15 de novembro de 2010

Cardeal Peter Turkson: Justiça Social e Evangelização.

Por Jason Adkins

O desafio de servir como a voz de Bento XVI em questões de justiça e paz deve ser muito pesado; requer a aplicação de princípios testados pelo tempo a uma vasta quantidade de temas em muitas situações geográficas, políticas e culturais diferentes. Atento às dificuldades de comunicação, de acordo com o contexto e a cultura de cada região, o novo chefe do Conselho Pontifício Justiça e Paz afirma que temos de nos esforçar para entender os termos difíceis e as ideias desde o ponto de vista de quem fala. Em outras palavras: temos de perguntar-nos o que a pessoa que fala tenta comunicar a sua audiência particular.

Adotando este ponto de partida, é possível promover uma profunda experiência de aprendizado pessoal, acredita o cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz, nomeado em outubro de 2009 por Bento XVI. O cardeal Turkson, de 62 anos, nasceu em Nsuta Wassaw (Gana) e é arcebispo emérito de Cape Coast, capital do país. Frequentou o seminário St. Anthony-on-Hudson de Nova Iorque e depois, estudou no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, onde completou o doutorado em Sagrada Escritura. Ordenado em 1975, foi nomeado arcebispo de Cape Coast em 1992 e cardeal por João Paulo II em 2003.

O cardeal Turkson trabalhou como chanceler da Catholic University College de Gana. Participou de uma série de comissões, conselhos e comitês pontifícios. Recentemente, esteve em St. Paul (Minnesota, Estados Unidos), visitando a Universidade St. Thomas, onde deu a conferência anual Habiger, patrocinada pelo Center for Catholic Studies. A conferência era sobre Caritas in Veritate: Good News for Society (Caritas in veritate: boa notícia para a sociedade).

Durante esta viagem, o cardeal Turkson concedeu uma entrevista a ZENIT, na qual tratou, entre outros assuntos, das dificuldades na compreensão e aplicação da Doutrina Social da Igreja, da importância da solidariedade e do trabalho da Santa Sé na ONU. Citando o relato bíblico de Zaqueu, ele acredita que as verdades sobre a tradição social da Igreja supõem uma preparação para a graça e convidam ao encontro com o Senhor. Nesta entrevista, o purpurado fala sobre os primeiros frutos da Caritas in Veritate, assim como sobre a necessidade de que a Santa Sé continue sendo a "voz da consciência" na ONU.

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ZENIT: Como cabeça do Conselho Pontifício Justiça e Paz o senhor tem que estar familiarizado com várias questões diferentes, desde economia até meio ambiente. Quais são suas principais fontes de inspiração para enfrentar esta tarefa?

Cardenal Turkson: Existem, basicamente, três influências. A primeira é o próprio Papa Bento XVI. Ele é, naturalmente, a razão da minha presença em Roma. Eu mesmo perguntei ao Papa quais são seus objetivos para o Conselho porque a natureza do meu trabalho é apoiar sua visão.

A segunda fonte de inspiração é meu trabalho como pastor. Antes de vir a Roma, eu era pastor. Minhas experiências pastorais são uma referência e uma fonte particularmente rica pra meu trabalho. Cheguei aqui com muitos sentimentos de pastor. Tenho de ser criativo, inovador e mostrar iniciativa em todas as situações que possa atravessar.

A terceira é minha própria formação nas Escrituras. Afinal, tudo o que se relaciona com nossa fé em ação nasce, em última análise, na Escritura. Eu não fui um aluno muito brilhante em Doutrina Social da Igreja - não fiz nenhum estudo acadêmico sobre este tema, somente o que era necessário para meu trabalho como pastor. Por isso, um grande apoio para meu trabalho é a base bíblica de tudo o que acontece.

ZENIT: Qual é a visão de Bento XVI sobre o Conselho Justiça e Paz?

Cardenal Turkson: Minha nomeação foi depois do sínodo sobre a África. No sínodo, o Santo Padre disse que em nosso trabalho devíamos distinguir entre ação pastoral e ação política. Tudo o que fazemos deve estar alinhado com a ação pastoral. As soluções políticas possíveis, devem estar de acordo com nossa compreensão da Igreja como família de Deus.

Quem conhece alguma coisa da vida de um bispo ou sacerdote num país de missão sabe que não se trata somente de ser um pastor ou administrador; pelo contrário, é um "faz tudo": é arquiteto, economista, projetista... Isto significa que como pastores temos que desenvolver um agudo sentido de inovação, criatividade e iniciativa. Nosso trabalho no Conselho deve ser igual.

O Conselho Pontifício Justiça e Paz é um departamento entre outros muitos no Vaticano e por isso deve alinhar-se ao Papa. Temos que falar como o faria o Papa quando se representa o Papa.

ZENIT: Nos Estados Unidos existe muita confusão com o termo "justiça social". Algumas pessoas atuam como se se tratasse de uma virtude ou de um humanitarismo enquanto outros acreditam que o termo deveria ser abandonado por ter sido distorcido e utilizado por ativistas políticos de esquerda. Poderia esclarecer essa confusão e definir exatamente o que significa a justiça social?

Cardenal Turkson: No fundo, a justiça social é uma função da própria fé e da doutrina da Igreja. Um grupo de investigadores dos Estados Unidos veio recentemente a Roma visitar-nos e falar sobre a recente encíclica. Ficou evidente na discussão sobre o tema que certos termos, como solidariedade, não são valorizados pelos americanos e são de difícil tradução, mas aprendemos com a discussão. É sempre bom ter em conta o ponto de vista dos demais.

Temos de entender o ponto de vista do autor e o que o autor expõe. Certos termos ou conceitos só podem ser apreciados quando vistos desde este ponto de vista. Com o termo justiça social temos de analisá-lo dessa forma. Em primeiro lugar, examinemos o termo justiça, por separado, e só depois acrescentar o adjetivo social e ver onde nos leva. Considero útil para que possamos ter um ideia correta da própria expressão.

A justiça pode ser considerada como a necessidade de respeitar as exigências de qualquer relação. Quando respeito estas relações, posso estar seguro de ser justo. Isto é certo com respeito à relação entre Deus e eu e é certo sobre a relação marido e mulher, estudante e professor, proprietário e trabalhador.

As exigências de qualquer relação, quando se espera entre as partes, constituem a justiça. Se nos referimos a ela como social, significa somente que vemos um conjunto de relações e expectativas entre os membros da sociedade. Por tanto, isto não é conservador nem liberal.

Vamos considerar as exigências de certas relações nas quais estamos envolvidos, quer dizer, na causa da justiça. Temos de tomar cuidado de não ser demasiado teóricos. Existe uma relação entre o legislador e o cidadão, entre chefes e trabalhadores que deve ser respeitada. A justiça social não diz respeito à distribuição ou com fazer que as pessoas das classes mais altas da sociedade ajudem as de classe mais baixa.

O ponto de partida é reconhecer o sentido de justiça nas relações e guiar-se por ele. Quando nos deixamos guiar por ele, nos ajuda a eliminar algumas das dificuldades na compreensão do termo. Devemos compreender a justiça social em termos de relações.

ZENIT: Também nos Estados Unidos existe muita polarização na forma como os católicos politicamente ativos interpretam e aplicam a Doutrina Social da Igreja. Por exemplo: alguns acreditam que praticamente todos os problemas sociais devem ser resolvidos pessoalmente, por organizações ou atores não governamentais enquanto outros pensam que é dever do Estado. Assegurar que todos os cidadãos tenham acesso aos serviços básicos de saúde é só um exemplo. O que acha desta polarização?

Cardenal Turkson: Poderia existir um desencontro entre o ensinamento do Papa e a realidade da situação particular nos Estados Unidos. Não estou seguro de que o debate sobre a saúde seja uma tentativa de colocar em prática o pensamento do Papa com relação à justiça social. A situação provavelmente possa estar relacionada com os dois campos políticos dentro daquele país. Não estou seguro de que o debate sobre a saúde seja uma tentativa de por em prática o pensamento do Papa nesse sentido.

A situação provavelmente possa estar relacionada com os dois campos políticos dentro deste país. Em todo caso, teria sua própria dinâmica. Se pensamos no caráter comunitário do ensinamento do Santo Padre, este se baseia na antropologia cristã da pessoa. A pessoa é criada para ser parte de uma família. A família é o ponto de partida da compreensão do Papa sobre a pessoa humana.

As pessoas pertencem a uma família. A fraternidade é um conceito que não se entende bem aqui. Sendo membros de uma família, todos somos irmãos e irmãs no caminho. É este o ponto de partida comunitária. Podemos perseguir iniciativas individuais, mas o ponto de partida original significa que devemos ser conscientes de não deixar um irmão ou irmã para trás. A lógica do dom do Santo Padre se aplica aqui.

Não deixamos um irmão ou irmã para trás porque reconhecemos o que a pessoa é: um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Nossa solidariedade com eles é uma expressão do amor de Deus Pai por cada um de nós. A pessoa deve imitar o amor de Deus pelos demais. Devemos converter-nos em amor ou em dom para outras pessoas.

Significa que a pessoa humana deve pertencer a uma família. A solidariedade é um ponto básico de partida: a irmandade dos homens sob a paternidade de Deus. Não estou convencido de que a discussão política na sociedade americana tenha o mesmo ponto de partida. Portanto, fazer da compreensão da pessoa humana e da necessidade da solidariedade o ponto de partida se converte numa missão. Devemos usar a Doutrina Social da Igreja como meio de evangelização. Temos de compartilhar isto com os não cristãos.

Qualquer legislação que se adote deve ser uma expressão de solidariedade, uma expressão da natureza do amor de Deus e a gratidão com que Deus nos ama e se ocupa de nós.

ZENIT: Que efeito está tendo a Doutrina Social da Igreja nos homens de negócios e na sociedade?

Cardeal Turkson: As pessoas estão interessadas na tradição da Igreja. Muitos descobriram o lugar de Deus em Cristo, mostrando que a doutrina social da Igreja é uma ferramenta da evangelização. Por exemplo, no relato evangélico de Zaqueu, ele era um cobrador de impostos. Estava se enriquecendo às custas dos outros. Mas quando conheceu Jesus, experimentou uma transformação e disse: "Se defraudei alguém, eu lhe devolverei o dinheiro".

Como é possível que, antes de conhecer Jesus, ele não percebera que o que estava fazendo era enganar as pessoas? A história de Zaqueu mostra que, quando se tem um determinado encontro com o Senhor, há uma transformação em nós. Da mesma forma, as pessoas podem precisar dessa experiência do Senhor. Devem perceber que não se pode continuar como de costume. Não se pode pisotear outro ser humano.

Ao contrário, as empresas devem levar ao desenvolvimento integral da pessoa humana. A busca do progresso humano não pode ser alheio ao caráter comunitário da pessoa humana. A encíclica Caritas in veritate afirma que o desenvolvimento humano deve ser integral e completo. Ela nos convida a redescobrir o desenvolvimento humano e o progresso humano.

ZENIT: A Igreja precisa voltar a um tomismo mais rigoroso em seu enfoque das questões sociais atuais, como foi nas primeiras encíclicas sobre o tema?

Cardeal Turkson: Permita-me expor dessa forma: a este Papa, em particular, é atribuída a formulação de uma hermenêutica da continuidade. Essa hermenêutica não se aplica somente à questão do Concílio Vaticano II e aos concílios ecumênicos anteriores, mas também à continuidade entre a doutrina social pontifícia recente e a dos papas anteriores. Naturalmente, a mudança de contexto requer que a ênfase seja dada de outra forma. Às vezes, a formulação de certas questões é enquadrada de maneira diferente, mas existe uma continuidade real.

Quando este Papa fala sobre tradição, ele se refere a tudo o que falamos no passado. Não foi o tomismo, em última instância, o que proporcionou o ponto de partida para os ensinamentos sociais da Igreja, mas a própria Escritura. O tomismo era uma maneira de articular os princípios que se encontram na Bíblia.

Não sei se devemos voltar a Tomás para uma formulação clara. É provável que certa tradição dentro da Igreja - por meio de catecismos, com suas perguntas e respostas - tenha criado uma aproximação particular sobre as questões. Às vezes, o tomismo é útil neste contexto, mas não deve excluir o desejo de ser discursivo sobre os problemas e essa nova encíclica nos conduz a isso.

As encíclicas estão escritas para todas as pessoas de boa vontade. Com este propósito em mente, necessariamente não se pode apresentar os ensinamentos como um tipo de catequese, de forma tomista. O estilo discursivo não se move longe do tomismo, mas enriquece a tradição. Está destinado a um público mais amplo, ao qual as encíclicas se dirigem. Isso representa o abandono de um formato claro e tomista.

ZENIT: Na sociedade de hoje, poderia ser útil uma redescoberta da ideia, atualmente esquecida, do reinado social de Cristo, seu senhorio sobre todas as coisas, incluindo o âmbito político e econômico?

Cardeal Turkson: O Santo Padre disse que a verdade da razão e a verdade da fé não se opõem, mas a verdade da razão é convidada à transcendência. As coisas da verdade da razão não são um ponto final, de chegada. A verdade da fé deve transcender a verdade da razão. A lei natural, em si, é uma preparação para a ordem da graça.

Temos de reconhecer a vocação da razão como ordenada à transcendência, à figura de Jesus como Deus encarnado. Quando é este o caso, podemos nos referir ao que a recente encíclica diz sobre isso. O livro único da natureza mostra Deus como o autor da sua criação, mas também de tudo o que pertence a ela. Portanto, é o Senhor de todas as coisas, incluindo as relações da pessoa humana.

Existe uma tendência no mundo a conceber a pessoa humana como autora de si mesma ou configurada pela cultura e pelas forças externas. Esta é uma tentativa de substituir Deus e acabar com Ele. Em vista disso, os Papas João Paulo II e Bento XVI nos recordam que, sem transcendência, a vida não tem sentido e não pode alcançar seus próprios objetivos. A necessidade da realeza de Jesus é precisamente porque é a revelação do Pai. É necessário apresentar a vocação da razão como uma vocação à transcendência.

Trata-se de uma verdade revelada por Cristo e em Cristo. Assim, a lei natural não é um ponto de chegada, mas cada pessoa é convidada à transcendência para descobrir-se na finalidade da verdade de Jesus, a descobrir o plano do Pai na verdade da criação. Esse convite à transcendência se converte no objeto da missão evangelizadora da Igreja. Falamos da verdade da razão, mas não nos detemos aí. É preciso descobrir a si mesma em Jesus como a revelação do Pai.

ZENIT: Quando o senhor fala a organismos como as Nações Unidas, como fez em setembro sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e os exorta a defender e construir em suas atividades uma cultura da vida, parece que esta mensagem está chegando?

Cardeal Turkson: Penso que existe um monte de coisas por descobrir sobre como as Nações Unidas trabalham. Supõe-se que as Nações Unidas em si são uma reunião dos Estados soberanos, que os chefes das nações soberanas se unem. Os especialistas da ONU facilitam estas reuniões, mas precisamente este serviço põe em perigo a reunião e permite que seja sequestrada por pessoas com uma agenda. Sempre devemos reconhecer este risco.

O financiamento da ONU vem dos chefes de Estado soberanos. Mas o financiamento pode vir também com exigências ou condições. Temos de reconhecer tudo isso. Por isso, quando os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são debatidos, é provável que algumas pessoas que estão financiando e conduzem o debate tenham sua própria agenda de interesses.

A voz da Santa Sé tem o valor de servir como um recordatório de certos temas que em geral não são discutidos. Inclusive se a posição da Santa Sé não é aprovada, serve como uma lembrança aos países sobre estes temas e valores, a importância de proteger a vida e a dignidade humanas. Mesmo se formos a única voz na sala, é necessário.

Muitas pessoas ainda nos parabeniza por discutir certos temas. As atividades da Santa Sé também podem abrir espaço para outras discussões sobre por que alguns Estados estão debatendo sobre certos temas, ou se podem conduzir a uma perda de financiamento para os demais. Por exemplo, antes da visita do Papa a Londres, alguém perguntou sobre o desenvolvimento em outros países, se a saúde reprodutiva estaria conectada diretamente a todas as ajudas. Isso significaria que toda ajuda que sai teria isso como condição para o financiamento. Isso foi algo que pôde ser discutido graças à presença da Igreja na ONU.

Todos estes detalhes precisam ser reconhecidos quando falamos sobre a participação na ONU. Devemos fazer que a verdade da Igreja seja conhecida, independentemente do grau de adesão que possa obter.



(E ainda há católicos que acham um ABSURDO a presença da Santa Sé na ONU. Convenhamos que a ignorância não conhece limites...)

Um comentário:

  1. Gostei muito dessa entrevista...

    "Podemos perseguir iniciativas individuais, mas o ponto de partida original significa que devemos ser conscientes de não deixar um irmão ou irmã para trás."

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