24 de setembro de 2021

Antiga homilia do Papa Francisco sobre “O permanecer recíproco entre a videira e os ramos” (2020)

Resgato esta antiga homilia porque amo a aparente simplicidade de Francisco e porque ser católica(o) vai muito além do que é exterior. A imagem da figueira e a da videira florida são curiosas porque além de serem espécies diferentes, ambas possuem particularidades de seu desenvolvimento que compartilham o ato de "entranhar-se" com o meio, para "o bem e para o mal". 

A figueira é a primeira planta descrita na Bíblia - "Então, os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram fo­lhas de figueira, ligaram-nas e fizeram tangas para si" (Gen 3, 7) - e para existir, precisa de um ato de sacrifício de um tipo específico de vespa. Cresce firme e forte, mas apenas uma família produz frutos comestíveis e representa, de certa forma, nosso permanecer no mundo "desligados" de Deus.

Já a videira para frutificar, precisa aguentar o rigor invernal para rebrotar os sarmentos a partir dos nutrientes estocados no ano anterior. Seu passado guiará o seu presente e uma vez gasta a energia acumulada para o rebrotamento, deve extrair do solo os nutrientes necessários para continuar o seu desenvolvimento, de forma que o agricultor é quem guia a sua existência. 

A brotação dos ramos não é uniforme, assim como a distribuição de nutrientes, o que implica nas diferentes fases de amadurecimento dos cachos para a colheita. Alguns cachos possuem desenvolvimento acelerado, outros demoram por mais tempo e ainda existem os tardios; mas todos são cachos bons da mesma videira. O agricultor cuida da videira que cuida de seus ramos para que estes frutifiquem.

"Acaso, meus irmãos, pode a figueira dar azeitonas ou a videira dar figos? Do mesmo modo a fonte de água salobra não pode dar água doce" (Tg 3, 12). Já experimentou água salobra? É aquela que poderia ser doce, mas por motivos diversos houve uma intrusão salina excessiva que a fez deixar de ser potável... Também ser sal no mundo difere de ser insossa(o) ou salgada(o) em demasia. 

Isto tudo te lembra de algo em sua caminha da espiritual? Boa leitura!

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O Senhor volta para “permanecer nele”, e diz-nos: “A vida cristã é permanecer em mim”. Permanecer. E aqui usa a imagem da videira, como os ramos permanecem na videira (cf. Jo 15, 1-8). E este permanecer não é passivo, um adormecer no Senhor: seria talvez um “sono beatífico”; mas não é assim. Este permanecer é ativo e também recíproco. Porquê? Porque Ele diz: «Permanecei em mim e Eu em vós» (v. 4). 

Ele também permanece em nós, não só nós nele. Trata-se de um permanecer recíproco. E noutro trecho diz: «Eu e o Pai viremos a ele e habitaremos nele» (Jo 14, 23). É um mistério, mas um mistério de vida, um mistério muito bonito. Este permanecer recíproco. E também com o exemplo dos ramos: é verdade, sem a videira os ramos nada podem fazer, pois não recebem a seiva, e precisam da seiva para crescer e dar fruto. Mas também a árvore, a videira, precisa dos ramos, porque os frutos não estão ligados à árvore, à videira. É uma necessidade recíproca, é um permanecer mútuo para dar fruto.

E esta é a vida cristã: é verdade, a vida cristã consiste em cumprir os mandamentos (cf. Êx 20, 1-11), é isto que se deve fazer. A vida cristã consiste em percorrer o caminho das bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-13): é assim que se deve fazer. A vida cristã consiste em  fazer obras de misericórdia, como o Senhor nos ensina no Evangelho (cf. Mt 25, 35-36): é assim que se deve fazer. Mas ainda mais: é este permanecer recíproco. 

Sem Jesus nada podemos fazer, como os ramos sem a videira. E Ele - que o Senhor me permita dizê-lo - sem nós parece que nada pode fazer, pois o fruto é dado pelo ramo, não pela árvore, pela videira. Nesta comunidade, nesta intimidade de “permanecer” que é fecunda, o Pai e Jesus permanecem em mim e eu neles.

E qual é – vem-me à mente - a “necessidade” que a videira tem dos ramos? É dar frutos. Qual é a “necessidade” - digamos assim, com um pouco de audácia - qual é a “necessidade” que Jesus tem de nós? O testemunho. Quando no Evangelho diz que somos luz, afirma: «Sede luz, para que os homens “vejam as vossas boas obras e deem glória ao vosso Pai” (Mt 5, 16)», ou seja, o testemunho é a necessidade que Jesus tem de nós. Dar testemunho do seu nome, pois a fé, o Evangelho, cresce pelo testemunho.

Este é um modo misterioso: Jesus glorificado no céu, depois de ter passado pela Paixão, precisa do nosso testemunho para fazer crescer, para anunciar, para que a Igreja cresça. E este é o mistério recíproco do “permanecer”. Ele, o Pai e o Espírito permanecem em nós, e nós permanecemos em Jesus.

Far-nos-á bem pensar e refletir sobre isto: permanecer em Jesus; e Jesus permanece em nós. Permanecer em Jesus para ter a seiva, a força, a justificação, a gratuidade, a fecundidade. E Ele permanece em nós para nos dar a força de [dar] fruto (cf. Jo 5, 15), para nos dar a força do testemunho com o qual a Igreja cresce.

E interrogo-me: "Qual é a relação entre Jesus que permanece em mim e eu que permaneço nele?" É uma relação de intimidade, uma relação mística, uma relação sem palavras. “Mas padre, isto é para os místicos!”. Não, isto é para todos nós. Com pequenos pensamentos: “Senhor, sei que Tu estás aqui [em mim]: dá-me força e farei o que Tu me disseres!”. Este diálogo de intimidade com o Senhor. O Senhor está presente, o Senhor está presente em nós, o Pai está presente em nós, o Espírito está presente em nós; permanecem em nós. Mas devo permanecer neles...

Que o Senhor nos ajude a compreender, a sentir esta mística do permanecer, sobre a qual Jesus insiste tanto, tanto, tanto! Muitas vezes nós, quando falamos da videira e dos ramos, detemo-nos na figura, na profissão do agricultor, do Pai: que aquele [o ramo] que dá fruto é cortado, isto é, podado, e aquele que não o dá é cortado e lançado  fora (cf. Jo 15, 1-2). 

É verdade, faz isto, mas não é tudo, não. Há algo mais. 

Esta é a ajuda: as provações, as dificuldades da vida, até as correções que o Senhor nos faz. Mas não paremos aqui. Entre a videira e os ramos existe este permanecer íntimo. Os ramos, nós, precisamos da seiva, a videira tem necessidade dos frutos, do testemunho.


Papa Francisco

7 de setembro de 2021

Mensagem assinada em conjunto pelo Papa Francisco, o Patriarca Ecumênico Bartolomeu I e o Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, para a Proteção da Criação

 Tradução: Renata P. Espíndola


Por mais de um ano, todos nós experimentamos os efeitos devastadores de uma pandemia global - todos nós, ricos ou pobres, fracos ou fortes. Alguns eram mais protegidos ou mais vulneráveis ​​do que outros, mas a rápida disseminação da infecção nos tornou dependentes uns dos outros em nossos esforços para permanecer seguros.

Percebemos que, em face desta calamidade global, ninguém está seguro até que todos estejam seguros, que nossas ações realmente afetam os outros e que o que fazemos hoje afeta o que acontece amanhã.

Essas não são lições novas, mas tivemos que enfrentá-las novamente. Espero que não percamos este momento. Devemos decidir que tipo de mundo queremos deixar para as gerações futuras. Deus ordena: "Escolhe a vida, para que tu e a tua descendência vivam" (Dt 30, 19). Devemos escolher viver de maneira diferente; devemos escolher a vida.

Muitos cristãos celebram setembro como a época da criação, uma oportunidade de orar e cuidar da criação de Deus. Enquanto os líderes mundiais se preparam para se reunir em Glasgow em novembro para deliberar sobre o futuro de nosso planeta, oramos por eles e consideramos as decisões que todos devemos tomar. 

Consequentemente, como líderes de nossas Igrejas, apelamos a todos, seja qual for sua crença ou cosmovisão, a se esforçarem para ouvir o clamor da terra e das pessoas que são pobres, examinando seu comportamento e se comprometendo a fazer sacrifícios significativos pelo bem da terra que Deus nos deu.


A importância da sustentabilidade


Em nossa tradição cristã comum, as escrituras e os santos fornecem perspectivas iluminadoras para a compreensão tanto das realidades do presente quanto da promessa de algo maior do que o que vemos agora. O conceito de mordomia - responsabilidade individual e coletiva pelo dom que Deus nos deu - representa um ponto de partida vital para a sustentabilidade social, econômica e ambiental

No Novo Testamento, lemos sobre o homem rico e tolo que armazena grandes riquezas de trigo enquanto se esquece de sua finitude (Lc 12: 13-21). Também conhecemos o filho pródigo que exige a sua herança com antecedência, só para esbanjá-la e acabar com fome (Lc 15,11-32). 

Somos avisados ​​de que não devemos adotar soluções de curto prazo e aparentemente baratas para construir na areia, em vez de construir na rocha, para que nossa casa comum resista às tormentas (Mt 7,24-27). Essas histórias nos convidam a uma perspectiva mais ampla e a reconhecer nosso lugar na história universal da humanidade.

Mas temos tomado a direção oposta. Maximizamos nosso interesse próprio às custas das gerações futuras. Ao nos concentrarmos em nossa riqueza, descobrimos que os ativos de longo prazo, incluindo a riqueza da natureza, são esgotados para benefícios de curto prazo. 

A tecnologia abriu novas possibilidades de progresso, mas também de acumulação desenfreada de riqueza, e muitos de nós nos comportamos de uma maneira que demonstra pouca preocupação com as outras pessoas ou com os limites do planeta

A natureza é resistente, mas também delicada. Já estamos vendo as consequências de nossa recusa em protegê-la e preservá-la (Gn 2,15). Agora, neste momento, temos a oportunidade de nos arrepender, de dar uma volta decisiva, de ir na direção oposta. Devemos perseguir a generosidade e a justiça na maneira como vivemos, trabalhamos e usamos o dinheiro, ao invés de uma ganância egoísta.


O impacto nas pessoas que vivem na pobreza


A atual crise climática diz muito sobre quem somos e como vemos e tratamos a criação de Deus. Estamos diante de uma justiça implacável: a perda da biodiversidade, a degradação ambiental e as mudanças climáticas são as consequências inevitáveis ​​de nossas ações, pois temos avidamente consumido mais recursos da Terra do que o planeta pode suportar

Mas também enfrentamos uma profunda injustiça: as pessoas que sofrem as consequências mais catastróficas desses abusos são as mais pobres do planeta e as que menos têm a responsabilidade de causá-los

Servimos a um Deus de justiça, que se deleita na criação e cria cada pessoa à imagem e semelhança de Deus, mas que também ouve o clamor dos pobres. Conseqüentemente, há um chamado inato dentro de nós para responder com angústia quando vemos uma injustiça tão devastadora.

Hoje estamos pagando o preço. O clima extremo e os desastres naturais dos últimos meses nos revelam mais uma vez com grande força e com grande custo humano que as mudanças climáticas não são apenas um desafio futuro, mas uma questão imediata e urgente de sobrevivência. Inundações, incêndios e secas generalizadas ameaçam continentes inteiros. O nível do mar sobe, forçando muitas comunidades a se mudarem; ciclones devastam regiões inteiras, arruinando vidas e meios de subsistência. 

A água tornou-se escassa e o abastecimento de alimentos inseguro, causando conflito e deslocamento de milhões de pessoas. Já vimos isso em lugares onde as pessoas dependem de fazendas de pequena escala. 

Hoje vemos isso nos países mais industrializados, onde nem mesmo infra-estruturas sofisticadas podem impedir completamente uma destruição extraordinária.

Amanhã pode ser pior. As crianças e os adolescentes de hoje enfrentarão consequências catastróficas se não assumirmos agora a responsabilidade, como "colaboradores de Deus" (Gn 2,4-7), de sustentar o nosso mundo. Freqüentemente ouvimos de jovens que entendem que seu futuro está ameaçado. 

Por isso, devemos escolher comer, viajar, gastar, investir e viver de maneira diferente, pensando não apenas nos juros e ganhos imediatos, mas também nos benefícios futuros. Nos arrependemos dos pecados de nossa geração. Estamos ao lado de nossos irmãos e irmãs mais novos ao redor do mundo em oração comprometida e ação determinada por um futuro que cada vez mais corresponde às promessas de Deus.




O imperativo da cooperação


Ao longo da pandemia, aprendemos o quão vulneráveis ​​somos. Nossos sistemas sociais estão desgastados e descobrimos que não podemos controlar tudo. Devemos reconhecer que a maneira como usamos o dinheiro e organizamos nossas sociedades não beneficiou a todos. Nos descobrimos fracos e ansiosos, imersos em uma série de crises: sanitária, ambiental, alimentar, econômica e social, todas profundamente interligadas.

Essas crises nos apresentam uma escolha. Estamos em uma posição única para confrontá-los com miopia e especulação ou para aproveitá-los como uma oportunidade de conversão e transformação. Se pensarmos na humanidade como uma família e trabalharmos juntos por um futuro baseado no bem comum, podemos nos encontrar vivendo em um mundo muito diferente. Juntos, podemos compartilhar uma visão de vida na qual todos prosperam. Juntos podemos escolher agir com amor, justiça e misericórdia. Juntos, podemos caminhar em direção a uma sociedade mais justa e gratificante, com os mais vulneráveis ​​no centro.

Mas isso envolve fazer mudanças. Cada um de nós, individualmente, deve assumir a responsabilidade pela maneira como usamos nossos recursos. Este caminho requer uma colaboração cada vez mais estreita entre todas as igrejas em seu compromisso com o cuidado da criação. Juntos, como comunidades, igrejas, cidades e nações, devemos mudar o curso e descobrir novas formas de trabalhar juntos para quebrar as barreiras tradicionais entre os povos, parar de competir por recursos e começar a colaborar.

Para aqueles com responsabilidades de longo alcance - administrar administrações, administrar empresas, empregar pessoas ou investir fundos - dizemos: escolha benefícios centrados nas pessoas; fazer sacrifícios de curto prazo para salvaguardar todos os nossos futuros; tornar-se líderes na transição para economias justas e sustentáveis. “Aos que muito foi dado, muito será exigido” (Lc 12,48).

Esta é a primeira vez que nós três nos sentimos compelidos a abordar juntos a urgência da sustentabilidade ambiental, seu impacto na pobreza persistente e a importância da cooperação global. Juntos, em nome de nossas comunidades, apelamos ao coração e à mente de cada cristão, cada crente e cada pessoa de boa vontade. Oramos por nossos líderes que se encontrarão em Glasgow para decidir o futuro de nosso planeta e seu povo. Mais uma vez, recordamos a Escritura: "Escolhe a vida, para que tu e a tua descendência vivam" (Dt 30,19). Escolher a vida significa fazer sacrifícios e exercer moderação.

Todos nós, quem somos e onde quer que estejamos, podemos desempenhar um papel na mudança de nossa resposta coletiva à ameaça sem precedentes da mudança climática e da degradação ambiental.

Cuidar da criação de Deus é um mandato espiritual que requer uma resposta comprometedora. Este é um momento crítico. O futuro de nossos filhos e de nossa casa comum depende disso.


1 de setembro de 2021
Patriarca Bartolomeu I   -   Papa Francisco   -    Arcebispo de Cantebury Justin Welby