6 de novembro de 2021

O blog ficará inativo até o final de fevereiro/2022.


Com diversas atividades acadêmicas a cumprir na reta final, 
resolvi inativar o blog até depois do Carnaval. 

Boas Festas a todos e que a pandemia termine!

5 de novembro de 2021

Homilia do Papa Francisco sobre o Sagrado Coração de Jesus e Sua presença em nossas vidas - 05.11.2021

 Traduzido por Renata P. Espíndola.


Contemplando o Coração de Jesus, podemos deixar-nos guiar por três palavras: memória, paixão e consolação. Lembrança... Lembrar [em italiano, ricordare], significa “voltar ao coração, voltar com o coração”. Ri-cordare. A que o Sagrado Coração de Jesus nos faz voltar? Ao que Ele fez por nós: o Coração de Cristo mostra-nos Jesus que se oferece, é o compêndio da sua misericórdia.

Olhando para ele - como fez João no Evangelho (19, 31-37), nos vem naturalmente lembrar sua bondade, que é dada de graça, que não pode ser comprada nem vendida; e incondicional, não depende de nossas ações, é soberana. E está se movendo. Na pressa de hoje, em meio a mil recados e preocupações contínuas, estamos perdendo a capacidade de nos emocionar e de sentir compaixão, porque estamos perdendo esse retorno ao coração, ou seja, essa memória, esse retorno ao coração.

Sem memória, perde-se as raízes e, sem raízes, não se cresce. É bom para nós alimentar a memória de quem nos amou, cuidou de nós e nos elevou. Desejo renovar hoje o meu “obrigado” pelo carinho e pelo carinho que aqui recebi. Acredito que neste tempo de pandemia é bom lembrarmos até dos momentos que mais sofremos: não para nos entristecer, mas para não esquecer e para nos guiar nas nossas escolhas à luz do um passado muito recente.

Eu me pergunto: como funciona nossa memória? Para simplificar, poderíamos dizer que nos lembramos de alguém ou de alguma coisa quando toca nosso coração, quando nos vincula a um determinado afeto ou falta de afeto. E assim o Coração de Jesus cura a nossa memória porque a traz de volta ao afeto fundamental. Ele enraíza na base mais sólida. Isso nos lembra que, aconteça o que acontecer conosco na vida, somos amados. 

Sim, somos seres amados, filhos a quem o Pai ama sempre e, em todo o caso, irmãos e irmãs por quem bate o Coração de Cristo. Cada vez que perscrutamos aquele Coração, descobrimo-nos “enraizados e alicerçados no amor”, como disse o apóstolo Paulo na primeira leitura de hoje (Ef 3, 17).

Cultivemos esta memória, que se fortalece quando estamos face a face com o Senhor, especialmente quando nos deixamos ser olhados e amados por Ele em adoração. Mas também podemos cultivar entre nós a arte de lembrar, de valorizar os rostos que encontramos. Penso nos dias cansativos no hospital, na universidade, no trabalho. Corremos o risco de que tudo passe sem deixar rasto, ou de que permaneçam apenas o cansaço e o cansaço. É bom para nós, à noite, rever os rostos que encontramos, os sorrisos que recebemos, as boas palavras.

São memórias de amor e ajudam a nossa memória a se reencontrar: que nossa memória se reencontre. Quão importantes são essas memórias nos hospitais! Eles podem dar sentido ao dia de uma pessoa doente. Uma palavra fraterna, um sorriso, uma carícia no rosto: são memórias que curam por dentro, fazem bem ao coração. Não esqueçamos a terapia da lembrança: ela faz muito bem!

Paixão é a segunda palavra. Paixão. O primeiro é memória, lembrança; o segundo é paixão. O Coração de Cristo não é uma devoção piedosa, para sentir um pouco de calor por dentro; não é uma imagem terna que desperta afeto, não, não é isso. É um coração apaixonado - basta ler o Evangelho -, um coração ferido de amor, aberto por nós na cruz. Ouvimos como o Evangelho fala disso: “Um dos soldados lhe furou o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19, 34). Perfurado, Ele dá; na morte, Ele nos dá vida.

O Sagrado Coração é o ícone da Paixão: mostra-nos a ternura visceral de Deus, a sua paixão amorosa por nós e, ao mesmo tempo, encimado pela cruz e rodeado de espinhos, mostra-nos quanto sofrimento custou a nossa salvação. Em sua ternura e dor, esse Coração revela, em suma, o que é a paixão de Deus. O que é? Cara, nós. E qual é o estilo de Deus? Proximidade, compaixão e ternura. Este é o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura.

O que isso sugere? Que, se realmente queremos amar a Deus, devemos ser apaixonados pela humanidade, por toda a humanidade, especialmente por aqueles que vivem a condição em que o Coração de Jesus se manifestou, ou seja, dor, abandono e rejeição; especialmente nesta cultura descartável em que vivemos hoje. Quando servimos os que sofrem, consolamos e nos regozijamos no Coração de Cristo.

Uma passagem do Evangelho é impressionante. João Evangelista, no momento em que narra o lado traspassado, de onde jorra sangue e água, dá testemunho para que acreditemos (cf. v. 35). São João escreve, ou seja, que naquele momento ocorre o testemunho. Porque o Coração perfurado de Deus é eloqüente. Fala sem palavras, porque é a misericórdia em estado puro, o amor que fere e dá vida. É Deus, com proximidade, compaixão e ternura.

Quantas palavras falamos sobre Deus sem mostrar amor! Mas o amor fala por si, não fala por si. Vamos pedir pela graça de nos apaixonarmos pelo homem que sofre, de nos apaixonarmos pelo serviço, para que a Igreja, antes de ter palavras a dizer, mantenha um coração que bate de amor. Antes de falar, que ela aprenda a salvaguardar o seu coração no amor.

A terceira palavra é conforto. A primeira foi a lembrança, a segunda paixão, a terceira é o consolo. Indica uma força que não vem de nós, mas de quem está conosco: daí vem a força. Jesus, o Deus conosco, nos dá essa força, seu Coração nos dá coragem na adversidade. Muitas incertezas nos assustam: nesta época de pandemia, descobrimos que somos menores, mais frágeis. Apesar de tantos avanços maravilhosos, isso também é evidente na área médica: tantas doenças raras e desconhecidas!

Quando encontro pessoas na plateia - especialmente crianças - e pergunto: “Você está doente?” - [respondem] “Uma doença rara”. Existem muitos deles hoje! Como é difícil acompanhar as patologias, os centros de tratamento, os cuidados de saúde que realmente deveriam ser, para todos. Podemos ficar desanimados. É por isso que precisamos de consolo - a terceira palavra.

O Coração de Jesus bate por nós, repetindo sempre aquelas palavras: “Coragem, coragem, não tenhas medo, estou aqui!”. Coragem, irmã, coragem, irmão, não desanimes, o Senhor teu Deus é maior que as tuas mazelas, Ele te pega pela mão e te acaricia, está perto de ti, é compassivo, é terno. Ele é o seu conforto.

Se olharmos a realidade desde a grandeza do seu Coração, muda a perspectiva, muda o nosso conhecimento da vida porque, como nos lembrava São Paulo, conhecemos “o amor de Cristo que ultrapassa o conhecimento” (Ef 3,19). Vamos nos encorajar com essa certeza, com o conforto de Deus. E peçamos ao Sagrado Coração a graça de poder consolar por sua vez. É uma graça que deve ser pedida, pois corajosamente nos comprometemos a nos abrir, ajudar uns aos outros, carregar os fardos uns dos outros. Também se aplica ao futuro da saúde, especialmente da saúde “católica”: compartilhar, apoiar-se, caminhar juntos.

Que Jesus abra o coração de quem cuida dos enfermos à colaboração e à coesão. Ao teu Coração, Senhor, confiamos a nossa vocação de cuidar: façamos com que cada pessoa que se aproxima de nós em necessidade se sinta querida.

Amém.
Catholic University of the Sacred Heart
05 de novembro de 2021
Papa Francisco 

Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/en/homilies/2021/documents/20211105-omelia-univ-cattolica.html

4 de novembro de 2021

Mensagem do Papa Francisco para a reunião de abertura do Encontro Global para a eliminação do Trabalho Infantil na Agricultura [a/c. Cardeal Pietro Parolin]

Já parou para pensar no quanto você consome de produtos e serviços que são frutos de trabalho escravo? No quão profundas são as interconexões que sequer suspeitamos e ainda assim, no quanto isto nos será cobrado pela omissão ou anuência?

* * *

Traduzido por Renata P. Espíndola


Sede da FAO, 02 de novembro de 2021.

Para Sua Excelência Qu Dongyu
Diretor Geral da FAO


Excelência:

Em nome e em nome do Santo Padre, quero agradecer à FAO por ter promovido, em colaboração com a Organização Internacional do Trabalho - OIT (ILO/IPEC), este encontro global estratégico que focaliza nossa atenção sobre um fenômeno cada vez mais preocupante, dadas as estimativas recentes de organismos internacionais.

Na verdade, ainda mais quando se manifesta como exploração, o trabalho infantil torna-se um flagelo que fere cruelmente a existência digna e o desenvolvimento harmonioso dos mais pequenos, limitando consideravelmente suas oportunidades futuras, pois reduz e fere suas vidas para satisfazer os produtivos e lucrativos. necessidades dos adultos.

As conotações negativas deste drama foram exacerbadas pela pandemia, que tem levado um número crescente de menores a abandonar a escola para cair, infelizmente, nas garras desta forma de escravatura. Para muitos destes nossos irmãozinhos, faltar à escola significa não só perder oportunidades que lhes permitam enfrentar os desafios da vida adulta, mas também adoecer, ou seja, ficar privado do direito à saúde, devido às condições deploráveis em que vive têm de cumprir as tarefas que vilmente lhes são exigidas.

Se pararmos no setor agrícola, a emergência é ainda mais alarmante: milhares de crianças são obrigadas a trabalhar incansavelmente, em condições exaustivas, precárias e degradantes, sofrendo maus-tratos, abusos e discriminação. Mas a situação chega ao ápice da desolação, quando são os próprios pais que são obrigados a mandar seus filhos para o trabalho, porque sem sua contribuição ativa não seriam capazes de sustentar a família.

Senhor Diretor-Geral, que possa surgir um grito poderoso desta reunião que exorta as autoridades internacionais e nacionais competentes a defenderem a serenidade e a felicidade das crianças. O investimento mais lucrativo que a humanidade pode fazer é a proteção da criança! Proteger as crianças é respeitar o tempo do seu crescimento, permitindo que estes frágeis rebentos tenham as condições ideais para a sua abertura e floração

Proteger as crianças implica também tomar medidas incisivas para ajudar as famílias dos pequenos agricultores, para que não sejam obrigados a mandar os filhos ao campo para aumentarem os seus rendimentos, o que, sendo tão baixos, não lhes permite manter os seus rendimentos com dignidade. casas. Por fim, proteger as crianças implica agir de forma que se abram horizontes diante delas, configurando-as como cidadãos livres, honestos e solidários.

Quão importante seria para um sistema legal bem-sucedido e eficaz, tanto internacional quanto nacional, defender e proteger as crianças daquela mentalidade tecnocrática nociva que se instalou no presente. Para isso, é necessário multiplicar as pessoas e as associações que, a todos os níveis, se esforcem para que o desejo de lucro excessivo que condena as crianças e os jovens ao jugo brutal da exploração do trabalho dê lugar à lógica do cuidado

Nesse sentido, é necessário um trabalho de denúncia, educação, conscientização e convicção para que quem não tem escrúpulos de escravizar a infância com fardos insuportáveis veja mais longe e mais fundo, superando o egoísmo e essa ânsia de consumir compulsivamente que acabam devorando o planeta, esquecendo que seus recursos devem ser preservados para as gerações futuras.

Excelência, se almejamos que a nossa sociedade possa gozar daquela dignidade que a enobrece, se queremos que a lei triunfe sobre a arbitrariedade, devemos assegurar aos nossos filhos e jovens um presente sem exploração laboral. E isso só será possível se nos envolvermos conjunta e peremptoriamente com eles, guardando e cultivando seus sonhos, brincando, treinando e aprendendo. Então, um futuro brilhante se abrirá para a família humana. Não tenho dúvidas de que o evento de hoje e o atual Ano Internacional pela Eliminação do Trabalho Infantil contribuirão para isso.

Ao renovar a vontade da Santa Sé e o empenho da Igreja Católica e das suas instituições para que a comunidade internacional não deixe de combater com firmeza, conjunta e decisivamente o flagelo da exploração laboral de menores, invoco-o, Senhor Diretor-Geral, e para todos os que se esforçam para libertar crianças e jovens de todas as adversidades, a bênção do Deus Todo-Poderoso.

Vaticano, 02 de novembro de 2021

Pietro Card. Parolin
Secretário de Estado

3 de novembro de 2021

Mensagem do Santo Padre por ocasião da 26ª sessão da Conferência dos Estados Parte da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima

 
Traduzido por Renata P. Espíndola
 
 
Para Sua Excelência
O Honorável Alok Sharma
Presidente da COP26, a 26ª Sessão da Conferência das Partes
à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima
[Glasgow, 31 de outubro - 12 de novembro de 2021]


Vossa Excelência,

No início da Conferência de Glasgow, todos nós estamos cientes de que ela tem a tarefa vital de demonstrar a toda a comunidade internacional se realmente existe uma vontade política de dedicar - com honestidade, responsabilidade e coragem - maiores recursos humanos, financeiros e tecnológicos para mitigar os efeitos negativos das mudanças climáticas e a assistência às nações mais pobres e vulneráveis ​​mais afetadas por elas.[1]

Ao mesmo tempo, percebemos que essa tarefa deve ser realizada em meio a uma pandemia que há quase dois anos devastou nossa família humana. A Covid-19 trouxe imensas tragédias em seu rastro, mas também nos ensinou que, se quisermos vencer a pandemia, não há alternativa: todos nós devemos participar na resposta a esse desafio. E isso, como sabemos, exige uma profunda solidariedade e uma cooperação fraterna entre os povos do mundo.

Nosso mundo pós-pandêmico será necessariamente diferente do que era antes da pandemia. É esse mundo que devemos construir agora, juntos, a partir do reconhecimento dos erros do passado.

Algo semelhante poderia ser dito sobre nossos esforços para enfrentar o problema global da mudança climática. Não há alternativa. Só podemos atingir as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris se agirmos de forma coordenada e responsável. Essas metas são ambiciosas e não podem mais ser adiadas. Hoje cabe a você tomar as decisões necessárias.

A COP26 pode e deve oferecer uma contribuição efetiva para a construção consciente de um futuro em que as ações cotidianas e os investimentos econômicos e financeiros possam genuinamente resguardar as condições que garantam uma vida digna e humana aos homens e mulheres, de hoje e de amanhã, num planeta saudável.

Encontramo-nos perante uma mudança histórica, um desafio cultural que exige o empenho de todos, em particular dos países que dispõem de maiores meios. Esses países precisam assumir um papel de liderança nas áreas de financiamento do clima, descarbonização do sistema econômico e da vida das pessoas, promoção de uma economia circular, apoio aos países mais vulneráveis ​​que trabalham para se adaptar ao impacto das mudanças climáticas e para responder. às perdas e danos que causou.

Por sua vez, a Santa Sé, como afirmei na “Cúpula da Ambição Virtual de Alto Nível sobre o Clima” de 12 de dezembro de 2020, adotou uma estratégia de emissões líquidas zero operando em dois níveis:

1) o compromisso do Estado da Cidade do Vaticano para atingir este objetivo de 2050; e,

2) o compromisso da Santa Sé em promover a educação em ecologia integral.

Temos plena consciência de que as medidas políticas, técnicas e operacionais precisam estar vinculadas a um processo educativo que, principalmente entre os jovens, possa promover novos estilos de vida e favorecer um modelo cultural de desenvolvimento e de sustentabilidade centrado na fraternidade e na aliança entre os homens e o ambiente natural. Esses compromissos deram origem a milhares de iniciativas em todo o mundo.

Na mesma linha, em 04 de outubro passado, me juntei a vários líderes religiosos e cientistas na assinatura de um “Apelo Conjunto em vista da COP26”. Na ocasião, ouvimos as vozes de representantes de muitas religiões e tradições espirituais, de muitas culturas e campos científicos. Vozes muito diferentes, com sensibilidades muito diferentes.

No entanto, o que claramente emergiu foi uma convergência notável sobre a necessidade urgente de uma mudança de direção, uma resolução decisiva de passar da "cultura do descarte" prevalente em nossas sociedades para uma "cultura de cuidado" para nossa casa comum e seus habitantes, agora e no futuro.

As feridas infligidas à nossa família humana pela pandemia Covid-19 e o fenômeno da mudança climática são comparáveis ​​àquelas resultantes de um conflito global. Hoje, como no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional como um todo precisa priorizar a implementação de ações colegiadas, solidárias e prospectivas.

Precisamos de esperança e coragem. A humanidade possui os meios para realizar esta mudança, que exige uma conversão genuína, tanto individual como comunitária, e uma vontade decidida de empreender este caminho. Isso implicará a transição para um modelo de desenvolvimento mais integral e integrador, baseado na solidariedade e na responsabilidade. Uma transição que também deve levar em consideração os efeitos que terá no mundo do trabalho.

Da mesma forma, deve-se ter um cuidado especial com os povos mais vulneráveis, para os quais existe uma crescente “dívida ecológica” relacionada aos desequilíbrios comerciais com repercussões ambientais e ao uso desproporcional dos recursos naturais próprios e de outros países.[2] Não há como negar isso.

A “dívida ecológica” levanta, de certa forma, a questão da dívida externa, cujo ônus muitas vezes impede o desenvolvimento dos povos.[3] O mundo pós-pandêmico pode e deve recomeçar a partir da consideração de todos esses aspectos, juntamente com a instauração de procedimentos cuidadosamente negociados para o perdão da dívida externa, vinculados a uma reestruturação econômica mais sustentável e justa visando atender à emergência climática.

Os países desenvolvidos devem ajudar a pagar a dívida ecológica, limitando significativamente seu consumo de energia não renovável e ajudando os países mais pobres a apoiar políticas e programas de desenvolvimento sustentável”.[4] Um desenvolvimento do qual, enfim, todos podem participar.

Infelizmente, devemos reconhecer o quanto ainda estamos longe de atingir as metas estabelecidas para combater as mudanças climáticas. Precisamos ser honestos: isso não pode continuar! Mesmo enquanto nos preparávamos para a COP26, ficava cada vez mais claro que não há tempo a perder. Muitos de nossos irmãos e irmãs estão sofrendo com esta crise climática. A vida de inúmeras pessoas, principalmente das mais vulneráveis, experimentou seus efeitos cada vez mais frequentes e devastadores.

Ao mesmo tempo, percebemos que isso também envolve uma crise dos direitos das crianças e que, em um futuro próximo, os migrantes ambientais serão mais numerosos do que os refugiados da guerra e dos conflitos. Agora é a hora de agir com urgência, coragem e responsabilidade. Não menos importante, para preparar um futuro em que nossa família humana esteja em condições de cuidar de si mesma e do meio ambiente.

Os jovens, que nos últimos anos nos instaram fortemente a agir, só herdarão o planeta que decidirmos deixar para eles, com base nas escolhas concretas que fazemos hoje. Chegou o momento de decisões que lhes possam dar motivos de esperança e confiança no futuro.

Eu esperava estar com você pessoalmente, mas não foi possível. Eu o acompanho, no entanto, com minhas orações enquanto você toma essas decisões importantes.

Queira aceitar, Senhor Presidente, as minhas cordiais saudações e bons votos.

Vaticano, 29 de outubro de 2021.
Papa Francisco

[2] Carta Encíclica Laudato Si'', 51.
[3] Carta Encíclica Fratelli Tutti, 126.
[4] Carta Encíclica Laudato Si' , 52.


21 de outubro de 2021

“O planeta que esperamos. Ambiente, trabalho, futuro. Tudo está conectado" – Papa Francisco aos participantes da 49ª. Semana Social dos católicos italianos

 Traduzido por Renata P. Espíndola


Queridos irmãos e irmãs:
 
Saúdo cordialmente todos os que participam da 49ª Semana Social dos Católicos Italianos, convocada em Taranto. Saúdo fraternalmente o Cardeal Gualtiero Bassetti, Presidente da Conferência Episcopal Italiana, D. Filippo Santoro e os Bispos presentes, os membros da Comissão Científica e Organizadora, os Delegados das dioceses italianas, os representantes dos movimentos e associações, todos os convidados e quem acompanha o evento à distância.

Esta citação tem um sabor especial. É preciso encontrar e ver o rosto um do outro, sorrir e planejar, orar e sonhar juntos. Isso é ainda mais necessário no contexto da crise gerada pela Covid, uma crise tanto sanitária quanto social. Para sair desta crise, os católicos italianos também devem ser mais corajosos. Não podemos nos resignar e ficar olhando pela janela, não podemos ficar indiferentes ou apáticos sem assumir responsabilidade pelos outros e pela sociedade. Somos chamados a ser o fermento que fermenta a massa (cf. Mt 13,33).

A pandemia expôs a ilusão de nosso tempo de nos acreditarmos onipotentes, pisoteando os territórios que habitamos e o meio ambiente em que vivemos. Para nos recuperar, devemos nos voltar para Deus e aprender a fazer bom uso de Seus dons, antes de tudo a Criação.

Que não falte o valor da conversão ecológica, mas sobretudo, que não falte o ardor da conversão da comunidade. Por isso, espero que a Semana Social seja uma experiência sinodal, uma plena troca de vocações e talentos que o Espírito suscitou na Itália. Para isso, é preciso ouvir também o sofrimento dos pobres, dos menores, dos desesperados, das famílias cansadas de viver em lugares poluídos, explorados, queimados, devastados pela corrupção e pela degradação.

Precisamos de esperança. É significativo o título escolhido para esta Semana Social de Taranto, uma cidade que simboliza as esperanças e as contradições do nosso tempo: “O planeta que esperamos. Ambiente, trabalho, futuro. Tudo está conectado". Há um desejo de vida, uma sede de justiça, um desejo de realização que brota das comunidades afetadas pela pandemia. Vamos ouvir isso.

Neste sentido, gostaria de lhes oferecer algumas reflexões que podem ajudá-los a trilhar com ousadia o caminho da esperança, que podemos imaginar marcado por três “sinais”.

O primeiro é a atenção aos entroncamentos (cruzamentos). Muitas pessoas cruzam nossas vidas em desespero: jovens que são forçados a deixar seus países de origem para emigrar para outros lugares, desempregados ou explorados numa precariedade sem fim; mulheres que perderam seus empregos em tempos de pandemia ou que são forçadas a escolher entre a maternidade e a profissão; trabalhadores ficando em casa sem oportunidades; pobres e emigrantes que não são acolhidos nem integrados; idosos abandonados à solidão; famílias vítimas de usura, jogo e corrupção; empresários em dificuldade e sujeitos a abusos das máfias; comunidades destruídas por incêndios, etc.

Entretanto, há também tantos doentes, adultos e crianças, trabalhadores forçados a realizar trabalhos extenuantes ou imorais, muitas vezes em condições de segurança precárias. São rostos e histórias que nos desafiam: não podemos ficar indiferentes. Esses nossos irmãos e irmãs estão crucificados e aguardam a ressurreição. Que a criatividade do Espírito Santo nos ajude a não deixar nada por fazer, para que as suas legítimas esperanças se tornem reais.

Um segundo sinal indica que estacionar é proibido. Quando vemos dioceses, paróquias, comunidades, associações, movimentos, grupos eclesiais cansados ​​e desanimados, às vezes resignados a situações complexas, vemos um Evangelho que tende a se apagar. Pelo contrário, o amor de Deus nunca é estático nem renunciante, “tudo acredita, tudo espera” (1 Cor 13,7): impele-nos e proíbe-nos de parar.

Ele nos põe em movimento como crentes e discípulos de Jesus no caminho do mundo, seguindo o exemplo d’Aquele que é o caminho (cf. Jo 14,6) e que percorreu os nossos caminhos. Então, não vamos ficar nas sacristias, não vamos formar grupos elitistas que se isolam e se fecham. A esperança está sempre em movimento e também passa pelas comunidades cristãs, filhas da ressurreição, que saem, anunciam, compartilham, apoiam e lutam pela construção do Reino de Deus.

Que maravilha seria se, nas áreas mais marcadas pela poluição e degradação, os cristãos não apenas denunciassem, mas assumissem a responsabilidade de criar redes de resgate. Como escrevi na Encíclica Laudato Si': “Não basta conciliar, em meios termos, o cuidado da natureza com o rendimento financeiro, nem a preservação do meio ambiente com o progresso. Nesse caso, o meio-termo é apenas um pequeno atraso no colapso. Trata-se apenas de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e econômico que não resulte em um mundo melhor e com uma qualidade de vida integralmente superior não pode ser considerado um progresso” (n. 194).

Às vezes, prevalecem o medo e o silêncio, que acabam favorecendo a ação dos lobos dos negócios sujos e do interesse individual. Não tenhamos medo de denunciar e nos opor à ilegalidade, mas, sobretudo, não tenhamos medo de semear o bem.

Um terceiro sinal de trânsito é a obrigação usar a rotatória, de nos reorientarmos. O grito dos pobres e o grito da Terra o invocam. A esperança convida-nos a reconhecer que sempre podemos reorientar o nosso rumo, que sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas (n. 61).

Dom Tonino Bello, profeta na terra da Apúlia, costumava repetir: Não podemos nos limitar à esperança. A esperança deve ser organizada. Uma profunda conversão nos espera, que toca a ecologia humana, a ecologia do coração, antes mesmo da ecologia ambiental. A mudança só virá se soubermos formar as consciências para que não busquem soluções fáceis que protejam os que já estão seguros, mas antes propor processos de mudança duradouros em benefício das novas gerações". 

Uma conversão deste tipo, orientada para uma ecologia social, pode alimentar esta época que se chamou “transição ecológica”, em que as decisões tomadas não podem ser apenas fruto de novas descobertas tecnológicas, mas também de modelos sociais renovados.

A mudança de época pela qual estamos passando exige uma mudança de curso. Olhemos, neste sentido, para tantos sinais de esperança, em tantas pessoas a quem quero agradecer porque, muitas vezes em laborioso silêncio, trabalham para promover um modelo econômico diferente, mais equitativo e atento às pessoas.

Este é, pois, o planeta que esperamos: aquele no qual a cultura do diálogo e da paz fecunda um novo dia, no qual o trabalho confere dignidade à pessoa e salvaguarda à Criação, para a qual convergem mundos culturalmente distantes, animados pela mesma preocupação pelo bem comum.

Queridos irmãos e irmãs, acompanho o vosso trabalho com oração e encorajamento. Abençoo-vos, desejando que encarnem as propostas destes dias com paixão e concretude. Que o Senhor os encha de esperança. E, por favor, não se esqueçam de orar por mim.
 
Roma, São João de Latrão, 4 de outubro de 2021
 Festa de São Francisco de Assis
Papa Francisco


16 de outubro de 2021

Discurso do Arcebispo Dom Gabriele Caccia, Núncio Apostólico e Observador Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, sobre armas nucleares, de destruição em massa e desarmamento

Enquanto católicos brigam entre si se achando mais iluminados que o Papa, mais sábios, mais inseridos na Tradição, o Vaticano trabalha seriamente pelos bens espirituais e físicos dos seres humanos, não apenas de seus filhos e filhas. De certa forma, o discurso me recordou os esforços da Igreja no livro de sci-fi "Um Cântico para Leibowitz" (MILLER JR, 1960), onde finalmente seus esforços foram duplamente em vão... Ora et labora.

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Tradução para o português por Renata P. Espíndola



Sr. Presidente,


Em sua recente Carta Encíclica
Fratelli Tutti, o Papa Francisco tocou em temas que contextualizam a importância do trabalho deste Comitê: “Não nos deixemos”, disse ele, “permanecer atolados em discussões teóricas, mas tocar na carne ferida das vítimas. Vejamos mais uma vez todos os civis cujas mortes foram consideradas "danos colaterais. Perguntemos às próprias vítimas. Pensemos nos refugiados e deslocados, aqueles que sofreram os efeitos da radiação atômica ou de ataques químicos”. [1]

No que diz respeito ao último grupo, relatos recentes sobre o uso de agentes “nervosos [N.T.: Agentes químicos de guerra persistentes e não persistentes] em vários lugares do mundo apontam para a relevância continuada de instrumentos que proíbem seu uso e posse. O Protocolo de Genebra (1925)
, a Convenção de Armas Biológicas e Tóxicas (1975) e a Convenção de Armas Químicas (1993) devem fornecer um escudo completo contra tais armas.

Mais de um século após o uso de armas químicas na Primeira Guerra Mundial, as nações do mundo deveriam se livrar completamente delas e deveriam buscar medidas que fortaleçam a implantação de medidas legais para um cumprimento efetivo a esse respeito. A contínua pandemia de COVID-19 é um lembrete gritante e doloroso do impacto incapacitante que pode ser causado por novos agentes biológicos, mesmo de gênese natural.

Da mesma forma, não devemos perder de vista a ameaça das chamadas “bombas sujas”, mais propriamente armas radiológicas, ou a necessidade de medidas que proíbam o uso de materiais radiológicos como armas.

(...)

Muitos elogiaram a extensão de cinco anos do
Novo Tratado START entre a Federação Russa e os Estados Unidos da América. Minha Delegação espera, além disso, um rápido progresso no diálogo estratégico que já foi convocado duas vezes para considerar novas reduções nas armas nucleares, tanto estratégicas como não estratégicas, e a relevância das novas tecnologias.

Como a
Conferência de Revisão do Tratado de Não-Proliferação adiada com o cinquentenário do Tratado de Não Proliferação (TNP) parece provável que aconteça em janeiro, é importante que os Estados possuidores de armas nucleares P-5 considerem e concordem em tomar medidas que complementem as de a Federação Russa e os Estados Unidos.

É hora de os estoques de armas nucleares serem definitivamente limitados, com reduções adicionais entre os P-5 a serem tomadas abaixo do limite. Obviamente, estabelecer um teto para os estoques nucleares dos outros estados possuidores de energia nuclear também é importante. 

Nosso mundo está tão interconectado que todas as armas nucleares, onde quer que estejam, devem ser eliminadas no menor tempo possível, para que um acidente ou erro de cálculo não leve a consequências humanitárias e ambientais catastróficas. [2]

O Papa Francisco enfatizou que “o uso da energia atômica para fins de guerra é imoral, assim como a posse de armas nucleares é imoral[3], uma vez que a intencionalidade intrínseca de possuir armas nucleares é a ameaça de usá-las.

A esse respeito, o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN, em português) estabeleceu uma proibição legal sobre a posse de armas nucleares e, no devido tempo, será uma base para que os Estados possuidores de armas nucleares se tornem participantes ao eliminarem seus programas. Por enquanto, as atuais partes do Tratado podem trabalhar para desenvolver os procedimentos que serão necessários para que a autoridade ou autoridades de verificação estabelecidas pelo Tratado possam assegurar que os programas de armas nucleares relevantes foram realmente eliminados.

O TPAN reconhece explicitamente que restrições devem ser impostas às armas convencionais, além das armas nucleares. Tendo em mente o papel que a dissuasão nuclear, incluindo a dissuasão nuclear ampliada, tem desempenhado entre os Estados, esforços adicionais substanciais devem ser feitos para lidar com as armas convencionais.

O mundo, de fato, tem feito progressos nesse sentido, como a
Convenção sobre Armas Convencionais, que tem se mostrado um acordo duradouro, com espaço para maior expansão, como evidenciado por seus protocolos como os que tratam de armas de lasers cegantes. Além disso, a crescente ameaça do uso de drones armados e sistemas de armas autônomas letais ressalta a urgência de abordar a necessidade ética de preservar a responsabilidade humana.

[N.T.: A justificativa é a de que é melhor tornar uma pessoa cega em definitivo do que matá-la. O que é mais cruel?]

As armas convencionais causaram danos terríveis em todo o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Este Comitê precisa redobrar seus esforços para fornecer caminhos para acordos que irão reduzir a dependência de quaisquer armas convencionais para resolver disputas. Esses esforços não apenas tornarão o desarmamento nuclear mais viável, mas também moderarão as interações entre os Estados em suas relações em curso.

Determinados como estamos a salvar as gerações vindouras do flagelo da guerra,
[4] não podemos nos permitir ser espectadores da violência e da guerra, de irmãos matando irmãos, como se estivéssemos assistindo a jogos de uma distância segura. As vidas das pessoas não são brinquedos. Não podemos ser espectadores indiferentes. [5]

[N.T.: E os seres humanos se "divertindo" nos "novos coliseus com gladiadores lutando até a morte" em séries distópicas de TV, como se a crueldade real já não fosse suficiente.]

Não podemos, como disse o Papa Francisco “continuar a aceitar as guerras com o desprendimento com que assistimos ao noticiário da noite”. [6]

Em conclusão, a Santa Sé deseja manifestar a sua convicção de que o espaço sideral deve continuar a ser o domínio pacífico que tem sido até agora na história da humanidade. Embora certos usos militares desse ambiente tenham sido implantados, como comunicações, navegação e monitoramento, eles também são essenciais para fins pacíficos.

Tornar este ambiente armado, seja por meio do uso de armas, seja pelo ataque de objetos espaciais do solo, seria extremamente perigoso. As restrições existentes aos usos militares do espaço sideral, conforme consubstanciado no
Tratado do Espaço Exterior, devem ser estendidas.

A experiência de fragmentos orbitais de longa duração resultantes da destruição de satélites mostra como seria tolice colocar objetos espaciais em risco para o uso de armas. Transparência e medidas de fortalecimento da confiança, bem como instrumentos legalmente vinculantes devem ser prontamente negociados, para que o ambiente do espaço sideral permaneça seguro para todos nós.

Obrigado, senhor presidente.

 Nova Iorque, 13 de outubro de 2021.
 Arcebispo Gabriele Caccia

 
[1] Papa Francisco, FratelliTutti, 261.

[2] Cf. Papa Francisco, FratelliTutti, 262; Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, PP2.

[3] Papa Francisco, Encontro pela Paz, Memorial da Paz, Hiroshima, Japão, 24 de novembro de 2019.

[4] Cf. Carta das Nações Unidas.

[5] Cf. Papa Francisco, Discurso no Encontro das Religiões pela Paz, Roma, 7 de outubro de 2021.

[6] Idem.



Fonte da imagem: Pinterest.

12 de outubro de 2021

Discurso do Papa Francisco aos participantes do encontro "Fé e Ciência: Rumo à COP26".

Líderes e Representantes religiosos,

Excelências,
Queridos amigos!

Obrigado a todos por se reunirem aqui, colocando em evidência o desejo dum diálogo profundo entre nós e com os peritos em ciência. Ouso oferecer três conceitos à vossa reflexão sobre esta colaboração: o olhar da interdependência e da partilhao motor do amor a vocação ao respeito.


1. Tudo está interligado; no mundo, tudo está intimamente relacionado. Não só a ciência, mas também as nossas crenças e as nossas tradições espirituais põem em evidência esta conexão que existe entre todos nós e com o resto da criação. Reconhecemos os sinais da harmonia divina presente no mundo natural: nenhuma criatura se basta a si mesma; cada uma só existe na dependência das outras, para se completarem mutuamente, ao serviço uma da outra [1]. Quase poderíamos dizer que uma é dada pelo Criador às outras, para que, na relação de amor e respeito, possam crescer e realizar-se em plenitude. Plantas, águas, seres vivos são guiados por uma lei impressa por Deus em cada um deles para benefício de toda a criação.


Reconhecer que o mundo está interligado significa não só compreender as consequências nefastas das nossas ações, mas também identificar comportamentos e soluções que devem ser adotados com olhar aberto à interdependência e à partilha. Não se pode agir sozinho; é fundamental o empenho de cada um no cuidado dos outros e do ambiente, um empenho que leve à tão urgente mudança de rumo, que deve ser alimentada também pela própria fé e espiritualidade. Para os cristãos, o olhar da interdependência brota do próprio mistério de Deus Trino: «A pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação» [2].


O encontro hodierno, que une muitas culturas e espiritualidades num espírito de fraternidade, reforça a consciência de que somos membros duma única família humana: temos, cada um de nós, a própria fé e tradição espiritual, mas não há fronteiras nem barreiras culturais, políticas ou sociais que consintam isolar-nos. Para iluminar este olhar, queremos empenhar-nos em prol dum futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade.


2. Este empenho deve ser continuamente solicitado pelo motor do amor: «A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro» [3]. Entretanto, a força propulsora do amor não é acionada  duma vez para sempre, mas deve ser reavivada dia a dia; esta é uma das grandes contribuições que as nossas crenças e tradições espirituais podem dar para facilitar esta mudança de rumo de que temos tanta necessidade.


O amor é espelho duma vida espiritual vivida intensamente. Um amor que se estende a todos sem olhar a fronteiras culturais, políticas e sociais; um amor que integra, mesmo e sobretudo em benefício dos últimos, que muitas vezes são quem nos ensina a superar as barreiras do egoísmo e a romper os muros do individualismo.


Trata-se de um desafio que surge perante a necessidade de contrastar aquela cultura do descarte que parece prevalecer na nossa sociedade e se apoia sobre aquilo que o nosso Apelo Conjunto chama as «sementes dos conflitos: ganância, indiferença, ignorância, medo, injustiça, insegurança e violência». São estas mesmas sementes de conflito que provocam as graves feridas que infligimos ao ambiente, como as mudanças climáticas, a desertificação, a poluição, a perda da biodiversidade, levando à rutura daquela «aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho» [4].


Semelhante desafio a favor duma cultura do cuidado da nossa casa comum e também de nós próprios tem o sabor da esperança, pois não há dúvida que a humanidade nunca, como hoje, teve tantos meios para alcançar tal objetivo. Este mesmo desafio pode enfrentar-se em vários níveis; gostaria de assinalar, em particular, dois deles: o nível do exemplo e da ação, e o da educação


Em ambos os níveis, nós, inspirados pelas nossas crenças e tradições espirituais, podemos oferecer contribuições importantes. Muitas são as possibilidades emergentes, como aliás coloca em evidência o Apelo Conjunto, onde se ilustram também vários percursos de educação e formação que podemos desenvolver a favor do cuidado da nossa casa comum.


3. Este cuidado é também uma vocação ao respeito: respeito pela criação, respeito pelo próximo, respeito por si mesmo e respeito perante o Criador. Mas também respeito mútuo entre fé e ciência, para «estabelecerem diálogo entre si visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma trama de respeito e de fraternidade» [5].


Um respeito que não é mero reconhecimento abstrato e passivo do outro, mas deve ser vivido de forma empática e ativa querendo conhecer o outro e dialogar com ele para caminhar juntos nesta viagem comum, bem sabendo – como se indica ainda no Apelo – que «aquilo que podemos obter depende não só das oportunidades e dos recursos, mas também da esperança, da coragem e da boa vontade».


O olhar da interdependência e da partilha, o motor do amor e a vocação ao respeito: eis três chaves de leitura que me parecem iluminar o nosso trabalho pelo cuidado da casa comum. A COP26 de Glasgow é urgentemente chamada a oferecer respostas eficazes à crise ecológica sem precedentes e à crise de valores em que vivemos e, assim, dar uma esperança concreta às gerações futuras: queremos acompanhá-la com o nosso empenho e a nossa proximidade espiritual.



[1] Cf. Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24/V/2015), 86.

[2] Ibid., 240.

[3] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (03/X/2020), 88.

[4] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29/VI/2009), 50.

[5] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24/V/2015), 201.


Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2021/october/documents/20211004-religione-scienza-cop26.html