16 de outubro de 2021

Discurso do Arcebispo Dom Gabriele Caccia, Núncio Apostólico e Observador Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, sobre armas nucleares, de destruição em massa e desarmamento

Enquanto católicos brigam entre si se achando mais iluminados que o Papa, mais sábios, mais inseridos na Tradição, o Vaticano trabalha seriamente pelos bens espirituais e físicos dos seres humanos, não apenas de seus filhos e filhas. De certa forma, o discurso me recordou os esforços da Igreja no livro de sci-fi "Um Cântico para Leibowitz" (MILLER JR, 1960), onde finalmente seus esforços foram duplamente em vão... Ora et labora.

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Tradução para o português por Renata P. Espíndola



Sr. Presidente,


Em sua recente Carta Encíclica
Fratelli Tutti, o Papa Francisco tocou em temas que contextualizam a importância do trabalho deste Comitê: “Não nos deixemos”, disse ele, “permanecer atolados em discussões teóricas, mas tocar na carne ferida das vítimas. Vejamos mais uma vez todos os civis cujas mortes foram consideradas "danos colaterais. Perguntemos às próprias vítimas. Pensemos nos refugiados e deslocados, aqueles que sofreram os efeitos da radiação atômica ou de ataques químicos”. [1]

No que diz respeito ao último grupo, relatos recentes sobre o uso de agentes “nervosos [N.T.: Agentes químicos de guerra persistentes e não persistentes] em vários lugares do mundo apontam para a relevância continuada de instrumentos que proíbem seu uso e posse. O Protocolo de Genebra (1925)
, a Convenção de Armas Biológicas e Tóxicas (1975) e a Convenção de Armas Químicas (1993) devem fornecer um escudo completo contra tais armas.

Mais de um século após o uso de armas químicas na Primeira Guerra Mundial, as nações do mundo deveriam se livrar completamente delas e deveriam buscar medidas que fortaleçam a implantação de medidas legais para um cumprimento efetivo a esse respeito. A contínua pandemia de COVID-19 é um lembrete gritante e doloroso do impacto incapacitante que pode ser causado por novos agentes biológicos, mesmo de gênese natural.

Da mesma forma, não devemos perder de vista a ameaça das chamadas “bombas sujas”, mais propriamente armas radiológicas, ou a necessidade de medidas que proíbam o uso de materiais radiológicos como armas.

(...)

Muitos elogiaram a extensão de cinco anos do
Novo Tratado START entre a Federação Russa e os Estados Unidos da América. Minha Delegação espera, além disso, um rápido progresso no diálogo estratégico que já foi convocado duas vezes para considerar novas reduções nas armas nucleares, tanto estratégicas como não estratégicas, e a relevância das novas tecnologias.

Como a
Conferência de Revisão do Tratado de Não-Proliferação adiada com o cinquentenário do Tratado de Não Proliferação (TNP) parece provável que aconteça em janeiro, é importante que os Estados possuidores de armas nucleares P-5 considerem e concordem em tomar medidas que complementem as de a Federação Russa e os Estados Unidos.

É hora de os estoques de armas nucleares serem definitivamente limitados, com reduções adicionais entre os P-5 a serem tomadas abaixo do limite. Obviamente, estabelecer um teto para os estoques nucleares dos outros estados possuidores de energia nuclear também é importante. 

Nosso mundo está tão interconectado que todas as armas nucleares, onde quer que estejam, devem ser eliminadas no menor tempo possível, para que um acidente ou erro de cálculo não leve a consequências humanitárias e ambientais catastróficas. [2]

O Papa Francisco enfatizou que “o uso da energia atômica para fins de guerra é imoral, assim como a posse de armas nucleares é imoral[3], uma vez que a intencionalidade intrínseca de possuir armas nucleares é a ameaça de usá-las.

A esse respeito, o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN, em português) estabeleceu uma proibição legal sobre a posse de armas nucleares e, no devido tempo, será uma base para que os Estados possuidores de armas nucleares se tornem participantes ao eliminarem seus programas. Por enquanto, as atuais partes do Tratado podem trabalhar para desenvolver os procedimentos que serão necessários para que a autoridade ou autoridades de verificação estabelecidas pelo Tratado possam assegurar que os programas de armas nucleares relevantes foram realmente eliminados.

O TPAN reconhece explicitamente que restrições devem ser impostas às armas convencionais, além das armas nucleares. Tendo em mente o papel que a dissuasão nuclear, incluindo a dissuasão nuclear ampliada, tem desempenhado entre os Estados, esforços adicionais substanciais devem ser feitos para lidar com as armas convencionais.

O mundo, de fato, tem feito progressos nesse sentido, como a
Convenção sobre Armas Convencionais, que tem se mostrado um acordo duradouro, com espaço para maior expansão, como evidenciado por seus protocolos como os que tratam de armas de lasers cegantes. Além disso, a crescente ameaça do uso de drones armados e sistemas de armas autônomas letais ressalta a urgência de abordar a necessidade ética de preservar a responsabilidade humana.

[N.T.: A justificativa é a de que é melhor tornar uma pessoa cega em definitivo do que matá-la. O que é mais cruel?]

As armas convencionais causaram danos terríveis em todo o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Este Comitê precisa redobrar seus esforços para fornecer caminhos para acordos que irão reduzir a dependência de quaisquer armas convencionais para resolver disputas. Esses esforços não apenas tornarão o desarmamento nuclear mais viável, mas também moderarão as interações entre os Estados em suas relações em curso.

Determinados como estamos a salvar as gerações vindouras do flagelo da guerra,
[4] não podemos nos permitir ser espectadores da violência e da guerra, de irmãos matando irmãos, como se estivéssemos assistindo a jogos de uma distância segura. As vidas das pessoas não são brinquedos. Não podemos ser espectadores indiferentes. [5]

[N.T.: E os seres humanos se "divertindo" nos "novos coliseus com gladiadores lutando até a morte" em séries distópicas de TV, como se a crueldade real já não fosse suficiente.]

Não podemos, como disse o Papa Francisco “continuar a aceitar as guerras com o desprendimento com que assistimos ao noticiário da noite”. [6]

Em conclusão, a Santa Sé deseja manifestar a sua convicção de que o espaço sideral deve continuar a ser o domínio pacífico que tem sido até agora na história da humanidade. Embora certos usos militares desse ambiente tenham sido implantados, como comunicações, navegação e monitoramento, eles também são essenciais para fins pacíficos.

Tornar este ambiente armado, seja por meio do uso de armas, seja pelo ataque de objetos espaciais do solo, seria extremamente perigoso. As restrições existentes aos usos militares do espaço sideral, conforme consubstanciado no
Tratado do Espaço Exterior, devem ser estendidas.

A experiência de fragmentos orbitais de longa duração resultantes da destruição de satélites mostra como seria tolice colocar objetos espaciais em risco para o uso de armas. Transparência e medidas de fortalecimento da confiança, bem como instrumentos legalmente vinculantes devem ser prontamente negociados, para que o ambiente do espaço sideral permaneça seguro para todos nós.

Obrigado, senhor presidente.

 Nova Iorque, 13 de outubro de 2021.
 Arcebispo Gabriele Caccia

 
[1] Papa Francisco, FratelliTutti, 261.

[2] Cf. Papa Francisco, FratelliTutti, 262; Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, PP2.

[3] Papa Francisco, Encontro pela Paz, Memorial da Paz, Hiroshima, Japão, 24 de novembro de 2019.

[4] Cf. Carta das Nações Unidas.

[5] Cf. Papa Francisco, Discurso no Encontro das Religiões pela Paz, Roma, 7 de outubro de 2021.

[6] Idem.



Fonte da imagem: Pinterest.

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