia, deveres que, sem ordem, sem previdência, sem uma seqüência prudente e organizada, ficariam esquecidos ou prejudicados.

Essa é a ordem oblativa (de oblação: oferenda, doação). Uma ordem que é reflexo da disposição generosa do coração: quer fazer e dar-se mais e melhor. Por isso, quando fora da ordem prevista se apresenta a oportunidade de fazer coisas de mais valor – e que há de mais valioso do que dar-se, com amor, ao próximo? –, a alma generosa não hesita: sai do seu trilho, e atende a esse apelo do amor com alegria. Segue a ordem de Deus – a que Deus vai sugerindo –, consciente de que é melhor do que a sua, sem ver interferências, sobrecargas ou perturbações nesses chamados divinos que lhe modificam os planos.


A máscara do cansaço


Além da máscara da falsa ordem, a preguiça utiliza-se habilmente da máscara do cansaço, para proclamar com a consciência tranqüila: – "Não posso mais, não agüento mais”. A fim de percebermos melhor os contornos dessa máscara, penetremos por uns instantes – a título de exemplo – na intimidade de um apartamento imaginário, após o expediente de trabalho.

O chefe de família chegou, curvado sob o fardo do dia, com uma palidez que inspira compaixão e uma carranca que sugere distâncias. Desaba na poltrona, pega no jornal e sussurra com um fio de voz: “Estou exausto., podia trazer-me os óculos?”. Nessa mesma hora toca o telefone, e a custo o protagonista se arrasta até o aparelho: – “Alô! . . . Como é? Mas vocês arranjaram mesmo o campo do Clube Tal? E eles vão ligar a iluminação! ... Não, não! É para já, vou voando!”.

Num instante, a família descobre, espantada, que o chefe do lar tem as faculdades do Superman: um novo homem dinâmico surge na sala, apanha chuteiras e outros apetrechos, e se atira ao elevador, enquanto comenta brincalhão: – “Neste time de amigos, há um senhor de 65 anos que corre o tempo todo pelo campo.     Idade não é documento...”.

A câmera indiscreta poderia ter focalizado também a dona de casa, e a cena filmada seria muito parecida, apenas com a diferença de que o incentivo, em vez de ser um bom jogo de futebol, poderia ser “uma liquidação de roupas literalmente fabulosa e a preços incríveis”. Bastaria esta frase mágica para fazê-la deixar de lado muitos cansaços.

O cansaço é uma coisa muito especializada. Sempre que se pensa nele, é muito conveniente perguntar: “Cansaço, para que coisas?”. Porque todos somos especialistas em determinados cansaços – cansaço “para” rezar, estudar, atender os desejos dos outros, responder cartas, etc. –, que não passam de máscaras da preguiça.

E é que, ao lado da fadiga real, produzida pela sobrecarga de verdadeiros esforços, há uma outra fadiga, um outro cansaço, produzido pelo afrouxamento da fibra moral. Este último – a fadiga da alma – é o cansaço que invade os que cumprem os deveres de má vontade, sem amor; é o cansaço dos que vivem reclamando por tudo e por nada, sonhando sempre com situações ideais que jamais irão dar-se; dos que não querem sacrificar-se; dos preguiçosos, em suma, daqueles a quem o bem, o amor e o dever enfastiam, porque exigem sacrifício.


A máscara dos bons desejos


Na Bíblia, no livro dos Provérbios, encontra-se uma frase breve, que tem muita substância: "Os desejos matam o preguiçoso" (Prov 21, 25).

Existem preguiças que se manifestam por uma recusa sumária: não quero, não posso. Mas há outras que se enfeitam com as vestes dos bons desejos, desejos ineficazes, que nunca chegam a traduzir-se em realidades.

Não é que a pessoa “não queira”. Mas também não “quer”. Somente deseja. "Quer e não quer o preguiçoso", diz ainda o livro dos Provérbios (Prov 13, 4).

O desejo-máscara é mais um truque da preguiça para enganar a consciência. Aos imperativos da consciência – deves fazer, deves dar mais, deves enfrentar isto ou aquilo –, a preguiça responde, com aparente sinceridade: “Sim, é mesmo, eu desejaria tanto fazer isso tudo...”.

Se prestarmos atenção, perceberemos que o tempo verbal que a preguiça prefere é o condicional – quereria, desejaria –, nunca o presente – quero! Já há muitos séculos, um dos mais antigos teólogos da Idade Média, Ràbano Mauro, formulava a seguinte definição da preguiça: “torpor da mente, que negligencia começar a prática do bem[8].


Desejos condicionais 


As “condições” que impedem o tempo presente, e portanto a ação, costumam ser de dois tipos.

Em primeiro lugar, o bom desejo esbarra com a chamada “falta de jeito”. Nós, que somos habitualmente tão vaidosos, e prezamos as nossas qualidades acima do seu valor, subitamente nos sentimos invadidos por uma estranha humildade: “Gostaria tanto de fazer meditação bem feita, de realizar apostolado, de difundir a doutrina cristã, mas infelizmente não tenho jeito, não nasci para isso”.

Alguém um tanto rude sentir-se-ia tentado a comentar: não é falta de jeito, é falta de vergonha. Mas como isso é menos delicado, será melhor dizê-lo de outra forma: é falta de vontade, de sinceridade.

Todos temos “jeito” – ou podemos ganhar “jeito” – para as virtudes, para o bem, para as coisas que pessoalmente Deus nos pede. Nesta matéria, pode-se dizer também que a função cria o órgão. Basta começar, basta iniciar sinceramente o esforço, e a capacidade aparece. Será maior ou menor, mas sempre será útil e eficaz. Principalmente porque Deus não deixa nunca de auxiliar a quem se esforça com boa vontade. Também os antigos mestres da teologia cunharam um adágio a esse respeito: “Deus não nega a graça a quem faz o que dele depende”.

Em segundo lugar, tão perigosa como a “falta de jeito” é a desculpa de quem sempre espera pela situação, a época ou as circunstâncias ideais para levar à prática os seus bons desejos.

Esse afirma com convicta persuasão que quer, que quer mesmo. Agora, porém, não é o momento propício para levar à prática o desejo. Quando mudarem as circunstâncias e houver condições favoráveis, então sim.

Agora – diz o preguiçoso – estou com tantos problemas na cabeça, que se pegasse num livro de formação cristã, com o propósito de dedicar todas as noites quinze minutos à sua leitura, não aproveitaria nada. Quando esta azáfama acalmar, então...”.

Agora – afirma outro –, ainda não me sinto em condições de fazer uma boa confissão. Deixe que eu amadureça, fortaleça as minhas resoluções, que ganhe mais certeza de não reincidir, e então...”. Então? Esquece-se de que não há nada tão forte e eficaz quanto a graça do Sacramento da Penitência, para robustecer a vontade com o vigor da graça divina, e permitir a superação dos problemas.

Agora? – perguntará um terceiro –. Será que não percebe que estou sob a pressão do cursinho e os apertos do vestibular? Vamos deixar para o ano que vem, porque agora não conseguiria levar a sério a tarefa que me propõe...”.

Agora! Acontece, porém, que o tempo real se chama sempre agora. Quem adia, recusa. O tempo ideal, o momento realmente bom, não chega jamais para o preguiçoso.

São transparentes, neste sentido, os seguintes pensamentos do livro Caminho: “Amanhã! Algumas vezes, é prudência; muitas vezes, é o advérbio dos vencidos”. “Porta-te bem ‘agora’, sem te lembrares de ‘ontem’, que já passou, e sem te preocupares com o ‘amanhã’, que não sabes se chegará para ti”. “...’Agora’ não é demasiado cedo... nem demasiado tarde[9].

Uma grande parte da nossa vida se evapora em desejos irrealizados, porque a preguiça faz confundir o tempo propício com o tempo cômodo. Tempo propício, tempo oportuno, é o que Deus vai marcando. Quando Ele nos inspira um bom desejo, quando acende uma nova luz na alma, esse é o momento propício para começar – quanto antes –, porque é a hora da graça divina. Protelar o começo, à espera do momento mais cômodo, é matar oportunidades e garantir esterilidades.

Só quando nos convencermos de que o “bom momento” é quase sempre o “mau momento” – aquele que a nossa preguiça julga mau – é que cumpriremos a Vontade de Deus e produziremos frutos. Com muita sensatez, São Gregório Magno sentenciava: “Quando não queremos fazer oportunamente as coisas que podemos, pouco depois, quando queremos, já não podemos mais[10].

Um relance em perspectiva para a parcela de vida que já gastamos, talvez possa ajudar-nos a compreender a importância da prontidão na realização dos bons desejos. Um balanço do passado pode fazer-nos entender o perigo de que a vida vá ficando como um grande quarto de despejo, em cujas prateleiras se amontoam, como frascos quebrados, inúmeros bons desejos que a preguiça inutilizou.

E com estas considerações, pomos um ponto final ao exame das máscaras da preguiça. Resta-nos agora mudar o ângulo das nossas reflexões, e perguntarmo-nos pelos remédios da preguiça. Naturalmente, o remédio de todo o vício é sempre uma virtude. Qual é, então, a virtude específica que se opõe à preguiça?
 

Diligência
O antídoto da preguiça


Se abrirmos o pequeno catecismo da nossa primeira comunhão, é quase certo que encontraremos uma pergunta acerca dos pecados capitais, seguida da lista dos seus sete nomes. E, a seguir, uma outra pergunta esclarecerá quais são as virtudes opostas aos vícios capitais. Nessa segunda pergunta, estarão impressas certamente estas três palavras: contra preguiça, diligência.

A diligência é o antídoto específico da preguiça. Onde a preguiça cava um abismo, a diligência ergue uma montanha. E o que é a diligência?

Georges Chevrot, no seu livro sobre “As pequenas virtudes do lar”, reproduz, com muito bom humor, o seguinte diálogo. Um garoto, ouvindo falar em diligência, mostra logo com um brilho nos olhos a sua sabedoria histórico-cinematográfica: – “A diligência – diz – era uma carruagem puxada por cavalos, que se usava no faroeste antes de haver automóveis..."

– “Muito bem, meu rapaz, você sabe muito – retruca o pai –; também deve saber que lhes foi dado esse nome porque iam muito depressa. Para a época, evidentemente[11].

Os pais quase sempre têm razão. Mas, neste caso, o pai da história, ao aprofundar na explicação, deu uma pequena escorregadela.

Pode ser que, àqueles trambolhos rolantes, acostumados a fugir dos índios nos desertos do Arizona, tivessem dado o nome de diligência em homenagem à sua rapidez. Mas o que é certo é que a palavra diligência, na sua origem, nada tem a ver compressa ou velocidade.

Na realidade, diligência é uma palavra que vem diretamente do verbo latino diligere, que significa amar. De modo que, na língua-mãe do Lácio, diligens (diligente) significava aquele que ama.

Isto é da maior importância para o tema que nos ocupa. Dizíamos que a acédia – a preguiça – é o contrário do amor, pelo fato de sentir aversão e tristeza por aquilo mesmo que atrai e alegra o amor: o bem, mesmo que seja árduo e difícil.

Em confronto com a preguiça, a virtude da diligência consiste no carinho, alegria e prontidão (coisa diferente da pressa) com que pensamos no bem e nos prontificamos a realizá-lo da melhor maneira possível.

Poucas descrições da diligência existem, mais ricas de conteúdo, do que a contida numa das homilias de Mons. Escrivá, que transcrevemos a seguir:

Quem é laborioso aproveita o tempo (...). Faz o que deve e está no que faz, não por rotina nem para ocupar as horas, mas como fruto de uma reflexão atenta e ponderada. Por isso é diligente. O uso normal dessa palavra – diligente – já nos evoca a sua origem latina. Diligente vem do verbo diligo, que significa amar, apreciar, escolher alguma coisa depois de uma atenção esmerada e cuidadosa. Não é diligente quem se precipita, mas quem trabalha com amor, primorosamente[12].

Se quiséssemos retratar o anti-preguiçoso típico, é bem provável que imaginássemos a figura de um personagem acelerado e febril, um incansável trabalhador impelido por uma sorte de movimento contínuo. E, no entanto, não é assim. É mais fácil encontrar agitados entre os preguiçosos que entre os diligentes. Paradoxalmente, a diligência está – num certo sentido – mais perto do “devagar”, e a preguiça mais perto do “depressa”. Mas esse “certo sentido” precisa de uma explicação.

Reparemos que as palavras de Mons. Escrivá, acima citadas, esclarecem que uma pessoa é diligente quando aproveita o tempo “como fruto de uma reflexão atenta e ponderada”; recordam, ao mesmo tempo, que só há amor – diligência – quando se sabe “apreciar, escolher alguma coisa depois de uma atenção esmerada e cuidadosa", e concluem alertando: "Não é diligente quem se precipita”.

Muitas pessoas oferecem a imagem de um ativismo desenfreado. Não param um instante. Vão de cá para lá, assoberbados de tarefas, numa incessante corrida atrás do tempo, que sempre se lhes torna escasso. As ocupações os envolvem como que num redemoinho. lá não são donos de si mesmos. A sua atividade – ativismo, deveria chamar-se – domina-os como um cavalo sem freio, do qual perderam completamente as rédeas.

Lembram a história daquele oficial de artilharia, inexperiente nas lidas da equitação, que certa vez quis fazer uma experiência: pediu um cavalo, acomodou-se como pôde na sela e olhou na direção noroeste, para a localidade aonde desejava dirigir-se. Meia hora depois, no mais perfeito rumo sudeste, um grupo de oficiais observa o trotezinho desajeitado do cavalo e o olhar espavorido do colega que se lhe agarra ao pescoço, e indagam com ar brincalhão: – “Para onde é que você está indo?” – “Eu – responde o atribulado cavaleiro – ia para tal lugar, mas não sei para onde é que este cavalo me está levando...”.

Muitos cavaleiros da agitação poderiam dizer a mesma coisa. Donas de casa que parecem uma maria-fumaça sem breque, descendo descontroladas a ladeira do dia, sacolejadas por tarefas, saídas, telefonemas, problemas de escola, pagamentos, etc., literalmente arrastadas para o abismo de um permanente nervosismo e uma canseira atordoada. Ou profissionais tensos, em constante disparada, sem tempo para pensar, cuja alma de robô faz deles, mais do que trabalhadores, devoradores de tempo, autênticos “cronófagos”.

Homens e mulheres desse estilo não são diligentes. São apenas agitados. Não percebem que, por trás do seu vaivém descontrolado e fatigante, estão sendo atacados por uma forma perniciosa de preguiça: a preguiça espiritual, a preguiça mental.

O nosso século – escreve Jacques Leclercq – orgulha-se de ser o da vida intensa, e essa vida intensa não é senão uma vida agitada, porque o sinal do nosso século é a corrida, e as mais belas descobertas de que se orgulha não são as descobertas da sabedoria, mas da velocidade. E a nossa vida só é propriamente humana se nela há calma, vagar, sem que isto signifique que deva ser ociosa (...). Acumular corridas e mais corridas não é acumular montanhas, mas ventos[13].

 

A diligência exige calma

 

A mão que segura e governa as rédeas da atividade é a reflexão. Só quem pensa serenamente nos seus deveres, na maneira de conjugá-los, nas prioridades que entre eles deve estabelecer, nos passos necessários para executá-los, é que possui o governo da ação e do tempo. Esse saberá aproveitar diligentemente cada um dos seus dias, e não será uma marionete puxada aos solavancos pelas cordas do nervosismo e da imprevidência.

Uma atividade madura e eficaz exige – como a planta necessita da terra em que se enraíza – o solo fecundo da serenidade e da meditação. É preciso que aprendamos a parar e a perguntar-nos: "Por que estou fazendo as coisas? Como é que as estou fazendo? Atiro-me cegamente numa correnteza de ocupações desordenadas? Estou fazendo realmente o que devo e do melhor modo?"

Quando alguém se questiona assim, o impulso instintivo da preguiça será voltar à carga e repetir: “Não tenho tempo, não posso parar, não consigo um mínimo de tranqüilidade, o tumulto das ocupações não me ‘deixa’ meditar...”.

Na verdade, quem não nos deixa meditar é a preguiça. É mais fácil escorregar pelo tobogã da rotina, mesmo que seja uma rotina febril, do que ter a coragem de se enfrentar consigo próprio, agarrar com firmeza o leme da vida e controlar energicamente o rumo da navegação.

É por isso que a diligência pressupõe uma “atenção esmerada e cuidadosa” para “apreciar” o valor dos deveres a cumprir, e para os “escolher” conscientemente, “como fruto de uma reflexão atenta e ponderada”.

O homem moderno é pobre em interioridade. A ação não lhe nasce de dentro. Medita pouco e quer abranger muito. Então é quase inevitável que num dado momento, talvez quando já chegou longe demais, se lhe tornem claras, como um soco na consciência, as palavras de Santo Agostinho: “Corres bem, mas fora do caminho”.

Contaram-me certa vez a história de um homem de idade avançada, que dedicara a vida a uma brilhante atividade empresarial. Chegou a aposentadoria, e um dia – para matar o tempo – pegou no catecismo elementar de um de seus netinhos. Abriu a primeira página e começou a ler: “Quem é Deus?”... E depois: “Para que foi criado o homem? O homem foi criado para conhecer, amar e servir a Deus neste mundo...”. Duas grossas lágrimas rolaram-lhe pela face: – "A minha vida foi vazia. Fiz muitas coisas, mas esqueci-me da única que valia a pena”.

Talvez para que essa lição não fosse tardiamente aprendida é que Jesus dirigiu a Marta, em Betânia, aquela afetuosa censura: "Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada" (Lc 10, 39 ss).

E, qual era a melhor parte, que Jesus contra punha ao ativismo inquieto de Marta e aos seus queixumes? Era a atitude de sua irmã Maria, tal como a descreve essa passagem do Evangelho de São Lucas: "Maria, sentada aos pés do Senhor, ouvia a sua palavra".

É evidente que Jesus não censura o trabalho de Marta – Ele que amou tanto o trabalho no lar de Nazaré –, nem sugere substituí-lo por uma pura passividade contemplativa. O que faz é marcar claramente a diferença que existe entre “muitas coisas” e “uma só coisa necessária”.

A todos, Deus nos pede que façamos muitas coisas. Mas a única verdadeiramente necessária é que nos coloquemos sinceramente junto d’Ele – muitas vezes – e escutemos o que tem a dizer-nos. Assim, as “muitas coisas” unificam-se em “uma só coisa”: trabalhar cumprindo a Vontade de Deus.

Todos deveríamos ter, fossem quais fossem as nossas ocupações, uns minutos diários de calma e recolhimento para parar, pensar, orar e procurar enxergar o melhor modo – o que esteja mais de acordo com Deus – de organizarmos e realizarmos as nossas tarefas.

 

Meditar para agir

 

Faz o que deves”, para um cristão, não é o simples imperativo do dever, da obrigação. É a Vontade do seu Senhor. O que é que Deus quer que eu faça em primeiro lugar? Quais são as tarefas prioritárias no dia de hoje, aos olhos de Deus? Isto é o que interessa, o verdadeiramente “necessário”.

Pensando friamente no dever, poderíamos chegar todos os dias à noite e acalmar a consciência, dizendo-nos: “Não fiz outra coisa senão trabalhar”, seja na fábrica ou no escritório, no lar, na escola ou onde quer que se cumpra a obrigação cotidiana.

Em face de Deus, porém, as coisas são diferentes. O Senhor nunca vai sugerir-nos que abandonemos ou descuidemos as nossas obrigações. Mas freqüentemente, se soubermos escutá-lo, dirá: hoje, o que é prioritário para ti é dar o passo decisivo para te reconciliares com o teu marido, e acabar de vez com esse mutismo causado pelo teu orgulho ferido; hoje, não deixes de procurar, lá no escritório, um momento propício para conversar com esse colega que anda cada vez mais desorientado e precisa de uma palavra amiga que o encaminhe; hoje, aproveita o intervalo do almoço, e vai consultar com um sacerdote esse problema de consciência que te atormenta, e cuja resolução já adiaste demais; hoje, começa a pôr em prática o propósito de te levantares antes, de rezar a oração da manhã com pausa e ler umas palavras do Evangelho, que sejam luz para o coração ao longo do dia...

Mas essa voz, essas “palavras” do Senhor, só podem ser ouvidas – é preciso insistir neste ponto – se soubermos recolher-nos em silêncio na presença de Deus, pensar sinceramente na nossa vida e fazer oração.

Todos os cristãos deveríamos estabelecer e manter – e defender como algo de sagrado – pelo menos dez ou quinze minutos diários dedicados à meditação e ao exame da vida na presença de Deus: de manhã, antes de iniciar as atividades; ou pouco antes de recolher-nos para descansar; ou aproveitando a possibilidade de visitar uma igreja numa hora tranqüila, quando o silêncio do templo convida ao diálogo íntimo com Deus... Porque é nesses momentos que a alma, com a graça divina, se torna transparente, se liberta da terrível força centrífuga do ativismo, e consegue voltar para o seu centro, esse “centro da alma” de que falam os místicos, onde se encontra com Deus. Para quem quer escutá-lo, aí Deus sempre fala.

E a voz de Deus – como antes lembrávamos – é a que nos esclarece as prioridades e ajuda a hierarquizar, pela ordem de importância, os deveres a cumprir. Assim, estamos em condições de “escolher” com “atenção esmerada e cuidadosa”. Passamos a ser diligentes.

É importante, neste ponto, perceber que o fato de um dever ser prioritário não significa, via de regra, que se lhe tenha que dedicar maior quantidade de tempo. Há duas maneiras de dar prioridade a alguma obrigação, sem necessidade de prejudicar o tempo exigido pelas ocupações habituais.

Em primeiro lugar, vive-se uma tarefa como prioritária quando se dá importância primária à qualidade com que se realiza. Assim, a um homem que deve trabalhar por longas horas para sustentar a família, Deus muitas vezes lhe sugerirá: no dia de hoje, é prioritário dar ouvidos às preocupações da tua esposa, dedicar uma palavra de estímulo àquele filho. Isto não significa que Ele nos peça um tempo de que não dispomos. Pede-nos, sim, que, dentro do pouco tempo disponível, demos maior qualidade – qualidade de carinho, de intensidade de interesse, de afabilidade – ao relacionamento com os da nossa casa. E isto é sempre possível.

Há ainda uma segunda maneira de dar prioridade a um dever, cuja importância percebemos meditando na presença de Deus: a prioridade cronológica. Não a que consiste – repitamos de novo – em lhe dedicar longo tempo. Mas a que consiste em fazê-lo quanto antes.

Pensemos, a esse respeito, na facilidade com que empurramos para depois deveres que certamente julgamos primordiais. Temos consciência de que alguma coisa é importante e não pode ser largada; mas iludimo-nos, dizendo: “Mais tarde”; ou então: “Logo que me sobrar um pouco de tempo”. Infelizmente, esse tipo de reações é freqüente quando se trata de deveres para com Deus: missa dominical, oração, etc., ou de deveres relacionados com o serviço do próximo.

Seria lamentável que reservássemos para esses deveres, que consideramos importantes – e que são ressonâncias de apelos divinos –, somente as sobras do tempo. No entanto, é isto o que fazemos com freqüência: deixar o refugo do nosso tempo para as exigências do amor de Deus e do amor ao próximo. E aí não há diligência, porque não há amor. A diligência acha sempre o modo de preservar as precedências. A diligência ama o antes e detesta o depois.



A diligência exige ordem

 

Estabelecer prioridades é uma das formas mais nobres da virtude da ordem: é a ordem da mente e do coração. Nos parágrafos anteriores, examinamos a necessidade de hierarquizar conscienciosamente o conjunto dos nossos deveres, abrindo espaços para todos e garantindo-lhes as precedências.

Mas, para além dessa ordenada hierarquia de preferências, o homem diligente caracteriza-se pela prática da ordem no seu sentido mais simples e corriqueiro: a organização das atividades e do tempo dentro dos horários de cada dia, a adequada planificação.

Falar nessas palavras – organização, planificação – evoca de imediato, nos tempos que correm, a frieza empresarial da produtividade e da eficiência. Parecem soluções muito boas para a indústria e o comércio, e muito ruins para o coração.

Será possível falar-se em planejamento e medições de horário quando se trata de coisas de amor? Porque, no fundo, é de coisas de amor que estamos falando. Ter um horário fixo para rezar ou para ler um livro de espiritualidade, reservar tempos e horários certos para trabalhos apostólicos... tudo isto não soa a constrangimento, formalismo e abafamento da espontaneidade do espírito?

Muitos pensam assim, e isso acontece porque não compreendem o verdadeiro sentido da virtude da ordem, uma virtude que precisa ser resgatada dos preconceitos que a desmerecem. Se não a reabilitarmos no nosso mundo de valores, veremos como a espontaneidade do amor e dos bons propósitos se desvanecerá em ilusões e omissões. Vejamos um pouco mais de perto este tema.

Dizíamos nas páginas anteriores que existe uma ordem negativa, a que chamávamos ordem defensiva. Não passa da carapaça com que se protege o egoísta. Bem sabemos que essa ordem pode tornar-se doentia e atingir requintes de neurose, de mania. Talvez já tenhamos conhecido pessoas que ficavam transtornadas porque alguém – esposa, filho, empregada – tinha tido a ousadia de deslocar em poucos centímetros a posição exata que um livro devia ocupar na mesa do escritório. 

Da mesma forma que não faltam os que dramatizam qualquer interferência que lhes altere o horário de sono, ou o fim de semana cuidadosamente planejado. Isto não é virtude, é doença ou egoísmo. Como não é virtude a ordem dos escravos da eficiência, que sobre o altar da “produtividade” ou do “sucesso” profissional sacrificam Deus, a saúde, a família e as amizades.

A virtude da ordem é outra coisa: por ser uma das faces da diligência, é uma maneira de praticar o amor.

Se nos perguntássemos pelos traços mais essenciais do amor, com certeza todos nós coincidiríamos em dois deles:

– primeiro: amar é querer bem, o que significa, por um lado, querer mesmo, querer de verdade; e, por outro, querer fazer o bem e tornar feliz – ou agradar – a pessoa amada;

– segundo: amar é dar, ou melhor, dar-se. Não é a procura interesseira de si mesmo, através do prazer, das satisfações ou das compensações obtidas dos outros.

Procuremos aplicar estas idéias, simples e transparentes, a dois exemplos vivos, que ilustram o que é a ordem nascida da diligência.

Um homem está habituado a viver à margem do lar. Mulher e filhos vêem chegar todas as noites um fugaz visitante cansado e mal-humorado, que só deseja não ser incomodado. Chega tarde, não por necessidade, mas porque se entretém inutilmente com o serviço, ou prolonga o expediente em conversas de bar com os amigos.

Um belo dia sente a voz da consciência. Compreende que não está dando amor aos seus. E resolve fazer uma pequena modificação importante: encerrar o trabalho na hora certa e chegar a casa, no máximo, até às 18:00 horas, para assim dedicar-se mais à família. Faz o propósito e o cumpre. Pois bem, este ato de ordem é um ato de amor: porque quer sinceramente o bem dos outros, e concretiza o modo de dar-se.

Vejamos um segundo exemplo: um estudante (um desses católicos “comuns”, que vai à Missa “quando dá”) entende num dado momento a importância da oração. Como é possível – diz de si para si – amar a Deus e não falar com Ele, não ter um mínimo de intimidade. Antes, pensava vagamente que a oração era uma coisa boa, e estava disposto a fazê-la – como tantos outros – “quando tiver vontade”, “quando sentir” ... Agora, quer mesmo fazer oração, e reserva para isso um tempo diário, fixo e determinado. Porque quer mesmo, define um horário que garanta esse seu querer. Com isto, já está começando a amar, e o seu amor será mais completo quando se determinar a dar a Deus todos os dias, sem falta, esse pedaço do seu tempo – uns minutos de oração –, sem calcular se gosta ou tem vontade, pensando só em agradar a Deus.

Convençamo-nos de que a ordem e a disciplina que a ordem estabelece – quando brotam da meditação, da oração – não asfixiam o idealismo, a paixão nobre ou o amor. Pelo contrário, canalizam-nos e os efetivam. Naturalmente, desde que a paixão nobre, o amor e o ideal existam e sejam uma força poderosa da alma. A ordem está a serviço dessa força, não a substitui.

Como são traiçoeiras as faltas de ordem, essas “preguicinhas” que tanto nos fazem sorrir. Parecem coisa de nada, e podem vir a ser coisa de muito. Um simples atraso, um descuido, um adiamento escorado numa boa desculpa... são outros tantos modos de fazer murchar os melhores propósitos e os mais belos ideais. Basta uma “pequena preguiça” na hora de levantar, para que a oração ou a comunhão sejam abandonadas, ou para que o trabalho seja enfrentado atabalhoadamente e sem garra.

Façamos um plano de vida, bem meditado e bem distribuído, que crie canais efetivos para todos os nossos desejos de fazer o bem; vivamos fielmente esse plano, e então entenderemos por experiência o sentido destas palavras: “Quando tiveres ordem, multiplicar-se-á o teu tempo e, portanto, poderás dar maior glória a Deus, trabalhando mais a seu serviço[14].

 

A Laboriosidade, irmã da Diligência

 

Trabalhando mais”. As palavras que acabamos de citar fazem pensar num dos aspectos mais essenciais da diligência: a virtude da laboriosidade, que é como uma irmã gêmea da diligência.

Chama-se laborioso àquele que ama o trabalho, e por isso se esforça por trabalhar muito e bem. É fácil perceber que a laboriosidade é um dos flancos da diligência mais vulneráveis à preguiça. Porque o preguiçoso foge do trabalho como de um castigo, esquecido de que, já nas suas primeiras páginas, a Bíblia ensina que o trabalho é uma grande missão confiada por Deus ao homem – sua “imagem” e seu “colaborador” –, desde o dia da sua criação: "Para isso – lemos no Gênesis – Deus colocou o homem no paraíso, para que trabalhasse" (Gên 3, 19). As penas e fadigas do trabalho são conseqüência do pecado, mas o trabalho não.

O preguiçoso encara o trabalho como um fardo, do qual procura livrar-se quanto antes e de mil modos possíveis. Com essa mentalidade, é inevitável que o trabalho esteja crivado de inconstâncias e imperfeições, e que os dias se encham de tristes horas suportadas ou perdidas.

Não é laborioso quem trabalha frivolamente; quem cumpre as tarefas levianamente, sem atenção nem esmero; quem interrompe o trabalho com qualquer desculpa, pontilhando os horários de serviço de contínuos parênteses de vazio (beber um gole de água, esticar um telefonema, hora do cafezinho); quem começa muitas coisas e nunca termina nenhuma, incapaz que é de colocar a “última pedra[15] em nenhum dos seus empreendimentos; quem deixa a imaginação divagar e, nas asas da fantasia, sonha com grandes realizações ideais ao passo que “desgraça” as ocupações reais.

Trabalhemos muito e bem[16]: eis o lema da laboriosidade, que se completa com outro princípio de ação: “Faz o que deves e está no que fazes[17].

O que entendemos por “muito trabalho”, por “trabalhar muito”...? Sobre o “peso” do trabalho, a preguiça não se cansa de nos enganar, suscitando queixumes e auto-compaixão: “Trabalho muito, trabalho demais, como é dura a vida”. Talvez fosse bom levarmos a sério o ditado brincalhão, que alguma vez teremos lido na traseira de um caminhão: “A vida é dura para quem é mole”. Reconheçamos honestamente que, com ordem e empenho, todos podemos fazer mais, muito mais do que fazemos.

O laborioso aprende a “espremer” o seu tempo, com garbo e com garra. É questão de querer. “Que esperas, pois, para aproveitar conscienciosamente todos os instantes? (...). Aconselho-te que consideres se esses minutos que te sobram ao longo do dia – bem somados, perfazem horas! – não obedecem à tua desordem ou à tua poltronice[18].

Faz o que deves e está no que fazes. Mediante a virtude da ordem, fazemos o que devemos. A laboriosidade nos leva também a “estar” no que fazemos.

Estar” nas tarefas significa dedicar-lhes os cinco sentidos, todas as potências: inteligência, vontade... Significa vencer habitualmente a divagação e o espírito rotineiro. Uma coisa é “trabalhar” – realizar algo de acordo com as nossas possibilidades – e outra muito diferente, embora seja infelizmente freqüente, é “liquidar” os encargos de qualquer maneira.

Um excelente exercício, para ajudar-nos a cair na conta da nossa falta de laboriosidade, poderia ser perguntar-nos: "Esta tarefa, é minha mesmo?" Muitas vezes deveríamos responder: "Não, não é minha, porque é anônima, é uma tarefa superficial que qualquer um poderia ter feito. Não traz a minha marca, porque não me entreguei a ela com toda a minha capacidade e iniciativa." Naturalmente, a “nossa marca” não é a da frívola originalidade, mas a marca inconfundível da nossa diligência, do nosso amor.

 

O diligente tem alma de artista

 

Não é diligente quem se precipita – recordávamos acima –, mas quem trabalha com amor, primorosamente[19].

É possível imaginar alguma coisa feita diligentemente, que esteja mal acabada? Qualquer trabalho ou realização, levados a cabo com amor, são obras “acabadas” ou, como se diz familiarmente, “caprichadas”. A imperfeição grosseira é uma denúncia clamorosa da falta de amor.

Não é em vão que, na linguagem comum, se utilizam algumas significativas expressões: é uma coisa muito trabalhada – diz-se –, é uma peça lavrada com primor. É sugestivo que, de uma coisa realizada com esmero muito especial, se diga simplesmente que foi “trabalhada”; e que se aplique aos requintes da arte manual o verbo “lavrar”, que deriva da palavra latina “laborare”, trabalhar.

Por trás dessas expressões, oculta-se como que um sexto sentido, a intuir que a laboriosidade envolve a idéia da perfeição amorosa em tudo o que se faz.

Com efeito, a diligência – a laboriosidade – sabe “acabar” as coisas, porque sabe fazê-las por amor – por amor a Deus e aos outros – e com amor.

Se fizermos uma revisão da tapeçaria formada pelos nossos deveres cotidianos, poderemos por acaso dizer que essa tapeçaria está “trabalhada” como uma obra de arte?

Existem, por exemplo, lares bons, mas muito pouco “trabalhados”, porque a rotina e a indelicadeza foram tomando conta deles – não houve renovação – como ferrugem implacável. Existem deveres profissionais pouco “trabalhados”, porque foram deslizando para um monótono cumprimento, uma burocrática repetição de serviços. Existem práticas religiosas pouco “trabalhadas”, porque não se renovou a fé que as acalentava alimentando-a com uma intensa formação – ou porque cristalizaram em devoções formalistas e práticas mecânicas. Existem paternidades muito pouco “trabalhadas”, porque sobre o amor dos pais depositou-se a poeira do costume, abafando afetos e dedicações.

Em todos estes casos, o amor e o entusiasmo foram-se congelando entre as mãos da rotina. Cederam passagem a mil pequenos descuidos, grosserias e imperfeições, aparentemente sem importância, e com isso perderam a força da renovação, isto é, da vida.

Uma tarefa feita por inércia, sem carinho, não é só uma tarefa inacabada e imperfeita, é um corpo sem alma. Só o amor cria e renova. “Na simplicidade do teu trabalho habitual, nos detalhes monótonos de cada dia, tens que descobrir o segredo – para tantos escondido – da grandeza e da novidade: o Amor[20].

A dupla força motriz da alma do cristão – o amor a Deus e o amor ao próximo – é poderosa para “renovar a face da terra” e conseguir o milagre de expulsar a rotina da vida cotidiana. Cada dia pode ser uma estréia, cada esforço um gesto inédito. “Toda hora o barro se refaz – diz Guimarães Rosa –, Deus ensina[21].

Sim, Deus ensina que, para Ele, “nenhuma ocupação é em si mesma grande ou pequena. Tudo adquire o valor do Amor com que se realiza”, e por isso é possível – e nisso consiste a aventura cotidiana do cristão – “transformar a prosa desta vida em decassílabos, em poesia heróica[22].

Santo Agostinho dizia, com uma expressão muito viva, que dilectio vacare non potest, o amor não pode parar, não pode tomar férias. Pois bem, uma pessoa de fé e de amor tem sempre o coração em movimento, como um coração de artista, alegremente inquieto e criativo.

Nunca o artista se sente satisfeito com a obra realizada. Sempre sonha em ir além. E este sonho ativa-lhe o engenho e movimenta-lhe o braço. Elabora por dentro, cria, recria, e se entrega ao trabalho com fervor, sem medir cansaços nem fadigas. Seu braço pode extenuar-se, mas o seu coração canta. Assim deve ser o cumprimento diligente dos deveres de um cristão.

Se porventura percebemos que, no íntimo de nós, está abafada essa alma de artista, se caímos na conta de que a rotina está estreitando o seu cerco, afunilando sonhos, crestando ilusões, cobrindo antigos entusiasmos com a pátina de uma canseira triste, é necessário prestar muita atenção: há um sinal de alarme avisando-nos de que já caímos, ou estamos à beira de cair numa lastimável preguiça, a preguiça do coração, o tédio da falta de amor.

Precisaremos, então, abrir bem os olhos da alma para enxergar que a rotina, a desilusão e o cansaço não são devidos – como tendemos a imaginar – ao acúmulo de tarefas, nem à repetição monótona das mesmas, nem ao desestímulo provocado por incompreensões dos que convivem ou trabalham conosco. Pelo contrário, são o efeito de uma doença da alma, que desaprendeu de amar, e por isso vê tudo cinza e sente tudo insosso.

Quando acordamos para a única coisa necessária (Lc 10, 42), voltando-nos decididamente para Deus, haverá uma reviravolta. Tudo, até os menores detalhes do cotidiano, mudará de sentido. Onde antes víamos muros – muralhas de deveres apertando como paredes de um cárcere – passaremos a ver janelas abertas para o infinito. E onde antes a rotina nos fechava num beco, agora se rasgará uma estrada.

Não se trata de simples imagens. O amor de Deus – o impulso da graça divina – muda tudo, como o sol transforma as sombras noturnas em paisagem colorida. Guiado pela fé e o amor, o coração cristão aprende a descobrir, em cada pequeno dever, em cada um dos esforços necessários para a execução das tarefas cotidianas, uma oportunidade – cada dia renovada – de se dar mais, de servir melhor, de alcançar um novo grau de perfeição, de expressar uma generosidade mais alegre... E isto porque aprendeu a captar, nos pequenos pormenores do dia-a-dia, o convite de Deus. "Aquele que me segue não andará nas trevas, porque terá a luz da vida" (Jo 8, 12).

Aquelas mesmas realidades cansadas que a preguiça fazia murchar, a diligência cristã vem revigorar com viço inesgotável. Quem ama, ensina São João, é transladado da morte para a vida (1 Jo 3, 14). Depende de nós. Não é poupando-nos que encontraremos vida e felicidade, mas dando-nos mais e mais. Quanto mais generoso for o sacrifício e mais profunda a entrega, mais impetuosamente brotará a alegria, como um sinal da plenitude da vida.

Afinal, não é esta uma das mais límpidas e preciosas lições que Cristo nos deixou? "Quem quiser guardar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de Mim, a encontrará" (Mt 16, 25).

 

Pontos de Reflexão

 

Nesta matéria, como em tantas outras que configuram o ideal cristão, o que custa não é tanto aceitar as idéias, mas levá-las à prática. Uns poucos pontos concretos podem ajudar a ver o ângulo por onde começar e... continuar.

* Compreendo que uma das maiores manifestações da preguiça em mim é a indiferença ou apatia na luta contra os meus defeitos? Concretizo as ocasiões em que devo enfrentar as minhas inclinações erradas: onde, quando, como?

*  Sou consciente de que, sem um plano de vida diário, a minha vida será uma coleção inútil de vagos desejos de ser um bom cristão? Nesse plano, estabeleço com prioridade qualitativa um tempo dedicado à oração, à leitura do Evangelho, a uma visita ao Santíssimo Sacramento, ao exame de consciência?

Faço o que devo, hoje e agora? Percebo que, muitas vezes, esse “hoje e agora” consiste em enfrentar uma tarefa desagradável, custosa ou espinhosa, humilde ou mesmo humilhante – mas que terá o sabor alegre e fecundo do dever cumprido e da caridade de Cristo? Vejo que o tempo da graça é agora?

O meu dia é agitado ou sereno, o meu trabalho arrastado ou intenso, desleixado ou competente e bem acabado? Procuro espremer o minuto de sessenta segundos?

Habituo-me, no meio das minhas ocupações, a buscar o olhar divino, que me dê paz e ânimo para cumprir o dever de cada momento, que torne a minha jornada uma tarefa do coração, e não a escória do egoísmo, o subproduto do orgulho, a claudicação perante o comodismo?

Omito-me na educação religiosa dos filhos? Omito-me em conversar com os amigos e colegas sobre Deus e a prática da vida cristã? Omito-me nas obras de misericórdia que estejam ao meu alcance? É a minha vida um conjunto de omissões?

Queixo-me do excesso de trabalho? Não percebo que, quando tiver mais ordem, multiplicar-se-á o meu tempo? Lembro-me daquele claro pensamento (cfr. Sulco, n. 238): “Basta-me ter diante de mim um Crucifixo para não me atrever a falar dos meus sofrimentos...”?


Notas:

[1] Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, Quadrante, São Paulo, 1975, pág. 6;

[2] Josef Pieper, In: LeclercqPieper, De La vida serena, 3a. ed., Rialp, Madrid, 1965, pág. 75;

[3] São Tomás de Aquino, Suma Teologica, IMI, q. 31, a. 1;

[4] Josef Pieper, Las virtudes fundamentales, Rialp, Madrid, 1976, pág. 395;

[5] Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, 25a. ed., Ed. Agir, Rio de janeiro, 1983, pág. 37 e segs.;

[6] Salvatore Canals, Reflexões espirituais, Quadrante, São Paulo, 1985, pág. 137;

[7] João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, 3a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1963, passim;

[8] Rabano Mauro, De ecclesiastica disciplina, livro 111o.; cfr. S. Th., II-II, q. 35, a. 1;

[9] Josemaría Escrivá, Caminho, 6a. ed., Quadrante, São Paulo, ns. 251, 253 e 254;

[10] São Gregório Magno, Regula pastoralis, parte III, cap. XV; In: Obras, BAC, Madrid, 1958, pág. 174;

[11] Georges Chevrot, As pequenas virtudes do lar, Quadrante, São Paulo, 1984, pág. 74;

[12] Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, 2a. ed., Quadrante, São Paulo, 1979, pág. 64;

[13] Jacques Leclercq, InDe La vida serena, págs. 19 e 20;

[14] Caminho, n. 80;

[15] Caminho, n. 42;

[16] Josemaría Escrivá, Sulco, Quadrante, São Paulo, 1987, n. 497;

[17] Caminho, n. 815;

[18] Sulco, n. 509;

[19] Amigos de Deus, pág. 64;

[20] Sulco, n. 489;

[21] João Guimarães Rosa, Corpo de baile, 2a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1960, pág. 513;

[22] Sulco, ns. 487 e 500.



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17º. dia, 10 de Março - Como se faz a meditação católica?,
por Santo Afonso de Ligório via Aleteia


A meditação ou oração mental contém três partes:

. a Preparação;
. a Meditação;
. a Conclusão.


I. PREPARAÇÃO

Na preparação fazem-se três atos:


1º. Ato de Fé na presença de Deus, dizendo:

"Meu Deus, eu creio que estais aqui presente e Vos adoro com todo o meu afeto."


2º. Ato de Humildade, por um breve ato de contrição:

"Senhor, nesta hora deveria eu estar no inferno por causa dos meus pecados; de todo o coração arrependo de Vos ter ofendido, ó Bondade infinita."


3º. Ato de Petição de luzes:

"Meu Deus, pelo amor de Jesus e Maria, esclarecei-me nesta meditação, para que tire proveito dela."

Depois uma Ave Maria à Santíssima Virgem, a fim de que nos obtenha esta luz; e na mesma intenção um Glória ao Pai a São José, ao Anjo da Guarda e ao nosso Santo Protetor.

Estes atos devem ser feitos com atenção, mas brevemente; depois deles se fará a Meditação.


II. MEDITAÇÃO

Para a Meditação sirvamo-nos sempre de um livro, ao menos no começo, parando nas passagens que mais impressão nos fazem. São Francisco de Sales diz que devemos imitar as abelhas, que se demoram numa flor enquanto acham mel, e voam depois para outra.

Note-se além disto que são três os frutos da meditação: afetos, súplicas e resoluções; nisto é que consiste o proveito da oração mental. Assim, depois de haverdes meditado numa verdade eterna, e Deus ter falado ao vosso coração, é mister que faleis a Deus:


1º. Pelos Afetos

Isto é, pelos atos de fé, agradecimento, adoração, louvor, humildade, e sobretudo de amor e de contrição, que é também ato de amor. O amor é como que uma corrente de ouro que une a alma a Deus. Conforme Santo Tomás, todo o ato de amor nos merece mais um grau de glória eterna. Eis aqui exemplos de atos de amor:

"Meu Deus, eu Vos amo sobre todas as coisas.
Eu Vos amo de todo o meu coração.
Fazei-me saber o que é de vosso agrado; quero fazer em tudo a vossa vontade.
Regozijo-me por serdes infinitamente feliz."

Para o ato de contrição basta dizer:

"Bondade infinita, pesa-me de Vos ter ofendido."


2º. Pelas Súplicas

Pedindo a Deus luzes, a humildade ou qualquer outra virtude, uma boa morte, a salvação eterna; mas principalmente o dom do seu santo amor e a santa perseverança, porque, no dizer de São Francisco de Sales, com o amor se alcançam todas as graças.

Se a nossa alma está em grande aridez, basta dizermos:

"Meu Deus, socorrei-me. Senhor, tende compaixão de mim. Meu Jesus, misericórdia!"

Ainda que nada mais fizéssemos, a oração seria excelente.


3º. Pelas Resoluções

Antes de se terminar a oração, cumpre tomar alguma resolução, não geral, como por exemplo evitar toda falta deliberada, de se dar todo a Deus, mas particular, como por exemplo evitar com mais cuidado tal defeito, em que se caia mais vezes, ou praticar melhor tal virtude em que a alma procurará exercer-se mais vezes: como seja, aturar o gênio de tal pessoa, obedecer mais exatamente a tal superior ou a regra, mortificar-se mais frequentemente em tal ponto, etc. Nunca terminemos a nossa oração sem havermos formado uma resolução particular.


III. CONCLUSÃO

Enfim, a conclusão da oração compõem-se de três atos:


1º. De agradecimento pelas luzes recebidas, e de pedido de perdão das faltas cometidas no tempo da oração:

"Senhor, eu Vos agradeço as luzes e os afetos que me destes nesta meditação e Vos peço perdão das faltas nela cometidas."


2º. De oferecimento das resoluções tomadas e de propósito de guardá-las fielmente:

"Meu Deus, eu Vos ofereço as resoluções que com a vossa graça acabo de tomar, e resolvido estou a executá-las, custe o que custar."


3º. De súplica, pedindo ao Pai Eterno, pelo amor de Jesus e de Maria, a graça de executá-las fielmente:

"Meu Deus, pelos merecimentos de Jesus Cristo e pela intercessão de Maria Santíssima, dai-me a força de por fielmente em prática as resoluções que tomei."

Termina-se a oração recomendando a Deus a Santa Igreja, os seus Prelados, as Almas do Purgatório, os pecadores, e todos os nossos parentes, amigos e benfeitores, por um Pai Nosso e uma Ave Maria, que são as orações mais úteis por nos serem ensinadas por Jesus Cristo e pela Igreja:

"Senhor, eu Vos recomendo a Santa Igreja, com os seus Prelados, as Almas do Purgatório, a conversão dos pecadores, e todas as minhas necessidades espirituais e temporais bem como as dos meus parentes, amigos e benfeitores."


Depois da Meditação

Depois da meditação devemos:

1º. Conforme o conselho de São Francisco de Sales, fazer um ramalhete de flores afim de cheirá-lo durante o dia, quer dizer, imprimir bem na memória um ou dois pensamentos que mais impressão nos fizeram, para os recordarmos e nos revigorarmos durante o dia.

2º. Por logo em prática as resoluções tomadas, tanto nas ocasiões pequenas como nas grandes, que se apresentarem: por exemplo suportarmos com paciência uma pessoa irada contra nós, mortificarmo-nos na vista, no ouvido, na conversa.

3º. Por meio do silêncio e recolhimento, conservar o mais tempo possível os afetos excitados na oração; sem isso, o fervor concebido na oração esvaecer-se-á logo pela dissipação no proceder ou pelas conversas inúteis.






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16º. dia, 09 de Março - Consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria,
por Papa Francisco 



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15º. dia, 08 de Março - 
Excerto do livro "Moradas de Deus",
por Dom Cipriano Chagas, OSB

Fala-se muito em Dons do Espírito, e muitos pensam que Dons do Espírito são como coisas, que se adquirem e se podem utilizar, como se utiliza um automóvel ou uma caneta, ou outra coisa qualquer, um bem que se possa usar materialmente, que seja da mesma natureza das coisas que utilizamos normalmente, em nossa vida comum, um instrumento como outro qualquer.

Os Dons, como carismas, são, realmente, instrumentos de ação, mas instrumentos sobrenaturais de ação, no Poder do Espírito Santo: são a nova maneira de agir que o Espírito Santo nos dá, para a construção do Reino.

Entretanto, não podemos nos dispor adequadamente para essa nova maneira de agir, e não podemos agir corretamente dessa nova maneira, se não tivermos passado também para uma nova maneira de ser, no poder do Espírito Santo, que Jesus ganhou para nós na sua Cruz.

É um axioma dizer-se que o agir segue-se ao ser. O que significa que, da maneira como é o ser, de acordo com o que ele é, assim é o seu agir. Se um ser é de determinada maneira, a maneira dele agir dela decorre, é adequada a essa maneira de ser.

Os Dons do Espírito Santo são a nova maneira de agir correspondente à nossa nova maneira de ser no Reino. Eles são adequados, não à maneira de ser de nosso ser natural, que vive sob o império dos sentidos, ao sabor dos instintos, mas à maneira de ser do nosso organismo sobrenatural, decorrente de nosso novo nascimento da água e do Espírito.

O que vemos, muito comumente, é que as pessoas querem ter essa nova maneira de agir - pelos Dons do Espírito - sem mudar a sua maneira de ser. Os Dons ficam, assim, sem perfeita adequação com a vida da pessoa, podem ser usados incorretamente, sem poder suficiente, e mesmo equivocadamente.

Nosso Senhor nos advertiu a respeito dizendo:

"Muitos virão naquele dia dizendo: "Senhor, Senhor, não expulsamos demônios em teu nome, não fizemos curas em teu nome?" E lhes direi: "Eu não vos conheço, vós que praticais a iniquidade" (Mt 7, 22-23).

Por que "não vos conheço"? Porque sua maneira normal de ser não está correspondendo aos Dons, não é aquela que Deus conhece. Essas pessoas terão usurpado uma maneira sobrenatural de agir que não é adequada à sua maneira de ser, segundo o mundo.

Pensei, então que talvez pudéssemos recapitular todas as coisas, para bem situar essa nova maneira de ser e essa nova maneira de agir no poder do Espírito Santo. Por isto, estas pequenas instruções receberam este nome: "Viver no Espírito". Falar de "Viver no Espírito" é, pois, falar de nossa vida sobrenatural, da natureza e excelência dessa vida, e de como chegar a ela. Primeiro procuraremos ver as suas origens, para melhor compreender a sua perfeição, sua natureza, sua qualidade, sua excelência.

Veremos, depois, essa vida nova no homem renovado, regenerado, nascido de novo; o papel que Deus exerce, dando-se a nós e assistindo-nos quer diretamente, quer mediante a Santíssima Virgem e os Santos; o papel que o homem exerce, dando-se a Deus por uma cooperação total, empenhada e constante com a graça de Deus, vivendo na Aliança que Deus nos oferece.

Em seguida, poderemos ver em que consiste essencialmente a perfeição dessa vida: no amor de Deus e do próximo por Deus; e que o amor de Deus e o amor do próximo são o ambiente favorável para essa vida nova crescer e dar fruto abundante, mas que este amor na terra não se pode praticar sem sacrifícios e renúncias.

Isto quer dizer que é preciso que haja uma prioridade, um empenho em que ele seja o primeiro na vida das pessoas, pois que, com razão, é a primeira ordem que recebemos, o primeiro dos mandamentos.

Sem sacrifícios e renúncias, não se o pode praticar. Querer fazê-lo de outra forma seria ilusório, seria colocar-se fora da nossa realidade, num engano que a nada levaria. Veremos, então, que Deus nos chama, mediante essas coisas, a uma outra vida, muitíssimo mais nobre: a participar de sua própria perfeição. "Sede vós perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito", ordena-nos Jesus, em Mateus 5, 28.

Deus nos chama a participar de sua perfeição, o que faz com que nos corresponda a obrigação de atender a esse chamado, aplicando os meios que ele nos dá para isso, nos caminhos que nos propõe. Para isto fomos criados: para viver uma vida com Deus, dirigida pelo Espírito Santo.


II - As origens da vida sobrenatural


Nossa vida sobrenatural vem aplicar-se à nossa vida natural e a conversa, aperfeiçoando-a, pelo que convém ter uma noção do que sejam a vida natural e a sobrenatural do homem, com suas grandezas e fraquezas. Veremos:

a. A criação do homem;
b. Sua queda;
c. Sua restauração pelo divino Redentor.


Da criação do homem
1 - O homem, um composto

O homem é, segundo diz a Escritura, esse misterioso composto de três elementos - corpo, alma e espírito - que se unem intimamente para formar uma única natureza e uma única pessoa. Ele é, por assim dizer, o ponto de encontro, o traço de união entre o mundo espiritual e o mundo material, uma ponte entre esses dois mundos, entre os espíritos e os corpos, uma síntese das maravilhas da criação de Deus. Os antigos o chamavam de microcosmos, um pequeno universo, um pequeno mundo que resume todos os mundos.

Manifestação da sabedoria divina, o homem une o mundo espiritual e o material num só ser, uma pessoa, de maneira perfeita. Só Deus poderia fazê-lo. Só a sabedoria divina poderia unir num composto como o homem, coisas tão disparates como espírito e corpo. Cada um de nós é, pois, uma maravilha da sabedoria de Deus, do poder de Deus.

E o homem é um mundo cheio de vida, nele se interpenetrando três vidas: a vegetativa, a animal e a intelectual. Tal como a planta, o homem se alimenta, cresce e reproduz-se, e, como o animal, conhece os objetos sensíveis, tende para eles pelo desejo dos sentidos, com suas emoções e paixões, e move-se com movimento espontâneo.

A planta não tem desejos, paixões, não vai atrás das coisas, não se locomove; o animal já o faz; é levado pelo instinto, um embrião de paixão, a buscar a satisfação de suas necessidades.

Já como o anjo, embora em grau inferior e de modo diferente, o homem tem uma vida intelectiva, pode conhecer intelectualmente o ser supra-sensível, que ultrapassa os sentidos - como a verdade. E, com a vontade, pode inclinar-se livremente para o bem racional. é capaz de apreender o bem, pela razão, e a sua vontade o faz inclinar-se para esse bem que a razão apreendeu.


2 - Três vidas em uma


Essas três vidas não se sobrepõem: compenetram-se, coordenam-se e subordinam-se, para concorrerem para o mesmo fim, que é a perfeição do homem completo. E lei, ao mesmo tempo racional e biológica, que, em todo composto, a vida não se pode conservar e desenvolver senão, coordenando os seus diferentes elementos ao elemento principal, sujeitando-os, para deles se servir, a fim de concorrerem para o bem comum.

No homem, as faculdades inferiores, vegetativas e sensitivas, devem ser submetidas à razão e à vontade. Esta condição é absoluta, porque, na proporção em que falta essa submissão, enfraquece-se ou desaparece a vida. Com efeito, quando deixa de existir essa subordinação, começa a dissociação dos elementos: sobrevém o enfraquecimento do sistema, a doença, e, por fim, a morte.


3 - A vida é luta

A vida é sempre um combate, uma luta: as faculdades inferiores lançam-se com ardor à satisfação das necessidades, pelo prazer que lhes provém dessa satisfação: como o animal, que vai em busca da comida, come e dorme, satisfeito; ou a planta, que tem o sol, a água, fica satisfeita, floresce, abre as pétalas e exala seu perfume. Há um prazer na satisfação das necessidades, e em busca dele vão as faculdades inferiores do homem, enquanto as faculdades superiores tendem para o bem honesto.

Ora, são duas coisas que, então, aí se verificam: o bem e o prazer. Entre esses dois bens há, as mais das vezes, oposição: o que agrada ao homem, o que lhe é, ou ao menos lhe parece, útil, nem sempre é bom para ele, nem sempre é moralmente bom. De onde o conflito.

É necessário, portanto, que a razão, para recompor a ordem, domine as tendências contrárias e triunfe: é o que a Sagrada Escritura chama de luta entre o espírito e a carne, da vontade contra a paixão. Essa luta é incômoda e molesta, as mais das vezes.

No hemisfério norte, no inverno as plantas ficam como que adormecidas, mas, ao chegar a primavera, vem um novo fluxo de vida, e a seiva sobe pelos troncos, as plantas se desenvolvem, crescem, lançam folhas, dão flor e fruto.

Assim também, muitas vezes sobrem da parte sensitiva do homem impulsos, às vezes mesmo violentos, para o prazer sensível em seus vários tipos - come e beber, por exemplo. Não são, porém, tais impulsos, irresistíveis: a vontade, ajudada pela inteligência, tem como exercer, sobre esses movimentos das paixões, os seus poderes.


a. Poder de Previdência

Consiste em prever e prevenir, por meio de prudente e constante vigilância, muitas fantasias, impressões e emoções perigosas.


b. Poder de Inibição ou de Moderação

Mediante o qual o homem impede, ou pelo menos modera a violência desses movimentos que se elevam em sua alma. Assim, por exemplo, pode impedir que os olhos se detenham num objeto perigoso: se está, por exemplo, mantendo uma dieta, pode não deixar que, pelo olhar, passe a desejar coisas proibidas. Pode impedir outros movimentos interiores: a imaginação, de procurar e conservar imagens inconvenientes, e, se nele se levanta a ira, pode refreá-la.


c. Poder de Estimulação

Que excita ou intensifica, pela vontade, movimentos passionais.


d. Poder de Direção

Que permite ao homem dirigir esses movimentos para o bem, e, por isso mesmo, afastá-lo do mal.


Além dessas lutas interiores, pode haver outras, entre a alma e o seu Criador. Pela reta razão o homem vê, com efeito, que deve submeter-se plenamente àquele que é seu soberano Senhor: Deus. Mas essa obediência lhe custa; há nele uma espécie de sede de independência e autonomia que o inclina a subtrair-se à autoridade divina: é o orgulho, que ele não pode vencer senão pela humildade, pela humilde admissão da sua indignidade e impotência, reconhecendo os direitos imprescritíveis do Criador sobre a sua criatura.

Deus tem todos os direitos sobre mim: Ele me criou, não por acaso, mas com uma finalidade sua. Tem um plano para mim, e espera que eu atenda a esse seu plano. Assim, pois, tenho de lutar contra os desejos de satisfazer-me, os quais, por se manifestarem nos meus três níveis de vida, recebem a denominação de "a tríplice concupiscência" (1 Jo 2,16), que me submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrestres e à auto-afirmação contra os imperativos da razão.


4 - Em busca de Deus


Quando o homem, em vez de ceder aos maus instintos, aos impulsos que lhe vêm de suas faculdades inferiores, cumpre o dever - isto é, aquilo que deve fazer diante de Deus - pode entrar num conhecimento mais extenso e profundo de verdade e de Deus. Por que isto? Porque, então, se adequa às condições para esse crescimento. 

Mediante sua disciplina interior, o reto relacionamento seu com Deus, ele se coloca em situação tal que pode crescer nesse conhecimento mais extenso e mais profundo da verdade e de Deus, sempre, porém, conforme a maneira de conhecer de sua natureza, isto é, num conhecimento analítico ou discursivo.

Crescer no conhecimento de Deus leva-o a crescer no amor, a ter um amor mais puro e duradouro, mais perfeito e constante. Isto lhe traz uma alegria muito grande, porque é uma necessidade de seu ser; ela seria como que o fruto desse crescimento, como uma recompensa.

Se, porém, faz o contrário, não quer relacionar-se retamente com Deus, não lhe quer obedecer e prefere caminhos diferentes, transgredindo a sua própria ordenação interior, segundo o plano de Deus, desprezando a lei que está dentro de si mesmo, e não se arrepende - porque muitas vezes transgride e se arrepende e volta atrás - , o que vai acontecer?

Desvia-se do caminho que o leva a Deus, desvia-se do seu fim - porque seu fim é Deus - e sofre a privação de Deus e os grandíssimos tormentos subsequentes, o que seria para ele o pior dos castigos.

Mal comparando, se eu sei que beber pinga me faz mal, mas não me importo e tomo umas talagadas, depois eu vou ter dor de cabeça, o fígado fica ruim, vou querer botar tudo para fora, ter dor de barriga, ficar prostrado, desanimado, sem querer saber de nada, vou ter de tomar remédio, injeção dolorida, e ainda aguentar a ressaca... Tudo isto porque preferi afastar-me da saúde para a satisfação voluntária de um mau desejo, escolhi algo prejudicial ao meu próprio organismo, à lei inscrita dentro de mim.

Sofro, então, por culpa minha, a reação dolorosa de parte de minha natureza, que pode ser interpretada como uma punição, um "castigo" realmente penoso. é a privação da saúde, embora péssima, nada é em comparação com a privação de Deus, de forma que o sofrimento que aquela traz não dá a mais pálida ideia do sofrimento que causará o "castigo" da privação de Deus, do bem absoluto para o qual devemos tender sempre.


Oração

"Senhor, nós vos louvamos e bendizemos porque sois bom, porque nos criastes para vós, e nos fizestes de tal modo que a nossa maior alegria, o nosso maior prazer, o nosso maior gozo está em conhecer-vos e amar-vos. Os maiores prazeres inferiores dão apenas ínfima e palidíssima ideia daquilo que tendes reservado para nós, quando essa necessidade tremenda de nosso ser, de vos ter, de vos amar, for totalmente satisfeita, conforme quereis. Nós vos louvamos e bendizemos por essa felicidade infinita que quereis nos dar desde agora. Muito obrigado, Senhor! Glória a Vós, Senhor! Amém."

Fonte: CHAGAS, C. Moradas de Deus: Viver no Espírito, a vida abundante que Jesus adquiriu para nós. ISBN 85-337-0101-2. 2.ed. Rio de Janeiro, RJ: Ed. Louva Deus, 1997. 264 p.

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14º. dia, 07 de Março - Excerto do livro "Imitação de Cristo",
por Thomas Kempis

Capítulo 6
Das afeições desordenadas


1. Todas as vezes que o homem deseja alguma coisa desordenadamente, torna-se logo inquieto. O soberbo e o avarento nunca sossegam; entretanto, o pobre e o humilde de espírito vivem em muita paz. O homem que não é perfeitamente mortificado facilmente é tentado e vencido, até em coisas pequenas e insignificantes. O homem espiritual, ainda um tanto carnal e propenso à sensualidade, só a muito custo poderá desprender-se de todos os desejos terrenos. Daí a sua frequente tristeza, quando deles se abstém, e fácil irritação, quando alguém o contraria.

2. Se, porém, alcança o que desejava, sente logo o remorso da consciência, porque obedeceu à sua paixão, que nada vale para alcançar a paz que almejava. Em resistir, pois, às paixões, se acha a verdadeira paz do coração, e não em segui-las. Não há, portanto, paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual.


Reflexões

Examina mais de uma vez por dia, mais ou menos de noite e de manhã, se tens tua alma em tuas mãos, ou se ela não foi arrebatada por alguma paixão ou inquietação. Considera se tens sob teu comando teu coração, ou se ele não escapou totalmente de tuas mãos para engajar-se em alguma afeição desregrada de amor, de ódio, de inveja, de cobiça, de medo, de aborrecimento ou de alegria.

Quando ele se extraviou, antes de mais nada procura trazê-lo de volta à presença de Deus, reconduzindo teus afetos e desejos à obediência e conduta de sua divina vontade (Introduction à la vie dévote, parte IV, cap. XI, I, 249).


Oração

Meu Senhor Jesus Cristo, que por mim quisestes ser elevado na cruz e exaltado, libertai-me dos afetos terrestres e elevai meu espírito à consideração das coisas celestes. Amém (Opusc., III, 229).



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13º. dia, 06 de Março - Preparação para a Reconciliação,
 por Comunidade Shalom

Preparar para se confessar é fazer o exame de consciência

Vá a um lugar tranquilo, preferivelmente diante do sacrário, para orar. Só Deus pode iluminar a sua realidade e lhe dar os meios para corresponder à graça.


Diante d'Ele, reflita:


. Como correspondi a tanto amor, a tantas graças?

Faça um exame escrito, se puder. Recordamos aqui que Deus nos deu mandamentos. Quebrá-los é quebrar a nossa aliança com Ele e cair em pecado. Não se trata somente de enumerar pecados, mas de se arrepender com dor por nossos pecados, fazendo o firme propósito de não voltar a cometê-los

Depois disso, dirija-se à confissão, que só pode ser feita diante de um sacerdote.


As 04 rupturas

Examine-se — ajudado por estas perguntas — quais pecados você cometeu desde sua última confissão.


. Ruptura com Deus:


Amo na verdade a Deus com todo meu coração ou vivo mais apegado às coisas materiais?
Preocupei-me por renovar minha fé cristã através da oração, a participação ativa e atenta da missa dominical, à leitura da Palavra de Deus? 
Guardo os domingos e dias de festa da Igreja? 
Cumpri com o preceito anual da confissão e com a comunhão pascal?
Tenho uma relação de confiança e amizade com Deus, ou cumpro somente ritos externos?
Professei sempre, com vigor e sem temores minha fé em Deus? 
Manifestei minha condição de cristão na vida pública e privada?
Ofereço ao Senhor meus trabalhos e alegrias? 
Recorro a Ele constantemente, ou só o busco quando o necessito?
Tenho reverência e amor para o nome de Deus ou lhe ofendo com blasfêmias, falsos juramentos ou usando o Seu nome em vão?


. Ruptura comigo mesmo:


Sou soberbo e vaidoso? 
Considero-me superior a outros?
Procuro aparentar algo que não sou para ser valorizado por outros? 
Aceito a mim mesmo, ou vivo na mentira e no engano? 
Sou escravo de meus complexos?
Que uso tenho feito do tempo e dos talentos que Deus me deu? 
Me esforço por superar os vícios e as inclinações más, como a preguiça, a avareza, a gula, a bebida, a droga?
Caí na luxúria com palavras ou pensamentos impuros, com desejos ou ações impuras?
Realizei leituras ou assisti a espetáculos que reduzem a sexualidade a um mero objeto de prazer?
Caí na masturbação ou a fornicação? 
Cometi adultério?
Recorri a métodos artificiais para o controle da natalidade?


. Ruptura com os irmãos e com a criação:


Amo de coração o meu próximo como a mim mesmo e como o Senhor Jesus me pede que o ame?
Em minha família, colaboro em criar um clima de reconciliação com paciência e espírito de serviço?
Foram os filhos obedientes a seus pais, prestando-lhes respeito e ajuda em todo momento?
Preocupam-se os pais em educar na vida cristã seus filhos?
Abusei de meus irmãos mais fracos, usando-os para meus fins?
Insultei meu próximo? Escandalizei-o gravemente com palavras ou com ações?
Se me ofenderam, sei perdoar, ou guardo rancor e desejo de vingança?
Compartilho meus bens e meu tempo com os mais pobres, ou sou egoísta e indiferente à dor dos outros? 
Participo das obras de evangelização e promoção humana da Igreja?
Me preocupo com o bem e a prosperidade da comunidade humana em que vivo ou passo a vida preocupado tão somente comigo mesmo? 
Cumpri com meus deveres cívicos? 
Paguei meus tributos?
Sou invejoso? 
Sou fofoqueiro e enganador? 
Difamei ou caluniei alguém? 
Violei segredos? 
Fiz julgamentos temerários sobre outros?
Sou mentiroso?
Causei algum dano físico ou moral a outros? 
Inimizei-me com ódios, ofensas ou brigas com ao meu próximo? 
Fui violento?
Procurei ou induzi o aborto?
Fui honesto em meu trabalho? 
Usei corretamente a criação ou abusei dela para fins egoístas? 
Roubei? 
Fui justo na relação com meus subordinados tratando-os como eu gostaria de ser tratado por eles? 
Participei do negócio ou consumo de droga? 
Caí na fraude ou no estelionato?
Recebi dinheiro ilícito?


Os 10 Mandamentos... Eu tenho ferido algum deles?


. 1º Mandamento: Amará a Deus sobre todas as coisas;

. 2º Mandamento: Não tomará o nome de Deus em vão;

. 3º Mandamento: Santificarás o dia do Senhor;

. 4º Mandamento: Honrará a teu pai e tua mãe;

. 5º Mandamento: Não matarás ;

. 6º Mandamento: Não cometerás atos impuros;

. 7º Mandamento: Não roubarás ;

. 8º Mandamento: Não levantarás falso testemunho;

. 9º mandamento: Não consentirás com pensamentos nem desejos impuros;

. 10º Mandamento: Não cobiçarás os bens alheios.


Exame de consciência com base nos pecados capitais e nas virtudes contrárias


1. Soberba / Humildade:


Fui humilde ao pensar, comparei-me com outros, tratei de chamar a atenção com minha sabedoria, meu físico, etc.?
Reconheço-me pequeno? 
Desprezo os outros em meu coração?
Me ressenti pelo trato ou posto recebido? 
Qual é a motivação das minhas aspirações?
Distingo entre o que é doutrina e o que é minha opinião? 
Sou prudente ao dar minha opinião? 
Acredito que é a única? 
Acredito que sem minha presença as coisas não vão bem?
Sei distinguir o que é minha missão ou me intrometo no que não me corresponde?
Reconheço que não tenho razão de me glorificar, mas sim em Cristo? 
De que forma minhas ações estão misturadas com orgulho, vaidade e egoísmo?
Reconheço os meus enganos e peço perdão?
Posso ajudar sem mandar?


2. Avareza / Generosidade:


Estou apegado às coisas?
Sacrifico tempo, dinheiro, para servir segundo o plano de Deus?
Jogo com o dinheiro com a ambição de ganhar mais?


3. Luxúria / Castidade:


Tenho consumido conteúdo pornográfico pela internet ou por outros meios?
Tenho buscado prazer pessoal com a masturbação?
Tenho tido pensamentos impuros em relação às outras pessoas?
Uso roupas provocativas/sensuais?
Faço o uso de substâncias que tiram o meu autodomínio e o meu pudor?


4. Ira / Paciência:


Sei lidar com as cruzes, doenças, com problemas nas relações, no trabalho, etc?
Perco a paz ou manifesto mau humor quando as coisas não estão como eu espero?
Jogo a culpa nas minhas circunstâncias e nunca assumo os meus próprios erros?


5. Gula / Moderação:


Como mais do que o necessário? Faço jejum?
Estou viciado em álcool ou drogas?


6. Inveja / Caridade:


Sinto ciúmes por talentos ou conquistas dos outros, ou me alegro quando eles melhoram?
Busco ajudar os outros em suas necessidades ou me fecho em meu egoísmo?


7. Preguiça / Diligência:


Sou atento a cumprir meus deveres?
O que faço para edificar a minha família/comunidade?
Sou rápido em servir mesmo que não tenho vontade?
“Descanso” mais do que necessário?
Deixo sempre as coisas para mais tarde?




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12º. dia, 05 de Março - A Morte,
por Edouard Clerc


Por mais que não pensemos nela, cedo ou tarde todos teremos de enfrentar-nos com a morte. Por isso, importa estar sempre preparado para esse momento, sem, contudo, viver numa paranóia contínua. O ponto é que a morte, para o cristão, é um encontro.


Pensar na Morte


É necessário pensar na morte, evitando, por outro lado, que se torne uma idéia fixa, pois pensar nela o tempo todo é doentio ou, pelo menos, negativo. Positivo é desejar a Vida Eterna como um fim que presida a toda a vida terrena. A morte será, assim, o meio de alcançarmos a verdadeira vida, para a qual fomos criados.

Qualquer pessoa que creia firmemente na vida eterna deixa de ver a morte unicamente como uma dolorosa separação entre a alma e o corpo, porque, “por trás das misteriosas portas da morte, perfila-se uma eternidade de alegria em comunhão com Deus” (João Paulo II). Deste ponto de vista, que aliás é o único verdadeiro, a vida não é tirada pela morte, mas transformada, e, desfeita a nossa habitação terrena, é-nos dada uma mansão eterna nos céus (Prefácio dos defuntos I).

A primeira conseqüência, para quem crê e espera nesta alegria sem fim, é o desprendimento de tudo aquilo que não serve para adquiri-la. Tantos homens e mulheres afadigam-se, lutam e sofrem para obter aquelas coisas que, segundo pensam, lhes trarão a felicidade, mas, quando morrem, nada resta de tudo isso. Pura e simplesmente, correram atrás de uma miragem. 

Nem o dinheiro, nem a vanglória, nem o poder, nem os prazeres carnais, nenhuma dessas coisas que governam o mundo é capaz de proporcionar uma felicidade duradoura. Portanto, é preciso fazer um esforço enérgico para superar tudo isso, que, em si, para nada serve; pois, quer pensemos na morte, quer não, os anos passam e a hora do nosso fim aproxima-se.

É preciso simplificar a vida. Quando se carrega um excesso de bagagem, estraga-se a viagem: é penoso e cansativo carregar malas enormes, e a pessoa acaba por perguntar-se a si própria: “Mas por que fui trazer tantas coisas?” Ainda é tempo de nos desembaraçarmos de tudo o que é inútil, pois não é necessário ter dinheiro nem condecorações para entrar no céu. O coração puro é um coração desprendido: "Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus" (Mt 5, 3).


Possíveis atitudes diante da Morte


O nosso grau de amor a Deus pode medir-se pela atitude que tivermos diante da morte: podemos temê-la, resignar-nos diante dela ou aceitá-la ativamente.

Temer a morte é um sentimento natural no homem, porque morrer supõe geralmente um duro combate, uma luta da nossa natureza contra o ato que a destrói: é a agonia, que pode ser longa e é sempre penosa. Instintivamente, temos medo dela. Na ordem natural, pois, é impossível contemplarmos com indiferença essa catástrofe que consiste na separação dos dois elementos que compõem o nosso ser.

Se a morte destrói a ordem querida por Deus, ao decompor a criatura, por que morremos? Porque a morte é conseqüência do pecado. Deus disse a Adão: Se desobedeceres e comeres desse fruto, morrerás" (cf. Gen 2, 17). Adão desobedeceu e morreu, deixando-nos a morte em herança.

Podemos perguntar também: “Então, se Adão tivesse obedecido, não morreríamos?” Com efeito, como a morte era o castigo da desobediência, o homem poderia ter-lhe escapado se tivesse observado o mandamento divino. Nesse caso, a sua imortalidade seria uma graça especial, pois o corpo humano é mortal, como todos os seres vivos materiais; o homem passaria desta vida para a vida eterna sem sofrer a dor e a angústia da morte. De qualquer modo, nas nossas condições atuais, a morte é um mal e, por isso, não é de estranhar que lhe tenhamos medo.

A morte pode ser resignada quando, pela força do seu caráter ou pelo raciocínio, a pessoa chega a aceitá-la sem revolta, como algo que não tem remédio, apesar de toda a repugnância que sente diante dela. Quando se está gravemente doente, e se sabe que o desenlace é inevitável, acaba-se por aceitar sem revolta o fim. Mesmo numa perspectiva meramente humana, sem referência a Deus, é-nos necessário alcançar pelo menos essa resignação humana para podermos superar o terror que a morte inspira.

Quando se avança em idade, torna-se cada vez mais necessário resignar-se com a impossibilidade de fazer aquelas coisas que se costumavam fazer. Temos de deixar nas mãos dos mais jovens as tarefas que nós próprios desempenhávamos, mesmo que eles as levem a cabo de modo diverso do nosso. Temos de resignar-nos com a decadência física, com o entorpecimento progressivo que vai tomando conta dos nossos olhos, dos ouvidos, das pernas. Temos de resignar-nos diante da doença e do sofrimento, sinais da nossa fragilidade. Temos de resignar-nos a ver o tempo passar cada vez mais depressa, e compreender que o fim se aproxima.

Poderia dizer-se que esses diversos tipos de resignação constituem uma preparação remota para a morte, uma vez que nos desprendem de muitas coisas terrenas. Mas a resignação não basta, porque essa atitude só diz respeito aos velhos e aos doentes crônicos, quando há também numerosos casos de morte súbita ou por acidente. É necessária, portanto, uma outra disposição perante a morte: a aceitação.

A livre aceitação da morte não é um simples sentimento, que pode ou não estar presente, mas implica a compreensão do plano de Deus, e por isso é importante para todas as pessoas. Temos de chegar a considerar a morte como o meio previsto por Deus para entrarmos na vida eterna, “o parto para a vida, que se realiza na dor”.

Semelhante aceitação não deve estar mesclada de amargura, mas unir-se à atitude de Jesus que, na sua agonia no Horto das Oliveiras, dizia ao Pai: "Não se faça a minha vontade, e sim a tua" (Lc 22, 42). Os nossos sofrimentos e a nossa morte são elevados e transformados pela nossa união com Cristo, e assim a nossa aceitação tem de ser igual à do Senhor: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23, 46).

Com o dom da nossa vida, devemos, pois, fazer também o dom da nossa morte, persuadidos de que, tanto na vida como na morte, pertencemos ao Senhor: "Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor. Pois foi com este fim que Cristo morreu e ressuscitou: para ser Senhor dos mortos e dos vivos" (Rom 14, 8-9).

Acostumemo-nos a oferecer a nossa morte a Deus a partir deste mesmo instante – pois é coisa que não se improvisa –, a fim de que no último momento da nossa vida o ato de caridade nos venha aos lábios com toda a espontaneidade. O derradeiro oferecimento da nossa morte a Deus estará assim ligado a uma vida de permanente abandono e confiança na Misericórdia infinita. E teremos verdadeiramente uma morte aceita, uma morte no Senhor.


A Morte Espiritual


Mas em que consiste morrer no Senhor? Antes de mais nada, em conduzir-nos de acordo com a verdade que Deus nos deu a conhecer: "Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não incorre na sentença de condenação, mas passou da morte para a vida" (Jo 5, 24). 

Escutar e cumprir a palavra de Deus, fazer aquilo que Ele nos pede, implica evitar tudo o que é contrário à sua Vontade, isto é, o pecado. Por ser livre, o homem pode escolher, e de acordo com o que pensar e fizer, estará preservando a vida da graça ou pondo-a a perder. E quando se perde essa vida, é a morte espiritual: a pessoa passa a estar em estado de pecado mortal. Quem morre em pecado não morre no Senhor, pois, ao pecar, expulsou-o da sua alma.

Esta vida é, portanto, combate espiritual permanente contra a morte da alma pelo pecado; e é na arena da vida terrestre que se desenvolve este drama, cujas conseqüências – a vida ou a morte – são eternas. Certamente, não será necessário esclarecer que não são os pecados leves, mas os pecados graves, que provocam a morte espiritual; e para distinguir entre uns e outros, dispomos da doutrina cristã, ilustrada pelo Magistério da Igreja, e de um juiz interior, a consciência, cuja voz não devemos afogar, mas escutar.

Assim como já não se quer falar do Inferno, também não se fala mais do pecado, que é a sua causa, e conseqüentemente tampouco se fala da morte espiritual. No entanto, este é o grande dilema da nossa vida cotidiana: ou se está em graça ou se está em pecado; ou se está vivo ou se está morto. Aqui não há meios-termos possíveis. É assustador que se possa viver sem pensar nisso, esquecendo ou deixando de compreender que a nossa permanência nesta terra é uma prova, um combate que terminará por uma vitória ou uma derrota.

O valor moral de toda uma vida não depende, portanto, de um balanço entre os méritos e os deméritos, de um confronto entre os atos bons e os atos maus, mas está ligado ao estado em que a alma se encontra no momento da morte. Se isto pode parecer paradoxal, recordemos que a justiça humana também é administrada analogamente: o juízo é pronunciado sobre um ponto, não sobre uma soma. 

Não esqueçamos, porém, que Deus não espera o momento da queda para apanhar o homem em falta e condená-lo: "Terei eu prazer com a morte do malvado? Não desejo, antes, que mude de proceder e viva?" (Ez 18, 23). Até o pecador mais calejado pode receber a graça de converter-se antes de morrer. Inversamente, pode acontecer a desgraça de que uma pessoa reta caia no final em alguma infidelidade grave, mas isso acontece mais raramente quando se procura manter ao longo da vida um coração humilde e se recorre com constância à oração e ao auxílio de Deus (N. do T.).


Os Sacramentos e a Oração


Por mais corajoso que seja o nosso empenho nesta batalha que dura a vida inteira, a nossa vontade por si só não basta para triunfar nela; felizmente, porém, contamos com Deus que, na sua misericórdia, nos presta a ajuda eficaz da sua graça. Com ela, não sucumbimos à tentação; e, se caímos, o Senhor encontra-se sempre disposto a perdoar, por meio do Sacramento da Reconciliação, até mesmo as faltas mais graves, se nos arrependemos delas.

Morrer em estado de graça, em paz com Deus, é morrer no Senhor. Quem se esforça por guardar a pureza da sua alma, está sempre pronto para esse encontro que é a morte. Uma reflexão deste gênero, sobre a morte espiritual, bem pode ser a ocasião de que precisemos para nos convertermos, para regressarmos a Deus, se por acaso nos afastamos d'Ele. Seja como for, todos nós encontraremos nela um acicate para nos enfrentarmos lealmente conosco próprios e para formularmos sérios propósitos de melhora.

A ajuda da graça chega-nos em primeiro lugar pelos Sacramentos, que nos dão ou restituem a graça, como o Batismo e a Confissão, ou a fazem crescer, como a Eucaristia. Não nos esqueçamos de que o principal alimento da vida sobrenatural em nós, o alimento por excelência, é a Comunhão. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, diz o Senhor (Jo 6, 5). Ninguém se esquece do alimento corporal, pura e simplesmente porque tem necessidade dele; da mesma forma, deveríamos ter o desejo de comungar com freqüência, se possível diariamente, para manter o nosso organismo espiritual “em forma”.

Além dos Sacramentos, a graça chega-nos também pela oração e pelo mérito das boas obras. Se perdemos o costume de orar, expomo-nos a cair como um inválido que tivesse esquecido as suas muletas. A oração consiste em elevarmos o coração a Deus, falando com Ele e confiando-lhe tudo o que trazemos no coração; ela é, portanto, um sinal claro de que procuramos estar na graça de Deus.

A oração mais perfeita é a Santa Missa, da qual todos os cristãos têm necessidade; prescindir dela é correr um grande risco. E devemos também perseverar no costume de rezar à Santíssima Virgem, pedindo-lhe que rogue “por nós, agora e na hora da nossa morte”; podemos ter a certeza de que Ela estará presente nesse encontro e nos dará a mão para passarmos por essa porta.

Assistimos todos os dias à morte de muitos, celebramos os seus enterros e funerais, e no entanto continuamos a prometer-nos longos anos de vida (Santo Agostinho, Sermão 17).

“[As pessoas] temem muito a morte porque amam muito a vida deste mundo e pouco a do outro. Mas a alma que ama a Deus vive mais na outra vida do que nesta, porque a alma vive mais onde ama do que onde anima” (São João da Cruz, Cântico espiritual, 11, 10)

Não tenhas medo da morte. – Aceita-a desde agora, generosamente…, quando Deus quiser…, como Deus quiser…, onde Deus quiser. Não duvides; virá no tempo, no lugar e do modo que mais convier…, enviada por teu Pai-Deus. – Bem-vinda seja a nossa irmã, a morte! (Josemaría Escrivá, Caminho, n. 739).

“Não tem grande importância escapar à morte, pois é por pouco tempo, e depois é preciso morrer; mas é coisa grande escapar definitivamente à morte, como acontece conosco, por quem Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (Orígenes, Hom. para o tempo pascal).

“Que grande dignidade e segurança sair contente deste mundo, sair glorioso em meio à aflição e à angústia, fechar por um momento estes olhos com que vemos os homens e o mundo, para em seguida voltar a abri-los e contemplar a Deus!" (São Cipriano, Trat. a Fortunato, 13).

“[…] Quando vier a morte, que virá inexoravelmente, espera-la-emos com júbilo, como tenho visto que o souberam fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência diária. Com alegria, porque, se imitarmos Cristo em fazer o bem – em obedecer e levar a Cruz, apesar das nossas misérias –, ressuscitaremos como Cristo: Surrexit Dominus vere! (Lc 24, 34), que ressuscitou realmente” (Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 21).

“Doutor em Direito e em Filosofia, preparava um concurso para professor catedrático na Universidade de Madrid. Duas carreiras brilhantes, feitas com brilhantismo. Mandou-me avisar: estava doente, e desejava que eu fosse visitá-lo. Cheguei à pensão onde estava hospedado. – «Padre, estou morrendo», foi a saudação. Animei-o, com carinho. Quis fazer uma confissão geral. Naquela noite, faleceu. Um arquiteto e um médico me ajudaram a amortalhá-lo. – E, à vista daquele corpo jovem, que rapidamente começou a decompor-se…, estivemos de acordo os três em que as duas carreiras universitárias não valiam nada, comparadas com a carreira definitiva que, como bom cristão, acabava de coroar” (Josemaría Escrivá, Sulco, n. 877).

“Somente a virtude acompanha os defuntos; unicamente a caridade os segue” (Santo Ambrósio, em Catena Aurea, vol. VI, p. 86).

“Não temas a morte. É tua amiga! – Procura acostumar-te a essa realidade, assomando com freqüência à tua sepultura. E ali, olha, cheira e apalpa o teu cadáver apodrecido, defunto há oito dias. – Lembra-te disto, especialmente, quando te perturbar o ímpeto da tua carne” (Josemaría Escrivá, Forja, n. 1035).

“Não faças da morte uma tragédia!, porque não o é. Só aos filhos desamorados é que não entusiasma o encontro com seus pais” (Josemaría Escrivá, Sulco, n. 885).

“Morrer?… Que comodismo!, repito. – Diz como aquele santo bispo, ancião e doente: “Non recuso laborem”: Senhor, enquanto puder ser-te útil, não me recuso a viver e a trabalhar por Ti” (Josemaría Escrivá, Forja, n. 1040).



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11º. dia, 04 de Março - A cruz de Cristo, medida do mundo,
por  John Henry Newman

“Quando for levantado da terra, atrairei todos os homens a Mim” (Jo 12, 32).

Grande número de homens vive e morre sem jamais ter refletido sobre a situação em que se encontra. Aceitam o lhes chega e seguem as suas inclinações até onde as suas oportunidades lho permitem. Guiam-se principalmente pelo prazer e pela dor, não pela razão, pelos princípios ou pela consciência. Também não tentam interpretar este mundo, determinar o que significa ou reduzir o que veem e sentem a um sistema. 

Mas, quando começam a contemplar a situação aparente em que nasceram – quer pela sua mente reflexiva, quer por curiosidade intelectual –, logo chegam à conclusão de que é um labirinto e uma perplexidade. É um enigma que não conseguem resolver. Parece cheia de contradições e desprovida de qualquer desígnio. O que é, como proceder nela, como é o que é, de que modo se pode começar a entendê-la, qual é o nosso destino, tudo são mistérios.


Chave do Mundo


Mergulhados nessa dificuldade, alguns compuseram uma filosofia de vida e outros, outra, pensando ter descoberto a chave que lhes permitiria ler aquilo que é tão obscuro.

Dez mil coisas passam diante de nós, uma após a outra, ao longo da vida: que devemos pensar delas? Que cor atribuir-lhes? Devemos vê-las de maneira alegre e gozosa? Ou de maneira melancólica? De maneira desalentada ou esperançosa? Devemos tomá-las levianamente ou conferir gravidade a cada assunto? Devemos tornar maiores as coisas de pouca importância ou tirar peso às de grande importância? Guardar na mente o que foi e passou, olhar para o futuro ou deixar-nos absorver pelo presente?

Como devemos olhar as coisas? Esta é a pergunta que todas as pessoas reflexivas fazem a si mesmas, e cada uma lhe responde a seu modo. Desejam pensar por meio de regras, mediante algo que esteja dentro delas e ao mesmo tempo lhes permita harmonizar e ajustar o que está fora. Essa é a necessidade experimentada pelas mentes reflexivas. Agora, permiti-me que pergunte: Qual é a chave real, qual a interpretação cristã deste mundo? Qual o critério que a Revelação nos dá para avaliar e medir este mundo? E a resposta é: o grande acontecimento deste tempo litúrgico, a Crucifixão do Filho de Deus.

A morte do Verbo eterno de Deus feito carne é a nossa grande lição quanto ao modo como devemos pensar e falar deste mundo. A sua Cruz atribuiu a tudo o que vemos o seu devido peso, a todas as riquezas, a todos os benefícios, a todas as categorias, a todas as distinções, a todos os prazeres; à concupiscência da carne, à concupiscência dos olhos e à soberba da vida. Pesou todas as emoções, as rivalidades, as esperanças, os medos, os desejos, os esforços e os triunfos do homem mortal. Deu significado ao instável e vacilante percurso da vida terrena, às suas provações, tentações e sofrimentos. Reuniu e tornou consistente tudo o que parecia discorde e sem propósito. Ensinou-nos como viver, como usar deste mundo, que aguardar, que desejar, que esperar. É a melodia em que se reúnem e harmonizam todas as dissonâncias da música deste mundo.


Peso e Medida


Olhai à vossa volta e vede o que o mundo vos apresenta tanto de alto como de baixo. Ide à corte dos príncipes. Vede a riqueza e a arte de todas as nações reunidas para honrar o filho de um homem. Observai como os muitos se prostram diante dos poucos. Considerai as formalidades e o cerimonial, a pompa, o luxo, o esplendor – e a vanglória. Quereis saber o valor de tudo isso? Olhai para a Cruz de Cristo.

Ide ao mundo da política: vede a inveja que opõe nação a nação, a competição entre uma economia e outra, exércitos e frotas enfrentados uns com os outros. Examinai os diversos estamentos da sociedade, os seus partidos e as suas contendas, as aspirações dos ambiciosos e as intrigas dos astutos. Qual é o fim de toda essa agitação? A sepultura. Qual é a sua medida? A Cruz.

Ide também ao mundo do intelecto e da ciência: considerai as maravilhosas descobertas feitas pela mente humana, a variedade de artes que essas descobertas fizeram surgir, os quase milagres pelas quais demonstra o seu poder, e considerai a seguir o orgulho e a autoconfiança da razão, e a absorção do pensamento em objetos transitórios, que é a sua consequência. Quereis julgar retamente tudo isso? Olhai para a Cruz.

Mais ainda: vede a miséria, vede a pobreza e a indigência, vede a opressão e o cativeiro; ide para onde o alimento é escasso e a moradia insalubre. Considerai a dor e o sofrimento, as doenças longas ou agudas, tudo o que é pavoroso e repugnante. Quereis saber que peso têm todas essas coisas? Olhai para a Cruz.

Por isso, todas as coisas convergem para a Cruz – e para Aquele que dela pende –; todas as coisas lhe estão subordinadas, todas as coisas necessitam dela. É o seu centro e a sua interpretação. Pois Ele foi levantado sobre ela para que pudesse atrair a si todos os homens e todas as coisas.


O modo natural de pensar


Mas, dir-nos-ão, a perspectiva da vida humana e do mundo que a Cruz de Cristo nos confere não é a que teríamos por nós mesmos; que não é um modo de ver evidente por si mesmo; as coisas são muito mais claras e ensolaradas do que nos parecem à luz da Quaresma. O mundo parece ter sido feito precisamente para que um ser como o homem desfrute dele, e o homem foi posto neste mundo; o homem tem a capacidade de desfrutar, e o mundo lhe fornece os meios de fazê-lo.

Que modo de pensar tão natural, que filosofia simples e ao mesmo tempo agradável! Mas, como é diferente da filosofia da Cruz! A doutrina da Cruz, poder-se-ia dizer, desarranja as duas partes de um sistema que parecem ter sido feitas uma para outra; separa o fruto de quem o come, o prazer de quem o desfruta. Que problema soluciona? Não será que antes cria um problema?

Respondo, em primeiro lugar, que seja qual for a força desta objeção, não faz senão repetir aquilo que Eva sentiu e Satanás incitou no Éden. Não viu a mulher que o fruto proibido era “bom para comer” e “de aspecto desejável”? Será então de estranhar que também nós, os descendentes do primeiro casal, nos encontremos num mundo onde há um fruto proibido, e que as nossas tentações consistam em que ele está ao nosso alcance, e que a nossa felicidade consista em abster-nos dele? O mundo, à primeira vista, parece feito para o prazer, e o conhecimento da Cruz de Cristo é uma visão solene e triste que interfere com essa aparência. Seja; mas não consistirá o nosso dever em que nos abstenhamos desse prazer, se era um dever até no Éden?


A Lição do Mundo e a da Cruz


Mais ainda: dizer que esta vida está feita para o prazer e para a felicidade é encarar de maneira extremamente superficial as coisas. Para aqueles que olham além da superfície, este mundo conta uma história muito diferente. No fim das contas, a doutrina da Cruz somente nos ensina – embora de maneira infinitamente mais contundente – a mesmíssima lição que este mundo ensina àqueles que nele vivem longo tempo, que dele adquirem muita experiência, que o conhecem. O mundo é doce aos lábios, mas amargo ao paladar. Agrada no começo, mas não no fim. Parece alegre por fora, mas o mal e a miséria estão ocultos nele.

Quando um homem passou nele um certo número de anos, exclama com o autor do Eclesiastes: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade" (Ecl 1, 2). Mais: se não tiver a religião cristã por guia, terá de ir além e dizer: "Tudo é vaidade e descontentamento do espírito" (Ecl 6, 2); tudo é desapontamento, tudo é tristeza, tudo é dor. As dolorosas sentenças que Deus pronuncia contra o pecado estão embutidas no mundo e obrigam o homem a afligir-se, quer queira quer não. 

Portanto, a doutrina da Cruz de Cristo apenas antecipa a nossa experiência do mundo. É verdade que nos exorta a chorar os nossos pecados no meio de tudo o que sorri e brilha ao nosso redor; mas, se não lhe fizermos caso, acabaremos por chorá-los quando estivermos submetidos ao seu terrível castigo. Se não reconhecermos que este mundo se tornou miserável por causa do pecado olhando para Aquele sobre quem os nossos pecados recaíram, acabaremos por sentir a miséria deste mundo quando as consequências dos nossos pecados recaírem sobre nós.

Temos de reconhecer, pois, que a doutrina da Cruz não se encontra à superfície do mundo, pois a superfície das coisas é meramente brilhante, e a Cruz é triste. É uma doutrina escondida, encontra-se sob um véu. Amedronta-nos à primeira vista, e sentimo-nos tentados a revoltar-nos contra ela. Tal como São Pedro, exclamamos: "Que Deus não o permita, Senhor! Isto não te acontecerá!" (Mt 16, 22). No entanto, é uma doutrina verdadeira, pois a verdade não se encontra à superfície das coisas, mas nas suas profundezas.


Sabedoria escondida


Assim como a doutrina da Cruz não se manifesta ostensivamente à superfície do mundo, mas é a verdadeira interpretação desse mundo, assim, quando é recebida por um coração fiel, permanece nele como um princípio vital, mas profundo e escondido. Os cristãos, nas palavras da Escritura, vivem da fé no Filho de Deus, que os amou e se entregou por eles (cfr. Gál 2, 20), mas não o alardeiam diante de todos, antes deixam os outros descobri-lo por si mesmos. O próprio Cristo ordenou aos seus discípulos que, quando jejuassem, ungissem a cabeça e lavassem o rosto (cfr. Mt 6, 17).

Por isso, os cristãos têm o dever de não se vangloriar, antes devem contentar-se com parecer exteriormente diferentes do que realmente são no seu íntimo. Devem mostrar um semblante alegre e controlar e regular os seus sentimentos, para que esses sentimentos não se desgastem na superfície, mas possam retirar-se para o fundo do coração, e ali viver. 

Por isso, Jesus Cristo, e este crucificado, é – como nos diz o Apóstolo – uma sabedoria escondida (cfr. 1 Cor 2, 2.7); escondida no mundo, que à primeira vista parece falar de uma doutrina enormemente diferente, e escondida na alma fiel, que – para as pessoas que não lhe estão próximas, ou para os conhecidos ocasionais – parece levar apenas uma vida ordinária, quando na realidade está secretamente em comunhão com Aquele que foi manifestado na carne (1 Tim 3, 16), crucificado pela fraqueza (2 Cor 13, 4), justificado no Espírito, visto pelos anjos e acolhido na glória (cfr. 1 Tim 3, 16).


Coração da religião


Se é assim, a grande e tremenda doutrina da Cruz de Cristo, que agora celebramos, pode ser considerada apropriadamente, em linguagem figurada, o coração da religião. O coração costuma ser considerado a sede da vida; é o princípio do movimento, do calor e da atividade; dele parte o sangue até as extremidades do corpo e a ele retorna. Sustenta as forças e faculdades do homem; permite que o cérebro pense; e se for ferido, o homem morre. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor de Cristo é o princípio vital do qual vive o cristão, e sem ele não existe cristianismo.

Sem ela, não se pode sustentar de maneira proveitosa nenhuma outra doutrina; a Divindade de Cristo, ou a sua Humanidade, ou a Santíssima Trindade, ou o Juízo que há de vir, ou a Ressurreição dos mortos seriam crenças falsas, não a fé cristã, se não se aceitasse ao mesmo tempo a doutrina do sacrifício de Cristo. 

Por outro lado, aceitá-la pressupõe que se aceitem também as outras altas verdades do Evangelho: ela pressupõe a fé na verdadeira Divindade de Cristo, na sua verdadeira Encarnação e no estado pecaminoso do ser humano; e prepara o caminho para crer no sagrado Banquete Eucarístico, no qual Aquele que outrora foi crucificado é entregue sempre de novo às nossas almas e aos nossos corpos, real e verdadeiramente, no seu Corpo e no seu Sangue.

Mais ainda: o coração está escondido à vista e segura e cuidadosamente guardado; não é como o olho que, inserido na fronte, tudo controla e é visto por todos. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor não se destina a ser objeto de conversação, mas deve ser vivida; não se destina a ser enunciada irreverentemente, mas deve ser adorada em segredo; não se destina a ser usada como um instrumento necessário para a conversão dos maus ou para a satisfação dos raciocinadores deste mundo, mas deve ser apresentada aos dóceis e obedientes, às criancinhas que o mundo não corrompeu, aos aflitos que precisam de consolo, aos sinceros e honestos que buscam uma regra de vida, aos inocentes que precisam de advertência, e aos santos que merecem conhecê-la.


Alegrias e Alegria


Farei mais uma observação para depois concluir. Não se deve presumir que o Evangelho seja uma religião triste porque a doutrina da Cruz nos entristece. O Salmista diz: "Os que semeiam entre lágrimas hão de colher com alegria" (Sal 125, 6); e nosso Senhor: "Os que choram serão consolados" (Mt 5, 5). 

Que ninguém se afaste de nós com a impressão de que o Evangelho nos leva a ter uma visão sombria do mundo e da vida. Não há dúvida de que ele nos impede de alimentar uma visão superficial e de encontrar vãs alegrias transitórias naquilo que vemos; mas, se nos proíbe a alegria imediata, é apenas para nos dar uma alegria verdadeira e plena mais tarde.

O Evangelho proíbe-nos apenas começar pelo prazer. Diz-nos: “se começares pelo prazer, terminarás na dor”. Convida-nos a começar pela Cruz de Cristo, e nessa Cruz encontraremos primeiro a tristeza, mas em breve a paz e o consolo que nascerão dessa tristeza. A Cruz há de conduzir-nos à contrição, ao arrependimento, à humilhação, à oração, ao jejum; haveremos de entristecer-nos pelos nossos pecados, haveremos de entristecer-nos com os sofrimentos de Cristo; mas toda essa tristeza resultará, ou melhor, será suportada com uma felicidade imensamente maior do que o prazer que o mundo tem a dar.

É claro que as mentes superficiais e mundanas não creem nisto, antes riem destas ideias, porque nunca saborearam a sua realidade e consideram tudo mera questão de palavras, palavras que as pessoas religiosas considerariam decoroso e conveniente usar, em que tentariam crer, nas quais pretenderiam levar outros a acreditar, mas que ninguém realmente sentiria. 

Isto é o que pensam; mas o nosso Salvador disse aos seus discípulos: "Assim também vós, sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez e o vosso coração se alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria; e também: Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vô-la dou como a dá o mundo" (Jo 16, 22; 14, 27). 

E São Paulo: "O homem carnal não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucura. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar; coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam" (1 Cor 2, 14.9). Assim, a Cruz de Cristo, ao falar-nos tanto da nossa redenção como dos sofrimentos do Senhor, efetivamente nos fere – mas fere para curar.

Por isso mesmo, tudo o que é brilhante e belo, mesmo que se encontre apenas à superfície deste mundo, e ainda que não tenha substância e não possa ser apreciado convenientemente por si mesmo, é no entanto figura e promessa daquela verdadeira alegria que nasce da Redenção. É uma promessa antecipada do que há de ser: é uma sombra que gera esperança porque a sua substância há de vir, mas que não deve ser confundida precipitadamente com a própria substância. Este é o modo habitual como Deus lida conosco: envia misericordiosamente a sombra antes da substância, para que possamos consolar-nos com aquilo que há de ser antes mesmo de que chegue.

Assim, antes da sua Paixão, nosso Senhor entrou triunfalmente em Jerusalém enquanto as multidões gritavam “Hosana” e atapetavam o seu caminho com ramos de palmeira e com os seus mantos. Mas tudo não passava de uma encenação vã e oca, na qual o Senhor não podia encontrar alegria. Era uma sombra que não permaneceu, mas se esvaiu. Não podia ser mais que uma sombra, pois Cristo ainda não tinha sofrido a Paixão pela qual havia de forjar o seu verdadeiro triunfo. 

Não podia entrar na sua glória sem antes ter sofrido. Não podia desfrutar dessa aparência de glória sabendo que era irreal. Mas aquele primeiro triunfo vislumbrado era o anúncio e presságio da verdadeira vitória que havia de vir quando tivesse vencido o aguilhão da morte. Esse triunfo figurado é o que comemoramos no Domingo de Ramos, para alentar-nos no meio da tristeza da Semana Santa e para recordarmos a alegria verdadeira que virá com o dia da Páscoa.


Começar pela fé


O mesmo se aplica a este mundo com todas as suas delícias, que são também desencantos. Não confiemos nele; não lhe entreguemos os nossos corações; não comecemos por ele. Comecemos pela fé; comecemos por Cristo; comecemos pela Cruz e pela humilhação a que ela conduz. Deixemo-nos atrair para Aquele que foi levantado, para que Ele possa dar-nos generosamente todas as coisas, juntamente consigo mesmo. Busquemos primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e então todas as coisas deste mundo nos serão acrescentadas (Mt 6, 33).

Só aqueles que começam pelo mundo que não se vê são capazes de desfrutar verdadeiramente deste mundo que se vê. Só quem primeiro se absteve dele pode alegrar-se nele. Só quem primeiro jejuou pode verdadeiramente banquetear-se. Só quem aprendeu a não abusar do mundo é capaz de usá-lo. Só quem o aceita como uma sombra da realidade vindoura, e por amor ao vindouro se desprende do presente, é que há de vir a herdá-lo.


Fonte: https://blog.quadrante.com.br/a-cruz-de-cristo-medida-do-mundo/


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10º. dia, 03 de Março - Ensaio sobre São José neste segundo dia de novena,
por Ernst Hello 


São José, a sombra do Pai! 
Aquele sobre quem se projeta a sombra do Pai, densa e profunda. 

São José, o homem do silêncio! 
Aquele que mal é tocado pela palavra. 

O Evangelho só nos diz isto dele: "Era um homem justo". Sempre sóbrio em palavras, o Evangelho é ainda mais sóbrio do que de costume ao falar de São José. Dir-se-ia que este homem, envolto em silêncio, inspira silêncio. O silêncio de São José produz silêncio ao redor de São José.

O silêncio é o seu louvor, o seu modo de ser, a sua atmosfera. Onde está José, reina o silêncio. Dizem alguns viajantes que, quando a águia levanta vôo, o peregrino sedento adivinha a existência de uma fonte no lugar do deserto onde se projeta a sombra dessa ave; escava então a terra nesse lugar e eis que a água brota. A águia dissera-o na sua linguagem, ou seja, voando, e dessa forma a beleza se converteu em utilidade: quem sente sede, compreendendo a linguagem da águia, busca a fonte no meio da areia e encontra água.

Haja o que houver de verdade natural nesta preciosa lenda, ela é fecunda em grandes símbolos. Quando a sombra de São José se projeta em alguma parte, o silêncio não está longe dali. Cave-se a areia, símbolo da natureza humana, e brotará a água. E a água será aquele silêncio profundo no qual todas as palavras estão contidas; aquele silêncio vivificante, refrescante, apaziguador, saciante: o silêncio substancial. Onde se projeta a sombra de São José, a substância do silêncio, insondável e pura, brota do mais profundo da natureza humana.

Não há nenhuma palavra sua registrada na Sagrada Escritura. Mardoqueu, que fizera Ester florescer à sua sombra, é um dos precursores do Santo; Abraão, pai de Isaac, representa também o pai adotivo de Jesus; e José, filho de Jacó, é a sua imagem mais expressiva. Este primeiro José foi, no Egito, o guardião do pão natural; o segundo José foi, no Egito, o guardião do Pão sobrenatural. 

Ambos foram os homens do mistério e foi o sonho que lhes comunicou os seus segredos, pois ambos foram instruídos em sonhos e assim adivinharam coisas ocultas. Assomados ao abismo, os olhos de um e outro viam através das trevas; viajantes noturnos, descobriram os seus caminhos através dos mistérios da sombra. O primeiro José viu o sol e a lua prostrados diante dele; o segundo José dava ordens a Maria e a Jesus: Maria e Jesus obedeciam-lhe.

Que abismo interior não devia trazer no seu íntimo o homem que se via obedecido por Jesus e por Maria, o homem que convivia familiarmente com esses mistérios e a quem o silêncio revelava as profundidades do seu segredo! Quando serrava as suas madeiras e via o Menino trabalhar sob as suas ordens, os seus sentimentos, aprofundados por essa situação inaudita, mergulhavam no silêncio que os aprofundava ainda mais. E da profundidade onde vivia com o seu trabalho, teve a fortaleza de não alardear perante os homens: “O Filho de Deus está aqui”.

O seu silêncio parece uma homenagem ao inefável: é como a abdicação da Palavra diante do Insondável e do Imenso. O Evangelho, que tão poucas palavras diz, tem os séculos por comentário; os séculos aprofundam nas suas palavras e fazem brotar da pederneira a chispa de luz viva. É que os séculos têm por missão trazer à luz os segredos. São José foi desconhecido durante muito tempo; porém, desde Santa Teresa de Ávila, especialmente encarregada de revelá-lo aos cristãos, já é muito menos ignorado.

Curiosamente, cada século tem dois aspectos – o cristão e o anticristão, opostos por um contraste direto e admirável. O século XVIII, século do riso, da frivolidade, da leviandade, do luxo, teve um São Bento José Labre. Esse mendigo chegou a alcançar a glória, até a glória humana, ao passo que os que brilharam no seu tempo caíram numa abjeção histórica incomparável, diante da qual são glórias as comuns abjeções. 

Não sei o que Deus terá feito com as almas de muitos que brilharam no século XVIII; mas a ciência humana, apesar da sua imperfeição e da sua lentidão, fez justiça aos seus nomes: praticamente todos os representantes do século XVIII estão enterrados num especial esquecimento. No entanto, José Labre, que é a contradição viva desse século, brilha até mesmo aos olhos dos homens; e aqueles mesmos que tentam ridicularizá-lo se vêem obrigados a considerá-lo uma personalidade histórica.

O nosso século XIX é, acima de todos, e em todos os sentidos do termo, o século da Palavra. A Palavra, boa ou má, enche a nossa atmosfera. Uma das coisas que nos caracterizam é o barulho. Nada mais barulhento do que o homem moderno: ama o barulho, gosta de produzi-lo ao redor dos outros, e gosta, sobretudo, que os outros o produzam ao seu redor

O barulho é a sua paixão, a sua vida, a sua atmosfera: a publicidade substitui nele muitas outras paixões que morrem afogadas nessa paixão dominante, a menos que vivam dela e se alimentem da sua luz para brilhar com maior violência. Este nosso século fala, chora, grita, louva-se e desespera-se: e tudo converte em exibição. Detesta a confissão secreta e explode a cada momento em confissões públicas. Vocifera, exagera, ruge.

Pois bem, foi este estrepitoso século XIX que assistiu à elevação e à exaltação da glória de São José, que acaba de ser nomeado oficialmente padroeiro da Igreja Universal [1], tornando-se mais conhecido, invocado e honrado do que em qualquer outra época! Foi por entre raios e trovões que se produziu, insensivelmente, a revelação do seu silêncio.

Até que ponto São José penetrou na intimidade de Deus? Não o sabemos. Mas, no meio do tumulto que nos rodeia, sentimo-nos invadidos pelo sentimento dessa imensa paz em que parece ter deslizado toda a sua vida: e parece que este contraste quer revelar-nos a oculta grandeza das coisas.

Muitos que nada têm a dizer falam, e sob o barulho da sua linguagem e a turbulência da sua vida dissimulam o nada das suas idéias e dos seus sentimentos. E São José, que tanto tem a dizer, não fala: guarda dentro de si as grandezas que contempla: dentro dele erguem-se montanhas sobre montanhas, e as montanhas são silenciosas.

Os homens são arrastados pelo feitiço das bagatelas. Mas São José, entre as tribulações da sua viagem ao Egito, naquela fuga de Jesus perseguido já desde o início, permanece em paz, dono da sua alma e do seu silêncio. No meio dos pensamentos, dos sentimentos, dos tumultos, dos incidentes e das dificuldades dessa viagem, o representante de Deus Pai foge, como se fosse ao mesmo tempo fraco e culpado: foge para o Egito, para o país da angústia, retorna ao lugar terrível do qual os seus antepassados tinham saído sob a proteção de Deus. Percorre na direção contrária o caminho percorrido por Moisés e, enquanto se dirige para o Egito e permanece no Egito, lembra-se de quando procurou lugar na pousada e não o encontrou.

Quia non erat locus in diversorio, porque não havia lugar para eles na pousada!

A história do mundo está nessas poucas palavras. Mas ninguém lê essa história tão lacônica, tão substancial, porque lê-la significa compreendê-la, e toda a sucessão dos séculos não é suficientemente longa para sondar tudo aquilo que está escrito nessas palavras: Não havia lugar na pousada.

Houve lugar para outros viajantes, mas para aqueles não. O que não se nega a ninguém é negado a Maria e a José: e Jesus Cristo ia nascer em poucos minutos! O Esperado das nações chamava às portas do mundo… e não houve lugar na pousada para Ele!

O Panteão romano, pousada dos ídolos, tinha lugar para trinta mil demônios com nomes supostamente divinos; e Roma não teve lugar para Jesus Cristo no seu Panteão. Parecia adivinhar que Jesus Cristo não queria semelhante lugar nem semelhante participação.

Quanto mais insignificante é uma pessoa, mais facilmente se instala. Aquele que traz em si um valor de humanidade tem mais dificuldade para instalar-se, sobretudo se trouxer em si qualquer coisa de admirável e próximo de Deus; mas quem leva o próprio Deus não encontra lugar. 

Todos parecem adivinhar que necessita de um lugar demasiado grande, e, por mais que Ele queira fazer-se pequeno, não consegue desarmar o instinto dos que o rechaçam, não consegue persuadi-los de que se assemelha aos outros homens; por mais que oculte a sua grandeza, ela brilha à sua revelia e, à sua proximidade, as portas fecham-se instintivamente.

Essa pequena frase, que diz apenas: Porque não havia lugar para eles na pousada, é tanto mais terrível quanto mais simples. Não é a inflexão da queixa, da censura, da recriminação: obedece ao tom natural do relato, que suprime toda a reflexão, pois o Evangelho deixa que nós mesmos façamos as nossas reflexões: Quia non erat locus in diversorio.

E o que dizer dessa palavra diversorio, que indica multiplicidade? Os viajantes comuns, os homens que fazem número, encontraram lugar na pousada. Mas Aquele que Maria trazia consigo ia nascer num estábulo, porque era Ele quem iria dizer um dia: “Uma só coisa é necessária”, unum est necessarium.

O diversorio foi-lhe fechado! Seria necessário que um raio iluminasse a nossa noite e nos mostrasse todos os séculos de uma só vez, concentrados num só ponto e num só instante, para que essa frase tão curta, tão pequena, tão simples, nos surgisse tal como é: para que nos surgisse tal como é essa pousada na qual Maria e José não encontraram lugar. Seria necessário um raio que iluminasse esse abismo. Mas, que aconteceria se os nossos olhos se abrissem?

Faber pergunta-se que pensariam as mães dos Inocentes que pouco tempo depois foram degolados. Pergunta-se mesmo se não meditariam sobre o homem e a mulher que não haviam encontrado lugar, e sobre o Menino que não tivera senão uma manjedoura para nascer. Pois a terra inteira também lhe negaria em breve um lugar para morrer: ao fim de alguns anos, iria cravá-lo no alto de uma cruz.


A terra foi como a pousada: inospitaleira.


São José cumpre na realidade o que os outros cumpriram em figura. Depois de ter guardado o Pão da vida no Egito, realizando aquilo do qual o primeiro José fora a sombra, retorna a Nazaré e faz o mesmo que Josué fizera.

Josué havia detido o curso do sol. Aquele que era a Luz do mundo abandona Maria e José para ir a Jerusalém defender a causa de seu Pai; mas Maria e José vão encontrá-lo ali e fazem-no retornar a casa. Cristo, o Sol, que parecia ter iniciado o seu curso, fica detido durante dezoito anos. Dos doze aos trinta anos, Jesus não sai da sua casa.

Com que idade morreu José? Não se sabe; mas parece que já tinha morrido quando Jesus abandonou a sua casa. E naquela casa, o que se terá passado? Que mistérios se terão desvelado aos olhos desse homem a quem Jesus obedecia? O que veria José nos atos de Jesus Cristo, nesses atos que, pela sua própria simplicidade, devem ter assumido aos seus olhos dimensões incomensuráveis? 

O que não veria no menor dos seus movimentos? O que não veria na sua atividade aparentemente tão limitada? O que não veria na sua obediência? Como terá soado no fundo da sua alma esta frase: “Eu mando e Ele obedece: eu ocupo o lugar de Deus Pai”?

E, por trás dessa frase, debaixo dela, no fundo, devia existir algo mais profundo que ela mesma: o silêncio que a envolvia; e a frase que teria dado forma ao silêncio talvez não tenha chegado a formular-se nunca. Talvez estivesse oculta no silêncio que a continha.

Quando as palavras humanas se reúnem, depois de terem sido sucessivamente chamadas pelo homem e de se terem declarado, uma após outra, impotentes para expressar o fundo da sua alma, então o homem cai de joelhos e do fundo do seu abismo ergue-se o silêncio. E esse silêncio que sai do fundo do abismo ultrapassa as nuvens e sobe até o trono d'Aquele que tomou as trevas por retiro: sobe ao trono de Deus com os perfumes da noite.

Esse grande silêncio da natureza que se chama sonho foi o templo onde os dois Josés ouviram as vozes do céu. O primeiro José foi vendido por causa de um sonho que excitou a inveja e o ódio dos seus irmãos. Por um sonho foi levado para o Egito, e também em sonhos recebeu São José a ordem de fugir para o Egito.

A seguir, mandou, e a Mãe e o Menino obedeceram. Parece-me que essa autoridade inspirou a São José idéias prodigiosas. Parece-me que o nome de Jesus devia conter para ele segredos admiráveis. Parece-me que, quando n'Ele mandava, a humildade do Menino assumia dimensões gigantescas que os sentimentos conhecidos não podiam medir. Essa humildade devia reunir-se ao silêncio do Patriarca, no seu lugar, no seu abismo. E esse silêncio e essa humildade deviam enaltecer-se mutuamente.

São José escapa à nossa apreciação, que não pode medir a altura das suas funções. Deus, tão ciumento, confiou-lhe a Santíssima Virgem. Deus, tão ciumento, confiou-lhe Jesus Cristo. E a sombra do Pai caía todos os dias sobre ele, tão densa que as palavras mal se atreviam a aproximar-se dela.


[1] São José foi declarado padroeiro da Igreja Universal em 1847 pelo Papa Pio IX (N. do E.)



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9º. dia, 02 de Março - A quaresma e o número 40: um simbolismo 
ligado a períodos de mudança,
por Aleteia.org


A Quaresma é associada aos 40 dias de Jesus no deserto, mas o número aparece em vários outros episódios-chave das Sagradas Escrituras


A Quaresma é um tempo litúrgico abertamente ligado ao número 40. De fato, a própria palavra “quaresma” vem do latim “quadragesima dies“: significa “o quadragésimo dia” e faz referência ao período de 40 dias entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Domingo de Ramos, que abre a Semana Santa.

O Papa Bento XVI falou do significado litúrgico dos “quarenta dias da Quaresma” durante a audiência geral de 22 de fevereiro de 2012, quando assim o resumiu:

“Trata-se de um número que exprime o tempo da expectativa, da purificação, do regresso ao Senhor e da consciência de que Deus é fiel às Suas promessas”.


A quaresma e o número 40


As Sagradas Escrituras trazem uma abundante relação entre o número 40 e períodos importantes de preparação, expectativa e mudança. Recorde alguns exemplos:

. Deus fez chover 40 dias e 40 noites nos tempos de Noé (Gênesis 7,4);
. Moisés passou 40 dias de jejum no Monte Sinai, a sós com Deus (Êxodo 24,18);
. O povo de Israel passou 40 anos em êxodo pelo deserto rumo à Terra Prometida (Números 14,33);
. Elias passou 40 dias e 40 noites caminhando até o Monte Horeb (1 Reis 19,8);
. Israel viveu 40 anos de paz sob os juízes (Juízes 3,11);
. Duraram 40 anos os reinados de Saul (Atos 13,21), Davi (II Samuel 5,4-5) e Salomão (I Reis 11,42), os três primeiros reis de Israel;
. Jonas profetizou 40 dias de julgamento para que Nínive se arrependesse (Jonas 3,4);
. Jesus foi levado por Maria e José ao templo 40 dias após Seu nascimento (Lucas 2,22);
. Jesus jejuou durante 40 dias no deserto, onde foi tentado pelo demônio (Mateus 4,1–2; Marcos 1,12–13; Lucas 4,1–2);
. Durante 40 dias, Jesus ressuscitado instruiu os discípulos antes de subir ao Céu e enviar o Espírito Santo (Atos 1,1-3).

Também há quem considere que Jesus tenha estado fisicamente morto durante cerca de 40 horas: das 3h da tarde da Sexta-Feira Santa até aproximadamente as 7h da manhã do Domingo de Ressurreição, embora a Bíblia não mencione a hora em que Ele ressuscitou.

Fonte: https://pt.aleteia.org/2021/02/19/a-quaresma-e-o-numero-40-um-simbolismo-ligado-a-periodos-de-mudanca/


Há quem esteja doando quarenta itens em quarenta dias, ou se baseando em listas sugeridas em diversos sítios eletrônicos, ou retirando do consumo alguns alimentos prediletos, etc. Mas sem a abnegação real para vivê-la, acaba sendo esforço vão. A melhor frase que li sobre o tema foi "Jejum sem oração é dieta!".

E você, como está sendo a sua Quaresma? Reconciliação ou Encenação? 


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8º. dia, 01 de Março - "Os 25 segredos de Jesus a Santa Faustina 
para lutar contra o demônio",
por Kathleen Beckman


Em Cracóvia, no dia 02 de junho de 1938, o Senhor Jesus ditou a uma jovem Irmã da Misericórdia um retiro de três dias. Faustina Kowalska registrou minuciosamente as instruções de Cristo em seu diário, que é um manual de mística na oração e na misericórdia divina.

Este diário guarda as revelações de Cristo sobre o tema da luta espiritual, sobre como proteger-se dos ataques do demônio. Estas instruções se tornaram a arma de Faustina na luta contra o maligno inimigo.

Jesus começou dizendo: ”Minha filha, quero instruir-te sobre a luta espiritual”. E estes foram seus conselhos:


1. Nunca confies em ti, mas entrega-te inteiramente à Minha Vontade.


A confiança é uma arma espiritual. Ela é parte do escudo da fé que São Paulo menciona na Carta aos Efésios (6, 10-17): a armadura do cristão. O abandono à vontade de Deus é um ato de confiança; a fé em ação dissipa os maus espíritos.


2. Na desolação, nas trevas e diversas dúvidas, recorre a Mim e ao teu diretor espiritual; ele te responderá sempre em Meu Nome.


Em tempos de guerra espiritual, reze imediatamente a Jesus. Invoque seu Santo Nome, que é muito temido pelo inimigo. Leve as trevas à luz contando tudo ao seu diretor espiritual ou confessor, e siga suas instruções.


3. Não comeces a discutir com nenhuma tentação; encerra-te logo no Meu Coração.


No Jardim do Éden, Eva negociou com o diabo e perdeu. Precisamos recorrer ao refúgio do Sagrado Coração. Correr até Jesus é a melhor maneira de dar as costas ao demônio.


4. Na primeira oportunidade, conta-a ao confessor.


Uma boa confissão, um bom confessor e um bom penitente são a receita perfeita para a vitória sobre a tentação e a opressão demoníaca. Isso não falha!


5. Coloca o amor-próprio em último lugar, para que não contagie as tuas ações.


O amor próprio é natural, mas precisa ser ordenado, livre de orgulho. A humildade vence o diabo, que é o orgulho perfeito. Satanás nos tenta no amor próprio desordenado, que nos leva à piscina do orgulho.


6. Com grande paciência, suporta-te a ti mesma.


A paciência é uma grande arma secreta que nos ajuda a manter a paz da nossa alma, inclusive nas grandes tempestades da vida. A paciência consigo mesmo é parte da humildade e da confiança. O diabo nos tenta à impaciência, a voltar-nos contra nós mesmos, de maneira que fiquemos com raiva. Olhe para você mesmo com os olhos de Deus. Ele é infinitamente paciente.


7. Não descuides as mortificações interiores.


A Escritura nos ensina que alguns demônios só podem ser expulsos com oração e jejum. As mortificações interiores são armas de guerra. Podem ser pequenos sacrifícios oferecidos com grande amor. O poder do sacrifício por amor desaloja o inimigo.


8. Justifica sempre em ti, o juízo das Superiores e do Confessor.


Cristo falava a Santa Faustina, que morava em um convento. Mas todos nós temos pessoas com autoridade sobre nós. O diabo tem como objetivo dividir e conquistar; então, a obediência humilde à autoridade autêntica é uma arma espiritual.


9. Foge dos que murmuram, como se da peste.


A língua é uma poderosa embarcação que pode causar muito dano. Estar murmurando ou fazendo fofoca nunca é de Deus. O diabo é um mentiroso que gera acusações falsas e fofocas que podem matar a reputação de uma pessoa. Rejeite as murmurações.


10. Deixa que todos procedam como lhes aprouver; age tu antes como estou a exigir-te.


A mente da pessoa é a chave na guerra espiritual. O diabo é um intrometido que tenta arrastar todo mundo. Procure agradar Deus e deixe de lado as opiniões dos outros.


11. Observa a Regra o mais fielmente possível.


Jesus se refere à Regra de uma ordem religiosa aqui. Mas todos nós já fizemos algum tipo de voto ou promessa diante de Deus e da Igreja e precisamos ser fiéis a isso: promessas batismais, votos matrimoniais etc. Satanás nos tenta para nos levar à infidelidade, à anarquia e à desobediência. A fidelidade é uma arma para a vitória.


12. Se experimentares dissabores, pensa antes no que poderias fazer de bom pela pessoa que te faz sofrer.


Ser um canal da misericórdia divina é uma arma para fazer o bem e derrotar o mal. O diabo trabalha usando o ódio, a raiva, a vingança, a falta de perdão. Muitas pessoas já nos ofenderam. O que devolveremos em troca? Responder com uma bênção destrói maldições.


13. Evita a dissipação.


Uma alma faladeira será mais facilmente atacada pelo demônio. Derrame seus sentimentos somente diante do Senhor. Os sentimentos são efêmeros. A verdade é sua bússola. O recolhimento interior é uma armadura espiritual.


14. Cala-te quando te repreenderem.


Todos nós já fomos repreendidos em algum momento. Não temos nenhum controle sobre isso, mas podemos controlar nossa resposta. A necessidade de ter a razão o tempo todo pode nos levar a armadilhas demoníacas. Deus sabe a verdade. Deixe-a ir. O silêncio é uma proteção. O diabo pode utilizar a justiça própria para nos fazer tropeçar também.


15. Não peças a opinião a todos, mas do teu diretor: diante dele sê franca e simples como uma criança.


A simplicidade da vida pode expulsar os demônios. A honestidade é uma arma para derrotar Satanás, o mentiroso. Quando mentimos, colocamos um pé no terreno dele, e ele tentará nos seduzir mais ainda.


16. Não te desencorajes com a ingratidão.


Ninguém gosta de ser subestimado. Mas quando nos encontramos com a ingratidão ou com a insensibilidade, o espírito de desânimo pode ser um peso para nós. Resista a todo desânimo, porque isso nunca vem de Deus. É uma das tentações mais eficazes do diabo. Seja grato diante de todas as coisas do dia e você sairá ganhando.


17. Não indagues com curiosidade os caminhos pelos quais te conduzo.


A necessidade de conhecer e a curiosidade pelo futuro são tentações que levaram muitas pessoas aos quartos escuros do ocultismo. Escolha caminhar na fé. Decida confiar em Deus, que o leva ao caminho do céu. Resista sempre ao espírito de curiosidade.


18. Quando o enfado e o desânimo bateram à porta do teu coração, foge de ti mesma e esconde-te no Meu Coração.


Jesus entrega a mesma mensagem pela segunda vez. Agora Ele se refere ao tédio. No começo do Diário, Ele disse a Santa Faustina que o diabo tenta mais facilmente as almas ociosas. Tenha cuidado com isso, porque as almas ociosas são presa fácil do demônio.


19. Não tenhas medo da luta: a própria coragem muitas vezes afasta as tentações, que não ousa então acometer-nos.


O medo é a segunda tática mais comum do diabo (a primeira é o orgulho). A coragem intimida o diabo; ele fugirá diante da perseverante coragem que se encontra em Jesus, a rocha. Todas as pessoas lutam, e Deus é nossa provisão.


20. Combate sempre com a profunda convicção de que eu estou contigo.


Jesus pede a Santa Faustina que lute com convicção. Ela pode fazer isso porque Cristo a acompanha. Nós, cristãos, somos chamados a lutar com convicção contra todas as táticas demoníacas. O diabo tenta aterrorizar as almas, mas precisamos resistir ao seu terrorismo. Invoque o Espírito Santo ao longo do dia.


21. Não te guias pelo sentimento, por que ele nem sempre está em teu poder, porem todo o mérito reside na vontade.


Todo mérito radica na vontade, porque o amor é um ato da vontade. Somos completamente livres em Cristo. Precisamos fazer uma escolha, uma decisão para bem ou para mal. Em que lado vivemos?


22. Nas mínimas coisas sê sempre submissa às superioras.


Aqui, Jesus está instruindo uma freira. Todos nós temos o Senhor como nosso superior (representado também pelos padres, confessores, diretores espirituais). A dependência de Deus é uma arma de guerra espiritual, porque não podemos ganhar por nossos próprios meios.


23. Não te iludo com perspectivas da paz, e de consolos, mas prepara-te antes para grandes batalhas.

Santa Faustina sofreu física e espiritualmente. Ela estava preparada para grande batalhas, pela graça de Deus. Cristo nos instrui claramente na Bíblia a estar preparados para grandes batalhas, para revestir-nos da armadura de Deus e resistir ao diabo (Ef 6, 11).


24. Fica a saber que estás atualmente em cena e que toda a Terra e o Céu inteiro te observam.


Estamos todos em um grande cenário no qual o céu e a terra nos olham. Que mensagem estamos dando com nossa forma de vida? Que tonalidades irradiamos: Luz? Escuridão? Cinza? A forma como vivemos atrai mais luz ou escuridão? Se o diabo não conseguir nos levar para a escuridão, tentará nos manter na categoria dos medíocres, do cinza, que não é agradável a Deus.


25. Lute como uma valorosa guerreira, para que eu possa recompensar-te; e não temas, porque não estás sozinha.


As palavras do Senhor a Santa Faustina podem se transformar em nosso lema: “Lute como um guerreiro(a)!”. Um soldado de Cristo sabe bem a causa pela qual luta, a nobreza da sua missão, conhece o Rei ao qual serve; e luta até o final, com a abençoada certeza da vitória.


Se uma jovem polonesa, sem formação, uma simples freira, unida a Cristo, pode lutar como um cavaleiro, um soldado, todo cristão pode fazer o mesmo. A confiança é vitoriosa.



Fonte: https://pt.aleteia.org/2022/02/20/25-segredos-que-jesus-revelou-a-santa-faustina-para-lutar-contra-o-demonio/



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7º. dia, 28 de Fevereiro - "Não somos órfãos, Maria é Mãe da esperança",
por Papa Francisco em 10.05.2017


Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

No nosso itinerário de catequeses sobre a esperança cristã, hoje meditamos sobre Maria, Mãe da esperança. Maria atravessou mais de uma noite no seu caminho de mãe. Desde a primeira menção na história dos evangelhos, a sua figura destaca-se como se fosse o personagem de um drama. Não foi simples responder com um «sim» ao convite do anjo: e no entanto, ainda na flor da idade, ela respondeu com coragem, não obstante nada soubesse do destino que a esperava

Maria, naquele instante, parece uma das muitas mães do nosso mundo, corajosas até ao extremo quando se trata de acolher no próprio ventre a história de um novo homem que nasce. Aquele «sim» foi o primeiro passo de uma longa lista de obediências — longa lista de obediências! — que acompanharão todo o seu itinerário de mãe. Assim, nos evangelhos Maria aparece como uma mulher silenciosa, que com frequência não compreende tudo o que acontece ao seu redor, mas medita cada palavra e acontecimento no seu coração.

Nesta perspectiva, podemos ver um perfil belíssimo da psicologia de Maria: não é uma mulher que se deprime face às incertezas da vida, especialmente quando nada parece correr bem. Nem sequer uma mulher que protesta com violência, que se enfurece contra o destino da vida que muitas vezes nos revela um semblante hostil. Ao contrário, é uma mulher que ouve: não vos esqueçais que existe sempre uma grande relação entre a esperança e a escuta, e Maria é uma mulher que ouve. 

Maria acolhe a existência do modo como se apresenta a nós, com os seus dias felizes, mas também com as suas tragédias que nunca gostaríamos de ter encontrado. Até à noite suprema de Maria, quando o seu Filho foi pregado na cruz. Até àquele dia, Maria tinha quase desaparecido da trama dos evangelhos: os escritores sagrados deixam entender este lento escondimento da sua presença, o seu permanecer muda diante do mistério de um Filho que obedece ao Pai. 

Contudo, Maria reaparece precisamente no momento crucial: quando grande parte dos amigos fogem por terem medo. As mães não traem, e naquele instante, aos pés da cruz, nenhum de nós pode dizer qual tenha sido a paixão mais cruel: se a de um homem inocente que morre no patíbulo da cruz, ou a agonia de uma mãe que acompanha os últimos instantes da vida do seu filho. 

Os evangelhos são lacônicos e extremamente discretos. Mencionam com um simples verbo a presença da Mãe: «estava» (Jo 19, 25). Ela estava. Nada dizem sobre a sua reação: se chorou ou não... nada; nem uma pincelada para descrever a sua dor: sobre esses pormenores mais tarde teria irrompido a imaginação de poetas e pintores que nos deixaram imagens que entraram na história da arte e da literatura. 

Contudo, os evangelhos dizem só: ela «estava». Estava ali, no momento mais triste, mais cruel, e sofria com o filho. «Estava». Maria «estava», simplesmente estava lá. Ei-la novamente, a jovem de Nazaré, agora com cabelos brancos pelo passar dos anos, ainda ocupada com um Deus que só deve ser abraçado, e com uma vida que chegou ao limiar da escuridão mais densa. Maria «estava» na escuridão mais espessa, mas «estava».

Não foi embora. Maria está fielmente presente, cada vez que surge a necessidade de manter uma vela acesa num lugar de bruma e neblina. Nem ela conhece o destino de ressurreição que o seu Filho estava a abrir naquele instante para todos nós, homens: está ali por fidelidade ao plano de Deus do qual se proclamou serva no primeiro dia da sua vocação, mas também por causa do seu instinto de mãe que simplesmente sofre, cada vez que um filho atravessa uma paixão. 

Os sofrimentos das mães: todos nós conhecemos mulheres fortes que enfrentaram muitos sofrimentos dos filhos! Encontrá-la-emos no primeiro dia da Igreja, ela, mãe de esperança, no meio daquela comunidade de discípulos tão frágeis: um negou, muitos fugiram, todos sentiram medo (cf. At 1, 14). Mas ela simplesmente estava ali, do modo mais normal, como se fosse algo totalmente natural: na primeira Igreja envolvida pela luz da Ressurreição, mas também pelos tremores dos primeiros passos que devia dar no mundo.

Por isso, todos nós a amamos como Mãe. Não somos órfãos: temos uma mãe no céu, que é a Santa Mãe de Deus. Porque nos ensina a virtude da esperança, até quando tudo parece sem sentido: ela permanece sempre confiante no mistério de Deus, até quando Ele parece desaparecer por culpa do mal do mundo.

Que nos momentos de dificuldade, Maria, a Mãe que Jesus ofereceu a todos nós, possa sempre amparar os nossos passos e dizer ao nosso coração: «Levanta-te! Olha em frente, olha para o horizonte», porque Ela é Mãe de esperança. 

Obrigado.


Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/livro-eletronico-catequeses-papa-francisco-esperanca/

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6º. dia, 27 de Fevereiro - Coerência: edificar a ordem interior,
por José Benito Cabaniña e Carlos Ayxelà


Quando Santo Agostinho, já ancião, escrevia “pax omnium rerum tranquillitas ordinis” – “a paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem”, fazia-o com base na experiência de quem levava anos vendo-se requisitado constantemente por todo tipo de tarefas: o governo pastoral da porção do Povo de Deus que estava aos seus cuidados; sua pregação abundante; os desafios de uma época convulsionada de mudanças sociais e culturais. Não é isso, pois, um aforismo escrito no sossego do retiro, mas no fragor da vida diária, com todos os seus imprevistos e vai e vens. A coerência desse santo era uma conquista cotidiana; com o passar dos dias, o seu esforço por “acertar o alvo” consolidava mais e mais o seu caráter.

Uma das características da personalidade madura é a capacidade de unir uma atividade intensa com a ordem e a paz interior. Alcançar este equilíbrio implica num certo esforço: São Josemaria também falava da sua luta nesse campo. “Queria te ver dentro da minha batina!” – dizia a uma pessoa que lhe falava das dificuldades que gerava o trabalho para cuidar da sua formação – Porque também eu tenho muitas tarefas. Em cima dessa desordem temos de edificar a ordem”. A ordem, a coerência da nossa vida, é um botim que vamos ganhando, moeda a moeda, na batalha de todos os dias: “começar pela tarefa menos agradável e mais urgente (...), ser perseverante no dever quando era tão fácil abandoná-lo, não deixar para amanhã o que temos de terminar hoje... E tudo isto para dar gosto ao Nosso Pai Deus!


O Autodomínio


Essa batalha serena não tem a ver só com as coisas que usamos e as tarefas que enchem nosso dia, mas também com o nosso coração. Sem essa pulsação interior, a ordem seria só gestão do tempo, “otimização de processos”, eficácia empresarial, porém não demonstraria autêntica maturidade cristã. A coerência do cristão se edifica num fluxo constante, de dentro para fora e de fora para dentro; cresce com o domínio de si, a ordem nas atividades, o recolhimento interior e a prudência.

Não ignoramos os obstáculos que existem para alcançar esta harmonia interior. Apesar de apreciarmos a grande atração que uma vida cristã plena constitui, muitas vezes, experimentamos tendências diversas e, às vezes, contrárias. São Paulo o expressou com força: “quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Como homem interior, ponho toda a minha satisfação na Lei de Deus; mas sinto em meus membros outra lei, que luta contra a lei de minha mente e me aprisiona na lei do pecado, que está nos meus membros

Sentimos uma coisa e queremos outra, notamos que estamos divididos entre as coisas de que gostamos e o que devemos fazer, e, às vezes, a nossa vista acaba perdendo um pouco de luz; inclusive podemos chegar a pensar que afinal, não importa sermos um pouco incoerentes, o que no fundo mostra que o nosso amor não é decidido.

E, no entanto, como brilha o louvor que Nosso Senhor fez a Natanael! “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há falsidade”. Quem procura conduzir-se de acordo com a voz de Deus que ressoa em sua consciência, inspira espontaneamente um grande respeito: as pessoas íntegras atraem, porque tudo nelas é autenticidade. Ao contrário, a vida dupla, as compensações – ainda que pequenas –, a falta de sinceridade, escurecem o rosto da nossa alma. Como todos estamos expostos a esses pequenos desvios de rumo, o caminho é sermos simples e corrigirmo-nos com perseverança; assim se evita o risco de acabar à deriva no alto mar da vida.


Para tocar a melodia de Deus


Se quisermos pôr ordem em nosso interior, não devemos desejar só que a nossa inteligência “domine” a imaginação e canalize a força dos sentimentos e afetos: temos que descobrir tudo o que esses companheiros de viagem podem e devem dizer. Dito de outra forma: não se pode corrigir a dissonância suprimindo uma das melodias: Deus nos fez polifônicos. O senhorio de si mesmo, também conhecido desde sempre como temperança, não é frieza cerebral: Deus nos quer com um coração que seja “grande, forte e terno, afetuoso e delicado”.

Com o coração podemos tocar uma música para o Senhor. Se quisermos interpretá-la bem, convém acertar o tom, como se afinam os instrumentos para que deem uma nota adequada. Trata-se de educar os afetos, de fomentar uma sensibilidade pelo que é autenticamente bom, porque responde a nosso ser pessoal, com todas as suas dimensões. Os sentimentos dão colorido à nossa vida e permitem perceber com maior riqueza o que acontece ao nosso redor. No entanto, do mesmo modo como um quadro saturado de cores sem equilíbrio não é agradável, ou um instrumento desafinado incomoda, o coração abandonado ao vai-e-vem sentimental racha a harmonia de nossa personalidade, e rompe, às vezes de modo importante, nossas relações com os outros.

São Josemaría aconselhava pôr “sete ferrolhos” no coração. Em uma ocasião, explicava-o assim: fechai-o com os sete ferrolhos que recomendo: um para cada pecado capital. Porém não deixeis de ter coração”. A experiência acumulada de séculos, também nos lugares aonde o cristianismo não chegou, mostra que os afetos e os instintos sem controle podem arrastar-nos como as águas de uma enchente que espalha destruição por onde passa. 

Não se trata de anular a corrente, mas de fazer um trabalho parecido com o dos engenheiros que canalizam a água que desce das torrentes das montanhas para que movam uma turbina e produza eletricidade. Uma vez controlada a corrente – que poderia ter arrasado árvores e casas –, todos podem viver tranquilos e aproveitar essa eletricidade para iluminar e aquecer suas casas. Se nosso espírito não consegue controlar de maneira estável essas forças instintivas e afetivas de nossa natureza, não pode ter paz nem sossego: não pode existir vida interior.


Tomar as rédeas do nosso dia


Um passo importante para sermos senhores de nós mesmos é o de superar a preguiça, um vírus silencioso, porém eficaz, que pode nos paralisar pouco a pouco se não o mantivermos na linha. A preguiça se fortalece em quem não tem um norte, ou também em quem, tendo-o, não começa a andar em sua direção.Não confundas a serenidade com a preguiça, com o desleixo, com o atraso nas decisões ou no estudo dos assuntos”. Pôr a cabeça no que requer nossa atenção, evitar fugir do que supõe um pouco de esforço, não deixar para depois o que podemos fazer agora... Sobre esses hábitos se constrói uma personalidade ágil, forte e serena.

Também convém estar atento ao outro extremo, o ativismo desordenado: “ Filho, que tua atividade não esteja em muitas coisas: se te apressares, não estarás isento de delito; se perseguires, não alcançarás e, se correres, não escaparás”. Maturidade de personalidade significa aqui ponderação, ordem em nossa atividade. Para que a vida não nos afogue com seus infinitos requerimentos, será melhor tomar a iniciativa para distribuir nossa atividade nos tempos adequados, ou seja, planejar – sem ficar quadriculados – dando prioridade ao que deve estar em primeiro lugar e não ao que aparece em cada momento

Assim evitamos que o urgente se sobreponha ao importante. Logicamente, não é preciso programar tudo, porém evitar que a improvisação leve à perda de tempo porque simplesmente nos dedicamos a correr atrás do que acontece durante o dia. Neste sentido, dizia São Josemaría que “é preciso ter ordem porque não temos tempo de fazer tudo de uma vez”.

Em nosso dia há alguns momentos chave que podemos fixar previamente: a hora de dormir, a hora de acordar, os tempos que vamos dedicar exclusivamente a Deus, a hora de trabalhar, a hora das refeições... Depois está o campo de fazer bem o que devemos fazer, com rendimento, atenção e perfeição, ou seja, com amor. “Cumpre o pequeno dever de cada momento; faz o que deves e está no que fazes”. 

Trata-se, em última análise, de um programa de santidade que não tem limites, porque se ordena a um grande fim: fazer feliz a Deus e aos outros. Ao mesmo tempo, esse amor que nos leva a ter um horário nos indicará quando devemos “quebrar” o plano, porque o bem de outras pessoas o exige, ou por tantos outros motivos que se apresentam com claridade para quem vive em presença Deus.


Cultivar o espaço interior


A interioridade é o centro vivo da pessoa, o que faz com que suas forças, qualidades, disposições de ânimo e ações formem uma unidade. Quem é capaz de viver dentro de si, de recolher os sentidos e potências até sossegar a alma, desenvolve uma personalidade mais rica, porque é mais capaz de relacionar-se, de dialogar.O silêncio – dizia Bento XVI – é parte integrante da comunicação e sem ele não existem palavras com densidade e conteúdo”.

Para não limitar-se a nadar na superfície da vida, é preciso dedicar tempo a refletir sobre o que nos aconteceu, o que lemos, o que nos disseram, e, sobretudo as luzes que recebemos de Deus. Refletir alarga e enriquece nosso espaço interior: nos ajuda a integrar as diversas facetas de nossa vida – trabalho, relações sociais, descanso, etc. – com o projeto de vida cristã que realizamos com a ajuda do Senhor. Este hábito implica aprender a entrar em nossa alma, superando a pressa, a impaciência, a dispersão. Abre-se assim um espaço de meditação na presença de Deus: “Quem de nós, à noite, antes de terminar o dia, fica sozinho, e faz-se a pergunta: o que aconteceu hoje no meu coração? O que aconteceu? Que coisas aconteceram através do meu coração?”.

Conseguimos esse sossego de espírito quando nos afastamos das tensões da vida e detemos a imaginação e as solicitações dos assuntos pendentes; quando detemos o ritmo da vida exterior e calamos tanto por fora como dentro de nós. Dessa maneira, nossos conhecimentos e experiências adquirem profundidade, aprendemos a admirar, a contemplar, a saborear os bens do espírito, a escutar a Deus. Com esta riqueza interior, quando saímos de nós poderemos desfrutar mais a comunicação com os outros, pois teremos algo pessoal, algo nosso, para contribuir.

No silêncio, poderemos escutar a voz do Senhor. Quando Deus quer passar diante de Elias no monte Horeb, a Sagrada Escritura nos diz que não estava na violência do furacão que quebrava as pedras, nem no tremor do terremoto, nem no fogo que o seguiu, mas numa brisa que mal se notava. Calar-se é muito bom; não é nenhum vazio, mas vida autêntica e plena se permite estabelecer um diálogo íntimo com Deus.Um fio sonoro de silêncio: assim se aproxima o Senhor, com a sonoridade do silêncio que é próprio do amor”.


A sabedoria do coração


“Inteligente é o que possui o coração sábio. A capacidade de recolhimento nos permite consolidar cada vez com mais profundidade os motivos que dirigem nossa vida. A coerência amadurece então como a fruta ao sol, e verte-se em nós o licor da sabedoria que nos ajuda a acertar em nossas decisões.

Nem sempre é necessário dar respostas imediatas ao que nos aparece. A prudência, muitas vezes, levará a informar-nos bem antes de julgar ou tomar uma decisão, porque, frequentemente, as coisas não são como parecem à primeira vista. Uma pessoa madura caracteriza-se por estudar os assuntos com atenção, recorrer à memória de experiências passadas com temas semelhantes e pedir conselho a quem está em condições de dá-lo. E, antes de tudo, algo que para um cristão é muito natural, quase um reflexo: pedir conselho a Deus: “não tomes uma decisão sem te deteres a considerar o assunto diante de Deus”. 

Assim é mais fácil aplicar à situação concreta um juízo ponderado, sem ceder à superficialidade, à comodidade, ao peso da vida passada, ou à pressão do ambiente. E ter a valentia de tomar a decisão – ainda que toda decisão traga um risco – e de executá-la sem demoras, com a disposição de retificar, se mais tarde percebermos que nos enganamos.

A coerência cristã – fruto de uma interioridade cultivada – nos coloca em última instância em condições de entregar-nos a um ideal e de perseverar nele. “Senhor, dá-me graça para largar tudo o que se refira à minha pessoa. Eu não devo ter outras preocupações exceto a tua Glória..., numa palavra, o teu Amor. – Tudo por Amor!”




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5º. dia, 26 de Fevereiro - Rotina e Amor
(Adaptação de um capítulo do livro do Pe. Francisco Faus: "Cristo, minha esperança")


Um trabalho cansativo e inútil


Há uma cena encantadora, no final do Evangelho de São João (Jo 21,1 ss.), que hoje nos vai ajudar a meditar sobre a nossa vida, a pensar diante de Deus, concretamente, no sentido do nosso dia-a-dia, que tantas vezes nos parece monótono e cinzento.

Trata-se de uma cena de pesca, de um fato que aconteceu depois da ressurreição de Cristo, quando os Apóstolos, a pedido de nosso Senhor, já tinham subido de Jerusalém para a Galiléia. Lá, certo dia, se encontravam juntos cinco deles (Pedro, Tomé, Bartolomeu ou Natanael, Tiago e João e outros dois cujo nome não se menciona). Estavam novamente à beira do lago de Genesaré, palco que fora do seu trabalho profissional e também lugar de encontros inesquecíveis com Jesus.

Estava caindo a tarde. Pedro, então, disse aos outros: "Vou pescar", e assim o fizeram: Partiram e entraram na barca. Naquela noite, porém, não pescaram nada.

Após uma noite de esforços inúteis – lançar a rede, recolhê-la vazia! -, estavam voltando para a praia em silêncio, como antigamente já lhes acontecera (cf. Lc 5, 5), e seus corações estavam tão cinzentos como a cor das nuvens do ante-amanhecer.

O coração inundado pela neblina cinza e triste de um trabalho inútil! Essa é a cor de muitos corações, quando sentem o peso da rotina dos dias: sempre o mesmo trabalho, sempre os mesmos lugares, sempre as mesmas caras, sempre o mesmo trânsito, sempre as mesmas reclamações da mulher, sempre os mesmos mutismos e alheamentos do marido, e os mesmos problemas dos filhos, e a mesma dor de coluna, e a mesma falta de dinheiro... E isso, um dia e outro dia, e um mês e outro mês, e um ano e outro ano... As pessoas sentem-se envolvidas por essa rotina como por um gás asfixiante, e pode chegar um momento muito perigoso, que é quando pensam: “Não aguento mais, isto não é vida”.


A solução será “mudar”?


Muitos acham, então, que a solução consiste em “mudar” (mudar de cidade, mudar de mulher ou de marido, mudar de trabalho, mudar de religião, mudar os hábitos certos e passar a ter vida desregrada). Ou então “desligam” de tudo e de todos, e passam a viver num mundo de sonhos, de fantasias (divagações de Internet e tv), de saudades..., que, por serem evasões, facilmente desembocam na pior fuga, na alienação completa do álcool e das drogas.

Santo Agostinho, o coração inquieto que não se conformava com as coisas confusas e medíocres, dizia: “Eu temia tanto como à morte ficar preso pelo hábito rotineiro” (Et tamquam mortem reformidabam restringi a fluxu consuetudinis). Mas não resolveu o problema fugindo, e sim arrependendo-se dos seus pecados e procurando Deus com toda a sua alma.

Todos deveríamos ter pavor tanto da rotina asfixiante como da falsa solução da fuga... Porque o problema da rotina – contrariamente ao que a maioria pensa – não está na repetição monótona das ações e das circunstâncias externas, mas na falta de renovação do nosso coração, do nosso modo de ver e amar as coisas e as pessoas. O mal está exclusivamente dentro de nós, gostemos ou não de reconhecer isso.

É muito sugestiva, a respeito disso, aquela história que conta Chesterton sobre o inglês que se sentia entediado de morar sempre na mesma ilha, e por isso foi à procura de outra terra, a terra dos seus sonhos. Viajou muito. Todos os países aonde aportava não o satisfaziam. Já se estava cansando de tanto viajar, quando avistou uma terra que o atraiu extraordinariamente. Aproximou-se dela, desembarcou, começou a internar-se no território e logo chegou, cheio de entusiasmo, à conclusão: “Esta é a terra dos meus sonhos, a que sempre andei procurando!” Ao perguntar a um dos habitantes onde estava, este respondeu-lhe: “Na Inglaterra”.

Algo de parecido acontece conosco. Não precisamos ir atrás de outras “ilhas”. Basta ficarmos na nossa – na nossa vida real - , mas vendo-a e vivendo-a com frescor de novidade. Isto é o que Jesus nos ensina. Voltemos, então, à nossa cena de pesca.


Jesus na luz do amanhecer


O Evangelho, após falar da pesca falha, continua a contar: Ao romper o dia, Jesus apresentou-se na margem, mas os discípulos não o reconheceram. Jesus disse-lhes então: “Rapazes, tendes alguma coisa que comer?". É tocante verificar que Jesus ressuscitado apresenta-se aos apóstolos humano, afetuoso, familiar, não com uma majestade gloriosa e distante. Fala familiarmente: "Rapazes!" Pergunta se têm algo que se possa comer. Ele quer mostrar-nos que, depois da ressurreição (agora, portanto!), deseja viver junto de nós como um amigo muito próximo, compreensivo, humano, inseparável.

Mas, como acontece conosco, sucedeu que os discípulos, com uma grande miopia espiritual, não perceberam que Jesus estava lá, sempre junto deles, e continuaram soturnos e tristonhos. Dá para imaginar o tom de aborrecimento com que devem ter respondido, incomodados, a Jesus: - ”Não! Não temos nada para comer!”. E acho que nosso Senhor – rei e senhor de toda a alegria - divertiu-se, humana e “divinamente”, quando lhes disse: "Lançai a rede ao lado direito da barca e encontrareis". Aconteceu o que já dá para imaginar: uma pesca milagrosa, abundantíssima. Lançaram a rede e, devido à grande quantidade de peixes, já não tinham forças para a arrastar. Jesus não faz as coisas pela metade.

Ao ver aquele milagre, João disse a Pedro: “É o Senhor!” João, o discípulo amado, foi o primeiro a ter sensibilidade para perceber que aquele desconhecido era Jesus, e avisou o “patrão” da barca, Pedro. E o bom Pedro, o Pedro emotivo e impulsivo que todos conhecemos, “deu uma de Pedro”: Simão Pedro, ao ouvir que era o Senhor, apertou o cinto da túnica, porque estava sem mais roupa, e lançou-se à água. Não pôde esperar que a barca chegasse à terra. Lançou-se de cabeça à água, ansioso por chegar a Jesus quanto antes! Pouco depois chegaram os outros na barca, arrastando a rede cheia.

E o que encontraram? Vamos prestar bem atenção. Vocês acham que encontraram um Jesus hierático, sentado numa cátedra de marfim, dizendo-lhes: “Vamos deixar-nos de coisas banais, materiais, agora que me reconheceram, e vamos falar do que importa: de coisas celestiais, de coisas elevadas, só das coisas espirituais, as únicas que contam”? Vocês acham que foi assim? É claro que não! Todos sabemos que foi bem diferente. Vejamos o que diz o Evangelho.

Ao saltarem em terra, viram umas brasas preparadas e um peixe em cima delas, e pão. Disse-lhes Jesus: “Trazei aqui alguns dos peixes que agora apanhastes...". E depois : "Vinde comer". E pronto! Lá ficaram sentados em roda, à volta da fogueirinha que o próprio Jesus acendera, sentindo o cheiro delicioso de peixe fresco assado – que Jesus já tinha começado a preparar, muito diligentemente, com as suas próprias mãos - , e repartindo pedaços de pão e comendo como uma alegre turma de amigos em piquenique de “feriadão”.



Jesus ama o “trivial cotidiano”


Jesus fez questão de valorizar, de mostrar como é importante o “trivial cotidiano”. Eu tenho um conhecido que até chorava de emoção ao pensar nesta cena: Você – dizia - não percebeu como é maravilhoso? Cristo farofeiro! O Filho de Deus, farofeiro!”

Esse meu amigo se alegrava justamente ao perceber o carinho com que Cristo vê e valoriza a nossa vida diária, as pequenas coisas da vida, que às vezes nos parecem tão longe dos grandes ideais, e concretamente tão longe do ideal cristão de Amor e de santidade... E esquecemos que Jesus passou trinta anos vivendo com amor a “rotina dos dias”, no lar de Maria e José, tendo uma vida normal, discreta e simples, de família, de trabalho..., sendo, como se lê no Evangelho, o carpinteiro, o filho do carpinteiro... E aquilo era a “vida do Deus feito homem”, cheia, portanto, de grandeza divina, de santidade. Com ela estava nos redimindo, estava nos salvando.

Se refletirmos um pouco, perceberemos que esta cena de Cristo que pesca juntamente com os discípulos, e prepara o almoço, e toma a refeição com os amigos, e conversa com eles à beira do lago é um símbolo do que deveria ser cada um dos nossos dias. Também nós podemos acordar cada manhã (pensemos na manhã da segunda-feira mais cinzenta de todas), e – se nos tivermos lembrado de rezar e oferecer o nosso dia a Deus – , poderemos ver, com a luz da fé, que Jesus está junto de nós e nos diz:Vamos começar o dia juntos, vamos trabalhar juntos, vamos tratar bem os outros, vamos fazer do “trivial cotidiano” uma aventura de Amor...”.

Seria tão bom que conseguíssemos ser cristãos que rezam, que se lembram com fé de Deus durante o dia inteiro! Bastaria, para isso, às vezes, trazer um crucifixo no bolso, ou um terço, e rezar as orações que amamos, também pela rua; e dizer muitas breves jaculatórias – do tipo “Jesus, eu te amo! Jesus, dá-me um coração como o teu!” – no trânsito, e ao iniciar uma tarefa, e ao morder os lábios para não xingar ou resmungar ou falar mal dos outros.... Se conseguíssemos conversar com Cristo até dos detalhes mais triviais, com certeza se acenderia uma luz nova no nosso coração e, com essa luz, veríamos de uma maneira “nova” todas as coisas que, com Ele, nunca ficam gastas, puídas, aborrecidas e rotineiras. Entenderíamos então por que Jesus nos diz: "Eis que eu faço novas todas as coisas" (Ap 21,5).


O “santo do cotidiano”


Há uma doutrina cristã maravilhosa, que São Josemaría Escrivá, como instrumento de Deus, proclamou com uma clareza e uma força tão grandes, que acendeu chamas de alegria e de amor em milhares de pessoas comuns – cristãos “vulgares” – em todo o mundo. A missão que Deus lhe confiou consistia em contribuir para que os cristãos comuns, que vivem no meio do mundo, compreendessem “que a sua vida, tal como é, pode vir a ser ocasião de encontro com Cristo: quer dizer, que é um caminho de santidade e de apostolado. Cristo está presente em qualquer tarefa humana honesta: a vida de um simples cristão – que talvez a alguns pareça vulgar e acanhada – pode e deve ser uma vida santa e santificante”.

E como conseguir viver esse ideal? São Josemaría mostrava o caminho: “Fazei tudo por amor – dizia -. Assim não há coisas pequenas: tudo é grande. – A perseverança nas pequenas coisas, por Amor, é heroísmo”. E aplicava esta doutrina – que é inspirada no Evangelho e em São Paulo ("se não tiver amor, nada me aproveita...": 1 Cor,13,3) – a todas as coisas cotidianas boas e normais: podemos sorrir, por amor, quando não temos vontade mas os outros precisam de “caras sorridentes”; podemos acabar, por amor, um trabalho que gostaríamos de interromper por cansaço; podemos colocar a roupa no seu lugar, oferecendo esse sacrifício a Deus, em vez de jogá-la em cima da cama ou no chão; podemos rezar as orações que nos propusemos, ainda que nos custe concentrar-nos, porque não queremos furtar a Deus, com desculpas de cansaço (que não teríamos para um jogo de futebol ou para assistir à telenovela) esses momentos que são para Ele.

São Josemaría Escrivá, quando estava nesta terra, ajudava as pessoas – e também agora continua a ajudá-las lá do Céu – a converter, com a graça de Deus, todos os momentos e circunstâncias da vida em ocasião de amar e de servir, com alegria e com simplicidade, e iluminar assim os caminhos da terra com o resplendor da fé e do amor. Para os que se propõem seriamente viver assim, a rotina é impossível. O amor e o desejo de servir fazem ver tudo como uma oportunidade única, inédita, de dar (amar é dar) algo a Deus e aos nossos irmãos. Feito com carinho, tudo se faz “novo”...

Lembro-me agora de um episódio de faz muitos anos. Fui certa vez comprar figuras de presépio a um artesão – um artista de verdade –, e lhe pedi uma figura igual a outra que ele tinha lá numa prateleira do ateliê. Disse-me rotundamente que não. Perguntei: "Mas não conserva o molde?" Ao ouvir essas palavras, levantou-se indignado, como se eu o houvesse ofendido, e gritou: “Molde! ...Molde!.. Eu não tenho molde. Cada figura é única e irrepetível”... Se cada dia nosso fosse assim, sem “molde” rotineiro, sem ser uma “peça em série” , que maravilha...!

Neste sentido é que Mons. Escrivá dizia: - “Não esqueçam nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir... Deus espera-nos cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. A vocação cristã consiste em transformar em poesia heróica a prosa de cada dia”.

E, ao falar disso, insistia com especial ênfase na santificação do trabalho. Incutia nas almas o ideal de realizar o trabalho por amor a Deus e com o empenho de servir ao próximo: trabalho bem feito, acabado, caprichado nos detalhes, digno de ser colocado no altar do coração e oferecido juntamente com Jesus-Hóstia na Santa Missa. Toda a vida do cristão se converteria assim numa Missa. É a isso que todos nós deveríamos aspirar.

Já imaginou como tudo mudaria se, ao terminar cada um dos nossos dias e fazer a nossa oração da noite, pudéssemos dizer: – "Amanhã vou começar um outro dia, uma nova etapa da minha “vida diária”. Mas agora já não vou encará-lo aborrecido, suspirando e dizendo: “mais um”. Não! Ajudado por Deus, vou entrar nele com a luz que Jesus acendeu no meu coração, e direi, com alegria: “Hoje começa mais um dia, novinho em folha, por estrear. Hoje se me apresenta mais uma ocasião de amar e de servir. Vou me esforçar – rezando, mantendo o mais possível a presença de Deus – por conseguir que o meu amor introduza belas novidades, atitudes renovadoras, na minha rotina de todos os dias”.



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4º. dia, 25 de Fevereiro - Mensagem de Dom Helder Câmara no Estádio de Bérgamo (Itália), no dia 19-10-80, em companhia de Madre Teresa de Calcutá


Em meio a momentos tão sombrios que vivemos nestes dias, à beira de uma 3ª. Guerra Mundial, encontrei um curto discurso de Dom Helder que fala sobre guerras e o direito à vida.

Projeto-homem: defender a vida, combater a fome 


Caríssimos amigos de Bérgamo e todos vós que viestes de outras cidades da caríssima Itália a esta bela cidade do Papa João, grande dom feito por Deus à Igreja! Querida Madre Teresa, cujo testemunho nos encoraja a continuar nosso trabalho e nossa luta a serviço do homem, que mais sofre! Que alegria estar aqui convosco neste Dia Mundial das Missões. 

Fomos chamados para tomar consciência do Projeto-Homem, que é o projeto de amor, que Deus, Criador e Redentor, sonhou, de toda eternidade, para o homem, para todo homem que vem a este mundo. Hoje e em todas as partes da Terra, o homem é ameaçado, sofre violência, é condenado à morte ainda antes de nascer, a maior parte dos nossos irmãos sofre fome, miséria e injustiça. 

Estamos aqui para defender a vida do homem, desde o primeiro instante de sua geração. Estamos aqui para renovar o nosso compromisso de lutar com a não-violência ativa dos fortes contra a fome e contra toda injustiça. Estamos aqui para glorificar a Deus, como Criador e Autor da Vida, e do verdadeiro desenvolvimento.

Que grande dom o Senhor nos faz, tirando-nos do nada e chamando-nos à vida! Já repararam como o orgulho é atitude sem inteligência? Qualquer um de nós poderia deixar de ter nascido e ninguém daria pela nossa falta, nem saberia nosso nome, nem se lembraria de perguntar por nós... Sabem quando medi melhor o dom da vida? Eu estava em nossa diocese de Olinda e Recife, acompanhando uma senhora francesa, na visita a uma favela. Em certo momento, nossa visitante disse, em francês: “Mas, quanta miséria!” 

Uma senhora da favela, que nos acompanhava, perguntou: “Parece que ela falou em miséria!?...” E continuou dizendo: “Da minha parte, eu não me sinto miserável. Moro aqui. Passo fome. Minha casa não merece o nome de casa. Mas eu não troco meus dois olhos por dinheiro nenhum do mundo. O mesmo eu digo dos meus dois ouvidos, do meu nariz, de minha boca, das minhas mãos, dos meus pés, da minha cabeça, do meu coração...” 

E ainda não falei – disse a moradora da favela – ainda não falei na minha fé. Podem juntar todo o ouro da Terra e o dinheiro de todos os bancos que eu não troco por minha fé naquele Pai, e no nosso Salvador Jesus Cristo, e em nossa Mãe, Nossa Senhora!

Quando uma Criatura se mata tenho certeza de que, ao menos na hora do suicídio, estava fora de si. Nosso amor à vida é tão instintivo que a criatura que se mata, estava louca de sofrimento e de desespero. Deus há de ter compaixão dos suicidas. E que pensar de quem tira a vida alheia, de quem mata o próximo? Cristo ensinou que a gente não pode julgar. Tenho esperança de que o assassino esteja fora de si, movido pelo ódio ou cego pela ambição. Mas, desde Caim, o Livro Santo nos fala do horror de tirar a vida do próximo... E que dizer de um filho que mata a própria mãe?... O povo fica tão revoltado, que quer logo linchar aquele que parece um monstro.

E que pensar da mãe que mata o próprio filho e filha inocente, que nem sabe, nem pode defender-se?... E que pensar de quem ainda quer uma lei para dar cobertura à mãe-assassina, e declarar inocente quem mata o filhinho no próprio seio, antes mesmo de ele chegar a ver a luz do dia.

E pensar, e saber que Jesus Cristo, o Filho de Deus, sem deixar de ser Deus, igual ao Pai e ao Espírito Santo, se fez homem, especialmente para ensinar que Deus, todo-poderoso e cheio de majestade, quer ser Pai, mas quer ser Pai de todos nós. Ele, de modo algum, quer ser Pai só de um pequeno grupo, rico e sempre mas rico, e padrasto de mais de 2/3 da humanidade. 

Cristo veio para que todos tenham vida e vida em abundância. Para nós, cristãos, só se pode falar em desenvolvimento, quando se trata, como ensinou Paulo VI e ensina o nosso querido João Paulo II, do desenvolvimento do homem todo e de todos os homens... É um absurdo chamar de desenvolvimento o mero crescimento econômico de grupos privilegiados, com esmagamento de milhares e até milhões de concidadãos, mantidos na miséria e na fome, mantidos em condições subumana. 

Mas, nós, cristãos, sem esquecer as estruturas pesadas que esmagam milhões de filhos de Deus, somos e devemos ser filhos da esperança! É verdade que, quando olhamos o mundo, a vinte anos do Ano 2000 do nascimento de Cristo, a impressão que temos é que, para a maior parte da humanidade, ainda é Sexta-Feira Santa. 

No fim da tarde de Sexta-Feira Santa, no Calvário, a impressão tremenda era de fracasso total do Mestre. De que tinha adiantado Cristo ter atravessado a vida fazendo o bem, pregado como nunca ninguém pregou, anunciado a boa nova aos padres, se terminara morrendo na cruz entre dois ladrões, e enterrado como um mortal qualquer?

Engano total! Na madrugada do 3º. dia, Cristo, vencendo a morte, ressuscitou, glorioso. E a ressurreição de Cristo é garantia de nossa própria ressurreição. Mais ainda: embora tenhamos certeza de que não temos aqui morada permanente e de que somos todos peregrinos em marcha para a nossa Casa da Eternidade, não estamos dispensados de trabalhar pela paz, o que supõe, necessariamente, trabalhar, de modo pacífico, mas decidido e corajoso para que haja justiça e amor, como caminho indispensável para a paz. 

Velemos para que ninguém ouse tentar separar Cristo de sua Igreja. Nem separar, na Igreja, progressistas e conservadores, verticalistas e horizontalistas... Cristo disse que o 1º.  e o maior dos mandamentos é amar a Deus sobre todas as coisas. Mas logo acrescentou que o 2º. mandamento, amar o próximo, é igual ao primeiro, amar a Deus. 

Sejamos sempre mais apóstolos de Cristo e de sua Igreja. Sejamos apóstolos da Vida eterna, mas Vida eterna que começa agora e aqui, pois é agora e aqui que construímos a nossa eternidade. Trabalhemos, sem descanso, para que todos os homens vejamos em Deus um Pai e não um padrasto. Trabalhemos para que todos tenham vida e vida em abundância, não só na eternidade, mas já começando agora e aqui. Na América Latina, o povo, confiando em Cristo e em sua igreja, canta: 

“Queremos terra na Terra! 
Já temos terra no Céu.”




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3º. dia, 24 de Fevereiro - Excerto do livro "O Castelo Interior" 
por Santa Teresa D'Ávila


"[...] Voltemos agora ao nosso castelo de muitos aposentos. Não haveis de imaginá-lo uns depois de outros, enfileirados. Não! Ponde os olhos no centro: aí está o salão principal, onde se encontra o Rei. 

Considerai-os como num palmito. Para chegar à medula saborosa, há muitas camadas envolvendo-a inteiramente. Assim aqui: em redor e também por cima deste salão há muitos outros salões, iluminados pelo Sol que reside no centro e se comunica a todas as dependências. 

Efetivamente, sempre se devem considerar as coisas da alma com plenitude, amplidão, grandeza, sem receio de exagerar. Sua capacidade excede qualquer consideração humana. O que muito importa para qualquer alma que tenha oração, pouca ou muita, é não haver constrangimento, não se sentir obrigada a fixar-se num único lugar. Deixem-na circular por estas moradas, em cima, embaixo, dos lados, já que Deus a elevou a tão grande dignidade. Não a forcem a estar muito tempo numa só peça, ainda que seja a do próprio conhecimento, por mais necessário que seja. 

Quero que me entendam bem: mesmo aquelas que o Senhor tiver atraído ao aposento íntimo em que ele se encontra, por enlevadas que aí estejam, não se descuidem do conhecimento próprio. Nem poderão descuidar, ainda querendo, porque a humildade é como abelha, não fica ociosa, está sempre lavrando o mel na colméia. Sem isso, vai tudo perdido. 

Por outro lado, consideremos que a abelha não deixa de sair e voar para sugar as flores. A alma ocupada em conhecer-se, alce vôo algumas vezes. Considere a grandeza e majestade de seu Deus. Constatará sua baixeza muito mais do que olhando para si. Estará mais a salvo dos animalejos imundos que entram nas primeiras peças, as do conhecimento próprio. Embora seja grande misericórdia de Deus exercitar-se no próprio conhecimento, o mais está incluído no menos, como se costuma dizer. E creiam-me: com a virtude de Deus, praticaremos melhor a virtude do que vivendo atadas ao nosso barro.

Não sei se falei bem claro. É tão importante este conhecimento de nós mesmas, que não quisera jamais descuido neste ponto, por elevadas que estejais nos céus. Enquanto vivemos nesta terra, não há coisa que mais importe para nós do que a humildade.

Torno a dizer: é muito bom, é sumamente bom entrar primeiro no aposento do conhecimento próprio, antes de voar aos outros. É este o caminho. Se podemos ir por estrada segura e plana, porque desejar asas para voar? Tratemos, pelo contrário, de progredir no primeiro aposento, aprofundando o conhecimento de nós mesmas. Se não procuramos conhecer a Deus, jamais acabaremos de nos conhecer a nós mesmas. 

Olhando-lhe a grandeza, percebemos nossa abjeção. Contemplando-lhe a pureza, vemos nossa sujeira. Considerando-lhe a humildade, conhecemos como estamos longe de ser humildes. Há nisso duas vantagens: primeiramente, claro está que uma coisa branca parece mais alva junto a uma preta e, pelo contrário, uma preta junto a uma branca. 

Segundo: nossa inteligência e nossa vontade se enobrecem e se tornam mais aptas para todo bem, pelo fato de se ocuparem ora de si, ora de Deus. Há muitos inconvenientes em nunca sairmos do lodo de nossas misérias.

Falando há pouco dos que estão em pecado mortal, dizíamos como são lodosos e fétidos os charcos de suas águas. Aqui não acontece o mesmo, embora — Deus nos livre! — as águas não sejam tão poluídas. É apenas uma comparação.

Se ficarmos sempre metidos na miséria de nosso barro, nunca dele brotarão arroios limpos, sem a lama dos temores, da pusilanimidade, da covardia, de pensamentos como os seguintes: “estão me olhando — não me estão olhando”; “por este caminho não me sairei bem”; “ousarei começar aquela obra?”; “será soberba uma pessoa tão miserável como eu tratar de assuntos tão altos como a oração?”; “vão me achar melhor que os outros, porque não sigo o caminho de todos”; “não são bons os extremos, ainda em matéria de virtude”; “como sou tão pecadora, cairei de mais alto”; “talvez não vá adiante e faça mal aos bons”; “a uma como eu, não convém singularidades”.

Valha-me Deus, filhas! Quantas almas terá o demônio arruinado por este meio! Torcendo o conhecimento próprio, tudo parece humildade. Todos os danos provêm de não nos conhecermos devidamente. Não me espanto desses e de outros males ainda maiores que se podem recear, pelo fato de nunca sairmos de nós mesmas.

Por isso vos digo, filhas: ponhamos os olhos em Cristo, nosso bem. Dele e de seus santos aprendamos a verdadeira humildade. Nosso intelecto se enobrece e nosso conhecimento próprio não nos deixa rasteiros e covardes. Ainda que esta seja apenas a primeira morada, é extremamente rica e de grande valor. Quem consegue escapulir das sevandijas, não deixa de passar adiante. 

Terríveis são os ardis e manhas do demônio, para que as almas não se conheçam, não progridam, nem entendam o caminho a seguir. Destes primeiros aposentos, por experiência, posso dar-vos boas informações. Ninguém imagine que sejam poucas salas. São milhares. E as almas entram aqui de muitas maneiras.

Todas têm boa intenção. Mas é tão mal intencionado o demônio, que guarnece cada aposento de muitas legiões de seus emissários, a fim de impedirem a passagem de umas peças para as outras. Como a pobre alma não o entende, ele a engana de mil maneiras. 

À medida que ela vai entrando nas salas mais próximas de onde está o Rei, o maligno vai perdendo força, conseguindo menos. Nas primeiras salas ainda se trata de pessoas absorvidas pelo mundo, engolfadas nos contentamentos, desvanecidas com as honras e pretensões mundanas. Os vassalos da alma, que são os sentidos e as faculdades, não possuem aquela força primordial com a qual, por natureza, Deus os criou. Facilmente essas almas se deixam vencer, embora desejem não ofender a Deus e façam boas obras.

Quem se vir neste estado, terá necessidade de recorrer frequentemente, quanto puder, à Sua Majestade. Tome por intercessores a bendita Mãe de Deus e todos os santos, para que venham lutar junto a si, já que seus criados são tão fracos para defendê-la. Na verdade, em todos os estados é preciso que o auxílio nos venha do Senhor. Digne-se Sua Majestade conceder-nos essa fortaleza, por sua misericórdia.

Amém [...]".


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2º. dia, 23 de Fevereiro - Excerto do livro "O Castelo Interior" 
por Santa Teresa D'Ávila


"[...]  De outro lado, a alma que está em graça é límpida como os regatos que brotam de fonte puríssima. Suas obras são agradáveis aos olhos de Deus e dos homens, porque procedem desse manancial de vida onde a alma está plantada como uma árvore à beira de um rio. Por isso não seca e dá bom fruto. Não teria viço nem daria fruto se não estivesse ali. Mas se a alma, por sua culpa, afasta-se dessa fonte e se transplanta para outro lugar de água negra e fétida, só produz desventura e imundície. 

É preciso esclarecer que a fonte, ou melhor, o Sol que resplandece no centro da alma nunca perde o brilho e o encanto. Ele está sempre ali, e nada pode lhe tirar a beleza. Mas, se se põe um pano negro sobre um cristal, certamente a luz não produzirá o mesmo efeito, embora continue incidindo nele. Oh, almas resgatadas pelo Sangue de Jesus Cristo, reconheçam a própria miséria e tenham dó de si mesmas! 

Como é possível que não procurem limpar a mancha desse cristal, uma vez que compreendem a sua situação? Vejam que, se a vida termina assim, jamais tornarão a gozar dessa luz. Oh, Jesus, que triste ver a alma separada dela! Como ficam desolados os aposentos do castelo! Como se perturbam os sentidos (que são a gente que aí vive)! E as faculdades da alma (que são os guardas, mordomos e mestres de cerimônias do castelo), que cegueira, que mau governo. Se a árvore está plantada junto à fonte do demônio, que fruto pode dar? 

Certa vez, um homem espiritual me disse que não se espantava do que faz quem está em pecado mortal, mas sim do que não faz. Deus nos livre, por sua misericórdia, de tão grande mal. Não há nada nesta vida que mereça ser chamado de mal, senão o pecado mortal, porque acarreta males eternos, sem fim. É isso, filhas, que devemos temer. Peçamos livramento a Deus em nossas orações

Se Ele não guarda a cidade, em vão trabalharemos, pois somos a própria vaidade. Aquela pessoa a quem Deus mostrou o estado da alma em pecado mortal dizia que essa graça produziu nela dois efeitos: o primeiro, um imenso temor de ofendê-Lo. Ciente de tão terríveis malefícios, sempre Lhe suplicava que não a deixasse cair. 

O segundo, ver nisso um espelho para a humildade, compreendendo que todo bem que fazemos não procede de nós mesmas, mas desta fonte onde está plantada a árvore das nossas almas, deste Sol que dá calor às nossas obras

Essa verdade se revelou tão claramente a ela que, fazendo ou vendo alguém fazer uma boa ação, reconhecia que, sem o auxílio divino, nada podemos. E louvava a Deus, sem atribuir a si mesma o mérito do que fizesse. Não será tempo perdido, irmãs, o que gastamos (eu escrevendo e vocês lendo isto), se ao menos nos ficarem esses dois ensinamentos que os letrados e estudiosos conhecem muito bem. 

Talvez o Senhor queira nos mostrar tais coisas para remediar a nossa extrema ignorância de mulheres. Por sua bondade, ele se alegra em nos conceder essa graça. A vida interior da alma é tão obscura e difícil de entender que, sabendo tão pouco, direi forçosamente muitas coisas supérfluas e até desatinadas antes de acertar em dizer algo de bom [...]".




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1º. dia, 22 de Fevereiro - Quarta-feira de Cinzas
Excerto do livro "O Castelo Interior" 
por Santa Teresa D'Ávila


"[...] Consideremos nossa alma como um castelo, feito de um só diamante ou de um cristal claríssimo, onde há muitos aposentos, à semelhança das muitas moradas que há no céu. Pensando bem, irmãs, a alma do justo é um paraíso onde o Senhor se deleita, como ele mesmo disse. Mas como será o aposento onde se rejubila um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro e tão rico? Nada se compara à beleza da alma e ao seu imenso potencial. 

Na verdade, o nosso intelecto, por mais agudo que seja, não chega a compreendê-la realmente, do mesmo modo que não pode compreender a Deus. Ele disse que nos criou à sua imagem e semelhança. Sendo assim, não nos cansemos, tentando descrever a beleza desse castelo. Entre ele e Deus, há tanta diferença como há entre a criatura e o Criador

No entanto, basta Sua Majestade dizer que ela é feita à sua imagem para que possamos avaliar a imensa dignidade e beleza da alma. É lamentável que, por nossa culpa, não conheçamos a nós mesmas nem saibamos quem somos. Não seria muita ignorância, minhas filhas, se perguntassem a uma pessoa quem ela é, e não soubesse responder nem dizer quem foi seu pai e sua mãe ou onde nasceu? Pois, se isso seria grande estupidez, incomparavelmente maior é a nossa quando não procuramos saber quem somos e só nos ocupamos destes corpos. 

Sabemos que temos alma apenas porque ouvimos dizer, porque é isso que a fé nos ensina. Mas poucas vezes pensamos nas riquezas que ela pode encerrar, ou em Quem habita dentro dela, ou no seu imenso valor. E assim não fazemos quase nada para conservar a sua formosura. Toda a nossa atenção está voltada para o grosseiro engaste onde esse diamante precioso está fixado, e não para o próprio diamante. 

Dizendo de outra maneira, admiramos a beleza da muralha desse castelo (que são os nossos corpos), mas nunca penetramos os seus riquíssimos aposentos. Consideremos agora que esse castelo tem muitas moradas: umas em cima, outras embaixo, outras nos lados. No centro, cercada por todas as demais, está a morada principal, onde se passam as coisas mais secretas entre Deus e a alma. É imprescindível que vocês entendam bem essa comparação. 

Talvez seja vontade de Deus que eu possa por meio dela mostrar-lhes algo das graças que ele faz às almas e das diferenças que há entre essas mercês, até onde eu compreendo. São tantas graças que ninguém poderá conhecer todas, menos ainda quem é tão ruim como eu. Quando o Senhor lhes conceder esses favores, vocês serão tomadas de grande alegria vendo o que ele é capaz de fazer. E quem não os receber louve ainda assim a Sua imensa bondade. Do mesmo modo que não faz mal pensar na glória do céu e na felicidade dos bem-aventurados, mas antes alegramo- nos e procuramos alcançar a mesma sorte, tampouco nos fará mal ver que é possível, ainda neste desterro, comunicar-se tão grande Deus com uns vermes cheios de mau odor e amá-los com bondade e misericórdia infinitas

Quem se escandaliza ao saber que Deus pode conceder tais graças neste desterro está por certo muito carente de humildade e de amor ao próximo. Como não sentir alegria ao ver que o Senhor favorece um irmão? Sua Majestade revela suas grandezas a quem quer. E isso não impede que o faça também a nós. Algumas vezes, será só para mostrá-las, como explicou aos apóstolos quando Lhe perguntaram se o cego a quem curou era cego por causa de seus pecados ou pelos de seus pais. 

Desse modo, acontece de o Senhor conceder graças a uns, não porque sejam mais santos do que outros que não as recebem, mas para que se conheça a Sua grandeza, como vemos em São Paulo e Santa Madalena, e para que o louvemos em suas criaturas.  Alguém poderá dizer que tais coisas parecem ser impossíveis e que é melhor não escandalizar os fracos. 

No entanto, a incredulidade de alguns não é motivo para se deixar de beneficiar àqueles a quem Deus escolheu, pois esses se alegrarão e despertarão para amar mais a Quem distribui tantas misericórdias com imenso poder e majestade. Sei que falo com quem não corre esse perigo, pois vocês sabem e creem que Deus dá provas de amor muito maiores. 

Quem não crê nisso não O verá por experiência própria, pois ele não gosta que imponham limites a suas obras. Queira Deus, irmãs, que aquelas que o Senhor não levar por esse caminho não caiam nesse erro. Voltando então ao nosso belo e agradável castelo, vejamos como entrar nele. Sei que parece tolice falar assim, porque, se o castelo é a alma, está claro que ela não precisa entrar nele, já que os dois são uma só coisa. Seria absurdo pedir a alguém para entrar num aposento onde já está. Mas notem que há vários estados de alma. 

Muitas almas ficam em volta do castelo onde estão os que o guardam. Não querem entrar, porque não podem imaginar quantos tesouros há nesse lugar magnífico, ou Quem está dentro dele, ou como são belos os seus aposentos. Vocês já devem ter encontrado alguns livros de oração que aconselham a alma a entrar em si mesma. Pois então, é isso que devemos fazer. 

Um grande letrado dizia-me há pouco que as almas sem oração são como um corpo paralítico: embora tenha pés e mãos, não pode comandá-los. E são mesmo. Há almas tão doentes e habituadas às coisas exteriores que parecem fadadas a nunca entrar em si mesmas. É tão arraigado o hábito de conviver com os vermes e as feras dos arredores do castelo, que se tornaram quase como eles. Embora sejam de natureza tão rica que poderiam manter conversação com o próprio Deus, não têm remédio

Se não procuram compreender e remediar sua grande miséria, entrando em si mesmas, transformam-se em estátuas de sal, como a mulher de Ló, que estacou olhando para trás, em vez de seguir em frente. Até onde sei, a porta de entrada desse castelo é a oração e a reflexão. Tanto faz que seja oração mental ou vocal. O que realmente importa para ser oração é que haja reflexão. Se não se atenta com Quem se fala, o que se pede, quem pede e a Quem pede, não chamo a isso oração, ainda que os lábios se movam muito. Se for, eventualmente, será porque se teve esses cuidados antes. 

E se alguém tem o costume de se dirigir à Majestade de Deus como a um criado, sem ao menos reparar no que diz, mas se repete maquinalmente o que decorou depois de recitá-lo muitas vezes, saiba que também não o considero oração. Queira Deus que nenhum cristão reze assim. Espero em Sua Majestade que isso não aconteça entre nós, irmãs. O zelo com que vocês tratam as coisas interiores é muito bom para prevenir semelhante grosseria

Não me dirijo a essas almas entrevadas, como o homem enfermo que passou trinta anos junto à piscina de Betesda. Se o Senhor não manda que se levantem, são muito desventuradas, pois correm grande perigo. Falo às que enfim entram no castelo. Essas têm boa vontade, apesar de estarem ainda muito ligadas ao mundo. Às vezes, encomendam-se a Nosso Senhor e meditam sobre quem são, mesmo que brevemente. Rezam uma vez por mês, com o pensamento perdido em mil negócios. 

Estando muito apegadas a eles, o seu coração volta-se para onde está o seu tesouro, como se diz. De tempos em tempos, propõem-se desapegar-se do mundo. E já é grande progresso essa disposição de olhar para si mesmas e reconhecer que não estão bem encaminhadas para encontrar a porta do castelo. Por fim, entram nas primeiras salas de baixo. Mas trazem consigo muitos vermes que não lhes deixam sossegar nem ver a beleza do lugar

De qualquer maneira, fazem muito em entrar. Pode parecer, filhas, que eu esteja divagando, já que, por bondade do Senhor, vocês não são dessas. Tenham paciência, porque de outro modo não saberia explicar o que aprendi sobre algumas coisas interiores de oração. Queira Deus que eu acerte em dizer algo, pois é assunto extremamente difícil de entender quando não se tem experiência. Os que a têm sabem que o máximo que se consegue fazer é tocar superficialmente os mistérios do Senhor, se ele não nos toca por sua misericórdia

Mostra como é feia a alma em pecado mortal e como Deus quis revelar algo disso a certa pessoa. Trata da necessidade de a alma se conhecer a si mesma. Explica como estas moradas devem ser entendidas. ANTES DE PASSAR ADIANTE, quero lhes mostrar que é feito desse castelo tão resplandecente e formoso, dessa pérola oriental, dessa árvore da vida plantada nas águas vivas da vida que é Deus, quando cai em pecado mortal. 

Não há trevas mais medonhas, nada tão escuro e negro. Basta ver que até o Sol, que lhe dava tanto brilho e formosura, obscurece-se como se já não estivesse no centro da alma, muito embora ela seja ainda perfeitamente capaz de gozar de Sua Majestade, tanto como o cristal é capaz de refletir o sol. Contudo, nenhum auxílio divino alcança a alma em pecado mortal. 

Todas as boas obras que faz nesse estado não produzem nenhum fruto para alcançar glória, porque não procedem de Deus, isto é, daquele princípio que faz a nossa virtude ser virtude. E, separados d’Ele, nada do que fazemos pode ser agradável a seus olhos, mesmo porque a intenção de quem pratica um pecado mortal não é contentar a Deus, mas dar prazer ao demônio, que é trevas. E assim, servindo-o, a pobre alma também se faz trevas [...]".



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