3 de abril de 2010

Palavras de João Paulo II sobre o tema da consciência ecológica…

Nos idos de 1989, ao realizar um discurso no Dia Mundial da Paz (08.12.1989), nosso amado papa João Paulo II apresentou uma reflexão que une a paz com Deus Criador com a paz com a Sua Criação.

Lendo-a vinte anos depois, poderemos ver o quanto ainda é atual quanto às condições que hoje encontramos em nossa sociedade e como nosso amado papa Bento XVI a complementou com suas reflexões para o Dia Mundial da Paz para este ano.

Coincidência ou providência? Comparem as duas mensagens e tirem suas conclusões... Boa leitura, ou melhor, boa reflexão!!!



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MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O PAPA
JOÃO PAULO II
PARA A CELEBRAÇÃO DO
DIA MUNDIAL DA PAZ
1° DE JANEIRO DE 1990

PAZ COM DEUS CRIADOR, PAZ COM TODA A CRIAÇÃO

 
Introdução

1. Observa-se nos nossos dias uma consciência crescente de que a paz mundial está ameaçada, não apenas pela corrida aos armamentos, pelos conflitos regionais e por causa das injustiças que ainda existem no seio dos povos e entre as nações, mas também pela falta do respeito devido à natureza, pela desordenada exploração dos seus recursos e pela progressiva deterioração da qualidade de vida. Semelhante situação gera um sentido de precariedade e de insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo coletivo, de açambarcamento e de prevaricação. Perante a difusa degradação do ambiente, a humanidade já se vai dando conta de que não se pode continuar a usar os bens da terra como no passado. A opinião pública e os responsáveis políticos estão preocupados com isso; e os estudiosos das mais diversas disciplinas debruçam-se sobre as causas do que sucede. Está assim a formar-se uma consciência ecológica, que não deve ser reprimida, mas antes favorecida, de maneira que se desenvolva e vá amadurecendo até encontrar expressão adequada em programas e iniciativas concretas.

2. Não poucos valores éticos, de importância fundamental para o progresso de uma sociedade pacífica, têm uma relação direta com a questão do ambiente. A interdependência dos muitos desafios, que o mundo de hoje tem de enfrentar, confirma a exigência de soluções coordenadas e baseadas numa coerente visão moral do mundo. Para os cristãos, essa visão apoia-se nas convicções religiosas derivantes da Revelação. É por isso que, ao iniciar esta mensagem desejo aqui lembrar a narração bíblica da criação e gostaria que aqueles que não compartilham as nossas convicções de fé pudessem encontrar também eles nessa evocação elementos úteis para uma linha comum de reflexão e de empenhamento.

 
I. E Deus viu que as coisas eram boas

3. Nas páginas do Livro do Gênesis, em que está exaltada a primeira auto-revelação de Deus à humanidade (Gen 1-3), são repetidas, como um refrão, as palavras: “E Deus viu que as coisas eram boas”. Mas quando, depois de ter criado o céu, o mar, a terra e tudo o que nela se contêm, Deus criou o homem e a mulher, tal expressão muda consideravelmente: «E Deus contemplou tudo o que tinha feito; e eis que estava tudo muito bem» (Gen 1, 31). Deus confiou ao homem e à mulher todo o resto da criação e então – conforme aí lemos – pode repousar «do trabalho por Ele realizado» (Gen 2, 3). O chamamento de Adão e Eva a participarem na realização do plano de Deus sobre a criação estimulava aquelas capacidades e aqueles dotes que distinguem a pessoa humana de todas as demais criaturas; e, ao mesmo tempo, estabelecia uma relação ordenada entre os homens e a inteira criação. Feitos à imagem e semelhança de Deus, Adão e Eva deveriam exercer o seu domínio sobre a terra (Gen 1, 28), com sabedoria e com amor. Mas eles, ao contrário, com o próprio pecado destruíram a harmonia existente, pondo-se deliberadamente contra o desígnio do Criador. Isto levou não só à alienação do homem de si mesmo, à morte, e ao fratricídio, mas também a uma certa rebelião da mesma terra em relação a ele (cf. Gen 3, 17-19; 4, 12). Toda a criação se tornou sujeita à caducidade e, desde então, espera, de maneira misteriosa, ser libertada, também ela, para entrar na gloriosa liberdade dos filhos de Deus (cf. Rom 8, 21).

4. Os cristãos professam que na morte e na ressurreição de Cristo se realizou a obra da reconciliação da humanidade com o Pai, ao qual aprouve «reconciliar consigo todas as coisas, quer na terra, quer no céu, estabelecendo a paz pelo sangue da sua cruz» (Col 1, 19-20). A criação foi assim renovada (cf. Ap 21, 5) e sobre ela, anteriormente submetida à «escravidão» da morte e da corrupção (cf. Rom 8, 21), foi difundida uma vida nova, enquanto que «nós esperamos céus novos e uma nova terra, nos quais habitará a justiça» (2 Pdr 3, 13). Deste modo, o Pai «deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade, conforme o seu benévolo desígnio que, nele, de antemão estabelecera, para ser realizado depois, na plenitude dos tempos, a saber: reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas» (Ef 1, 9-10).

5. Estas reflexões bíblicas lançam uma luz maior sobre a relação entre o agir humano e a integridade da criação. Quando o homem se afasta do desígnio de Deus criador, provoca uma desordem que se repercute inevitavelmente sobre o resto do universo. Se o homem não estiver em paz com Deus, também a própria terra não estará em paz: «Por isso a terra está de luto, desfalecem quantos nela habitam com os animais do campo e as aves do céu; por fim, até os peixes do mar perecerão» (Os 4, 3). A experiência deste «sofrimento» da terra é comum também àqueles que não compartilham a nossa fé em Deus. Estão, efetivamente, diante dos olhos de todos as devastações crescentes, causadas no mundo da natureza pelo comportamento de homens indiferentes às exigências da ordem e da harmonia que o regem, exigências recônditas sim, mas claramente perceptíveis. Faz-se, portanto, a pergunta, com ansiedade, se será possível ainda dar remédio aos danos provocados. É evidente que uma solução adequada não pode consistir simplesmente numa melhor gestão, ou num uso menos irracional dos recursos da terra. Muito embora se reconheça a utilidade prática de semelhantes providências, parece ser necessário examinar a fundo e enfrentar no seu conjunto a grave crise moral de que a degradação do ambiente é um dos aspectos preocupantes.

II. A crise ecológica: um problema moral

6. Alguns elementos da crise ecológica atual revelam de maneira evidente o seu caráter moral. Entre esses elementos tem de se enumerar, em primeiro lugar, a aplicação sem discernimento dos progressos científicos e tecnológicos. Muitas descobertas recentes têm trazido inegavelmente benefícios para a humanidade; mais ainda, elas manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus no mundo. Já se verificou, porém, que a aplicação de algumas dessas descobertas no campo industrial e agrícola, a longo prazo produzem efeitos negativos. Isto pôs cruamente em evidência que toda e qualquer intervenção numa área determinada do «ecossistema» não pode prescindir da considerarão das suas consequências noutras áreas e, em geral, das consequências no bem-estar das futuras gerações. O gradual esgotamento do estrato do ozônio e o consequente «efeito estufa» que ele provoca já atingiram dimensões críticas, por causa da crescente difusão das indústrias, das grandes concentrações urbanas e dos consumos de energia. Escórias industriais, gases produzidos pela combustão de carburantes fósseis, desflorestação imoderada, uso de alguns tipos de herbicidas, refrigerantes e propelentes, tudo isto, como se sabe, é nocivo para a atmosfera e para o ambiente. Daí resultam múltiplas mudanças meteorológicas e atmosféricas, cujos efeitos vão desde o prejuízos para a saúde até à possível submersão, no futuro, de terras baixas. Enquanto em alguns casos a danificação já é talvez irreversível, em muitos outros casos ela pode ser ainda entravada. É um dever, portanto, que se impõe à inteira família humana – indivíduos, Estados e Organismos internacionais – assumir cada um seriamente as próprias responsabilidades.

7. Mas o índice mais profundo e mais grave das implicações morais, ínsitas na problemática ecológica, é constituído pela falta de respeito pela vida, como se pode verificar em muitos comportamentos inquinantes. Muitas vezes as condições da produção prevalecem sobre a dignidade do trabalhador e os interesses econômicos são postos acima do bem de cada uma das pessoas, se não mesmo acima do bem de populações inteiras. Nestes casos, o inquinamento e a destruição do ambiente são fruto de uma visão redutiva e inatural que, algumas vezes, denota um verdadeiro desprezo do homem. De modo análogo, sucede que melindrosos equilíbrios ecológicos são profundamente alterados, por uma descomedida destruição das espécies animais e vegetais, ou por uma desavisada exploração dos recursos; e tudo isto – é bom recordá-lo – mesmo quando é realizado em nome do progresso e do bem-estar, não se torna, de fato, uma vantagem para a humanidade. Por fim, não pode deixar de se atender, com profunda inquietação, às possibilidades formidáveis da pesquisa biológica. Talvez ainda não se esteja em condições de avaliar as perturbações provocadas na natureza por uma indiscriminada manipulação genética e pelo imprudente desenvolvimento de novas plantas e de novas formas de vida animal, para não falar já de inaceitáveis intervenções sobre as origens da própria vida humana. A ninguém passa despercebido que, num campo tão delicado, a indiferença ou a rejeição das normas éticas fundamentais levam o homem às portas da própria autodestruição. A norma fundamental, capaz de inspirar um sadio progresso econômico, industrial e científico, é o respeito pela vida e, em primeiro lugar, pela dignidade da pessoa humana. Para todos é evidente a complexidade do problema ecológico. Há no entanto, alguns princípios basilares que, com o respeito da autonomia legítima e da competência específica de quantos estão empenhados em buscar-lhe uma solução, podem orientar a pesquisa no sentido de soluções adequadas e duradouras. Trata-se de uma série de princípios essenciais para construir uma sociedade pacífica, a qual não poderá ignorar nem o respeito pela vida, nem o sentido da integridade da criação.

 
III. Em busca de uma solução

8. Teologia, filosofia e ciência estão de acordo quanto a uma concepção do universo harmonioso; isto é, de um verdadeiro «cosmos», dotado de uma sua integridade e um seu equilíbrio interno e dinâmico. Esta ordem tem de ser respeitada: a humanidade está chamada a descobrir e explorar este «cosmos» com sapiente cautela; e depois, a fazer uso dele salvaguardando a sua integridade. Por outro lado, a terra é essencialmente uma herança comum, cujos frutos devem reverter em benefício de todos. «Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos os homens e de todos os povos», reafirmou o Concílio Vaticano II (Const. Gaudium et spes, n. 69). Ora isto tem implicações diretas no nosso problema. É injusto que alguns poucos privilegiados continuem a acumular bens supérfluos, dilapidando os recursos disponíveis, enquanto há multidões de pessoas que vivem em condições de miséria, ao nível ínfimo de sobrevivência. E vem agora a própria dimensão dramática do desajuste ecológico ensinar-nos quanto a cobiça e o egoísmo, individuais ou coletivos, são contrários à ordem do universo, no qual está inscrita também a interdependência recíproca.

9. Os conceitos de ordem no universo e de herança comum põem, ambos eles, em realce, a necessidade de um sistema de gestão dos recursos da terra mais bem coordenado a nível internacional. As dimensões do problema do ambiente, em muitos casos, transcendem as fronteiras de cada Estado: a sua solução, portanto, não pode ser encontrada somente a nível nacional. Em tempos recentes, registaram-se alguns passos prometedores, no sentido desta desejada ação internacional concertada; mas os instrumentos e os organismos que existem mostram-se ainda inadequados para ser posto em prática um plano coordenado de intervenções. Obstáculos políticos, formas de nacionalismo exagerado e interesses econômicos, para lembrar somente alguns fatores, entravam ou até impedem mesmo a cooperação internacional e a adoção de iniciativas eficazes a longo prazo. A afirmada necessidade de uma ação concertada a nível internacional não comporta, como é obvio, uma diminuição da responsabilidade de cada um dos Estados. Com efeito, estes devem não somente pôr em prática as normas aprovadas juntamente com as autoridades de outros Estados, mas também favorecer, no seu interior, uma contextura sócio-econômica adequada, com particular atenção aos setores da sociedade mais vulneráveis. Compete a cada Estado, no âmbito do próprio território, a tarefa de prevenir a degradação da atmosfera e da biosfera, exercendo um controlo atento, além do mais, sobre os efeitos das novas descobertas tecnológicas e científicas; e ainda, dando aos próprios cidadãos a garantia de não estarem expostos a agentes inquinantes e a emanações tóxicas. Hoje em dia, vai-se falando cada vez mais frequentemente do direito a um ambiente seguro, como de algo que deve passar a figurar numa Carta atualizada dos direitos do homem.

 
IV. A urgência de uma nova solidariedade

10. A crise ecológica põe em evidência a urgente necessidade moral de uma nova solidariedade, especialmente nas relações entre os países em vias de desenvolvimento e os países altamente industrializados. Os Estados devem demonstrar-se cada vez mais solidários na promoção do desenvolvimento de um ambiente natural e social pacífico e salubre. Por exemplo, aos países de há pouco industrializados não se pode requerer que apliquem certas normas restritivas às próprias indústrias nascentes, se os países industrializados há muito não forem os primeiros a aplicá-las no seu interior. Por seu turno, os países em vias de industrialização não podem moralmente repetir os erros cometidos por outros no passado, continuando a danificar o ambiente com produtos poluentes, com desflorestações excessivas ou com a exploração ilimitada de recursos que se esgotem. Neste mesmo contexto, é urgente que se encontre uma solução para o problema do tratamento e da eliminação dos detritos tóxicos. Nenhum plano e nenhuma organização, todavia, estão em condições de efetuar as mudanças entrevistas, se os responsáveis das Nações de todo o mundo não estiverem verdadeiramente convencidos da necessidade absoluta desta nova solidariedade, que é exigida pela crise ecológica e que é essencial para a paz. Semelhante exigência proporcionará ocasiões oportunas para consolidar as relações pacíficas entre os Estados.

11. Importa acrescentar, ainda, que não se obterá nunca o justo equilíbrio ecológico, se não forem primeiro enfrentadas diretamente as formas estruturais de pobreza existentes no mundo. Por exemplo, a pobreza rural e a distribuição da terra em muitos países levaram a uma agricultura de mera subsistência e ao empobrecimento dos terrenos. Quando a terra deixa de produzir, muitos agricultores transferem-se para outras zonas, incrementando muitas vezes o processo de desflorestação imoderada; ou então estabelecem-se em centros urbanos já carentes de estruturas e serviços. Além disto, sucede que alguns países fortemente endividados estão a pontos de destruir o próprio patrimônio natural, à custa de irremediáveis desequilíbrios ecológicos, contanto que consigam obter novos produtos de exportação. Diante de tais situações, porém, lançar acusações somente aos pobres, pelo que se refere às consequências negativas sobre o ambiente por eles provocadas, seria uma maneira inaceitável para avaliar as responsabilidades. É necessário, antes de mais, ajudar os pobres, a quem a terra está confiada, como aliás o está a todos os demais, a superarem a sua pobreza; e isto requer uma reforma corajosa das estruturas e novos esquemas nas relações entre os Estados e os povos.

12. Mas há ainda uma outra ameaça perigosa, que incumbe sobre nós: a guerra. A ciência moderna já dispõe, infelizmente, da capacidade de modificar o ambiente com intuitos hostis; e tal manumissão, a longo prazo, poderia vir a ter efeitos imprevisíveis e ainda mais graves. Não obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química, bacteriológica e biológica, subsiste o fato de continuarem nos laboratórios as pesquisas para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterarem os equilíbrios naturais. Hoje em dia, qualquer forma de guerra a escala mundial causaria danos ecológicos incalculáveis. Mas até mesmo as guerras locais ou regionais, por mais limitadas que sejam, não se limitam a destruir apenas as vidas humanas e as estruturas da sociedade; mas danificam a terra, devastando as colheitas e a vegetação e envenenando os terrenos e as águas. Aqueles que sobrevivem à guerra vêem-se na necessidade de começar uma nova vida em condições naturais muito difíceis; e estas, por sua vez, criam situações de grave mal-estar social, com consequências negativas também na ordem do ambiente.

13. A sociedade hodierna não encontrará solução para o problema ecológico, se não revir seriamente o seu estilo de vida. Em muitas partes do mundo, ela mostra-se propensa ao hedonismo e ao consumismo e permanece indiferente aos danos que deles derivam. Como já observei, a gravidade da situação ecológica revela quanto é profunda a crise moral do homem. Se faltar o sentido do valor da pessoa e da vida humana, dá-se o desinteresse pelos outros e pela terra. A austeridade, a temperança, a disciplina e o espírito de sacrifício devem conformar a vida de todos os dias, a fim de que não se verifique para todos o constrangimento a suportar as consequências negativas da incúria de alguns poucos. Há uma necessidade urgente, pois, de educação para a responsabilidade ecológica: responsabilidade em relação a si próprio, responsabilidade em relação aos outros e responsabilidade em relação ao ambiente. E trata-se de uma educação que não pode basear-se simplesmente no sentimento ou sobre uma mal definida veleidade. O seu fim não pode ser ideológico nem político e a maneira de a estruturar não pode apoiar-se na rejeição do mundo moderno, nem num vago desejo de retornar ao «paraíso perdido». A educação autêntica para a responsabilidade implica uma verdadeira conversão na maneira de pensar e no comportamento. E quanto a isso, as Igrejas e as outras Instituições religiosas, os organismos governativos e não-governativos, como também todos os componentes da sociedade têm um papel bem determinado a desempenhar. A primeira educadora, no entanto, permanece a família, na qual as crianças aprendem a respeitar o próximo e a amar a natureza.

14. Não se pode descurar, por fim, o valor estético da criação. O contato com a natureza é em si mesmo algo profundamente regenerador, assim como a contemplação do seu esplendor é susceptível de dar paz e serenidade. A Bíblia fala com frequência da bondade e da beleza da criação, chamada a dar glória a Deus (cf., por exemplo, Gen 1, 4 e passim; Sl 8, 2; 104, 1 ss.; Sab 13, 3-5; Sir 39, 16. 33; 43, 1. 9). Talvez mais difícil, mas não menos intensa pode ser a contemplação das obras do engenho humano. As cidades também podem ter uma sua beleza peculiar, que deve levar as pessoas a protegerem o ambiente que as circunda. Uma boa planificação urbana constitui um aspecto importante da proteção do ambiente; e o respeito pelas características morfológicas da terra é um requisito indispensável para uma implantação ecologicamente correta. Numa palavra, não se deve descurar nunca a relação que existe entre uma formação estética apropriada e a preservação de um ambiente sadio.

 
V. A questão ecológica: uma responsabilidade para todos

15. A questão ecológica nos dias de hoje assumiu tais dimensões, que nela está envolvida a responsabilidade de todos. Os vários aspectos da mesma, que procurei ilustrar, indicam a necessidade de esforços conjugados, com o fim de estabelecer os deveres e as tarefas que competem às pessoas individualmente consideradas, aos povos, aos Estados e à Comunidade internacional. Isto não somente anda junto com as tentativas para construir a paz, mas objetivamente também as confirma e reforça. Inserindo a questão ecológica no contexto mais vasto da causa da paz na sociedade humana, melhor nos darmos conta quanto é importante prestar atenção àquilo que a terra e a atmosfera nos revelam: existe no universo uma ordem que deve ser respeitada; e a pessoa humana, dotada da possibilidade de livre escolha, tem uma grave responsabilidade na preservação desta ordem, também em função do bem-estar das gerações futuras. A crise ecológica – uma vez mais o repito – é um problema moral. Até mesmo os homens e mulheres que não têm particulares convicções religiosas, também eles, levados pelo sentido das próprias responsabilidades em relação ao bem comum, reconhecem o dever de contribuir para o saneamento do ambiente. Com maior razão, aqueles que acreditam em Deus criador e, por conseguinte, estão convencidos que existe no mundo uma ordem bem definida e que tem uma finalidade, devem sentir-se chamados a atender ao problema. Os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua fé. Devem estar conscientes, portanto, do vasto campo de cooperação ecumênica e inter-religiosa que se abre diante deles.

16. Ao concluir esta mensagem, desejo dirigir-me especialmente aos meus Irmãos e às minhas Irmãs da Igreja católica, para lhes recordar a obrigação importante de tomarem cuidado com tudo o que foi criado. O empenhamento de quem acredita em Deus por um ambiente sadio promana diretamente da sua fé no mesmo Deus criador, das avaliações dos efeitos do pecado original e dos pecados pessoais e da certeza de terem sido remidos por Cristo. O respeito pela vida e pela dignidade da pessoa humana inclui também o respeito e o cuidado pelo universo criado, que está chamado a unir-se com o homem para glorificar a Deus (cf. Sl 148 e 96). São Francisco de Assis, que proclamei em 1979 Patrono dos cultores da Ecologia (cf. Carta Apost. Inter Sanctos: AAS 71 [1979], pp. 1509-1510), dá aos cristãos o exemplo de um respeito pleno e autêntico pela integridade da criação. Amigo dos pobres e amado pelas criaturas de Deus, ele convidou a todos – animais, plantas, forças naturais e até mesmo o irmão Sol e a irmã Lua – a honrarem e louvarem o Senhor. Do mesmo «Pobrezinho» de Assis nos vem o testemunho de que: estando em paz com Deus, melhor nos podemos consagrar a construir a paz com toda a criação, inseparável da paz entre os povos. São meus votos que a sua inspiração: nos ajude a conservar sempre vivo o sentido da «fraternidade» com todas as coisas boas e belas criadas por Deus onipotente; e nos alerte para o grave dever de as respeitar e conservar com cuidado, no quadro da mais ampla e mais elevada fraternidade humana.

 
Vaticano, 8 de Dezembro do ano de 1989.

IOANNES PAULUS PP II

 
Fonte: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/messages/peace/documents/hf_jpii_mes_19891208_xxiii-world-day-for-peace_po.html


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MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO
DIA MUNDIAL DA PAZ
1 DE JANEIRO DE 2010

SE QUISERES CULTIVAR A PAZ, PRESERVA A CRIAÇÃO




1. Por ocasião do início do Ano Novo, desejo expressar os mais ardentes votos de paz a todas as comunidades cristãs, aos responsáveis das nações, aos homens e mulheres de boa vontade do mundo inteiro. Para este XLIII Dia Mundial da Paz, escolhi o tema: Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação. O respeito pela criação reveste-se de grande importância, designadamente porque «a criação é o princípio e o fundamento de todas as obras de Deus» [1] e a sua salvaguarda torna-se hoje essencial para a convivência pacífica da humanidade. Com efeito, se são numerosos os perigos que ameaçam a paz e o autêntico desenvolvimento humano integral, devido à desumanidade do homem para com o seu semelhante – guerras, conflitos internacionais e regionais, atos terroristas e violações dos direitos humanos –, não são menos preocupantes os perigos que derivam do desleixo, se não mesmo do abuso, em relação à terra e aos bens naturais que Deus nos concedeu. Por isso, é indispensável que a humanidade renove e reforce «aquela aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho». [2]

2. Na encíclica Caritas in veritate, pus em realce que o desenvolvimento humano integral está intimamente ligado com os deveres que nascem da relação do homem com o ambiente natural, considerado como uma dádiva de Deus para todos, cuja utilização comporta uma responsabilidade comum para com a humanidade inteira, especialmente os pobres e as gerações futuras. Assinalei também que corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade, quando a natureza e sobretudo o ser humano são considerados simplesmente como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo. [3] Pelo contrário, conceber a criação como dádiva de Deus à humanidade ajuda-nos a compreender a vocação e o valor do homem; na realidade, cheios de admiração, podemos proclamar com o salmista: «Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que lá colocastes, que é o homem para que Vos lembreis dele, o filho do homem para dele Vos ocupardes?» (Sl 8, 4-5). Contemplar a beleza da criação é um estímulo para reconhecer o amor do Criador; aquele Amor que «move o sol e as outras estrelas». [4]

3. Há vinte anos, ao dedicar a Mensagem do Dia Mundial da Paz ao tema Paz com Deus criador, paz com toda a criação, o Papa João Paulo II chamava a atenção para a relação que nós, enquanto criaturas de Deus, temos com o universo que nos circunda. «Observa-se nos nossos dias – escrevia ele – uma consciência crescente de que a paz mundial está ameaçada (…) também pela falta do respeito devido à natureza». E acrescentava que esta consciência ecológica «não deve ser reprimida mas antes favorecida, de maneira que se desenvolva e vá amadurecendo até encontrar expressão adequada em programas e iniciativas concretas». [5] Já outros meus predecessores se referiram à relação existente entre o homem e o ambiente; por exemplo, em 1971, por ocasião do octogésimo aniversário da encíclica Rerum novarum de Leão XIII, Paulo VI houve por bem sublinhar que, «por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o homem] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação». E acrescentou que, deste modo, «não só o ambiente material se torna uma ameaça permanente – poluições e lixo, novas doenças, poder destruidor absoluto – mas é o próprio contexto humano que o homem não consegue dominar, criando assim para o dia de amanhã um ambiente global que se lhe poderá tornar insuportável. Problema social de grande envergadura, este, que diz respeito à inteira família humana». [6]

4. Embora evitando de intervir sobre soluções técnicas específicas, a Igreja, «perita em humanidade», tem a peito chamar vigorosamente a atenção para a relação entre o Criador, o ser humano e a criação. Em 1990, João Paulo II falava de «crise ecológica» e, realçando o caráter prevalente ético de que a mesma se revestia, indicava «a urgente necessidade moral de uma nova solidariedade». [7] Hoje, com o proliferar de manifestações duma crise que seria irresponsável não tomar em séria consideração, tal apelo aparece ainda mais premente. Pode-se porventura ficar indiferente perante as problemáticas que derivam de fenômenos como as alterações climáticas, a desertificação, o deterioramento e a perda de produtividade de vastas áreas agrícolas, a poluição dos rios e dos lençóis de água, a perda da biodiversidade, o aumento de calamidades naturais, o desflorestamento das áreas equatoriais e tropicais? Como descurar o fenômeno crescente dos chamados «refugiados ambientais», ou seja, pessoas que, por causa da degradação do ambiente onde vivem, se vêem obrigadas a abandoná-lo – deixando lá muitas vezes também os seus bens – tendo de enfrentar os perigos e as incógnitas de uma deslocação forçada? Com não reagir perante os conflitos, já em ato ou potenciais, relacionados com o acesso aos recursos naturais? Trata-se de um conjunto de questões que têm um impacto profundo no exercício dos direitos humanos, como, por exemplo, o direito à vida, à alimentação, à saúde, ao desenvolvimento.

5. Entretanto tenha-se na devida conta que não se pode avaliar a crise ecológica prescindindo das questões relacionadas com ela, nomeadamente o próprio conceito de desenvolvimento e a visão do homem e das suas relações com os seus semelhantes e com a criação. Por isso, é decisão sensata realizar uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento e também refletir sobre o sentido da economia e dos seus objetivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações. Exige-o o estado de saúde ecológica da terra; reclama-o também e sobretudo a crise cultural e moral do homem, cujos sintomas há muito tempo que se manifestam por toda a parte. [8] A humanidade tem necessidade de uma profunda renovação cultural; precisa de redescobrir aqueles valores que constituem o alicerce firme sobre o qual se pode construir um futuro melhor para todos. As situações de crise que está atravessando, de caráter econômico, alimentar, ambiental ou social, no fundo são também crises morais e estão todas interligadas. Elas obrigam a projetar de novo a estrada comum dos homens. Impõem, de maneira particular, um modo de viver marcado pela sobriedade e solidariedade, com novas regras e formas de compromisso, apostando com confiança e coragem nas experiências positivas realizadas e rejeitando decididamente as negativas. É o único modo de fazer com que a crise atual se torne uma ocasião para discernimento e nova projeção.

6. Porventura não é verdade que, na origem daquela que em sentido cósmico chamamos «natureza», há «um desígnio de amor e de verdade»? O mundo «não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso, (…) procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participantes do seu Ser, da sua sabedoria e da sua bondade». [9] Nas suas páginas iniciais, o livro do Gênesis introduz-nos no projeto sapiente do cosmos, fruto do pensamento de Deus, que, no vértice, colocou o homem e a mulher, criados à imagem e semelhança do Criador, para «encher e dominar a terra» como «administradores» em nome do próprio Deus (cf. Gn 1, 28). A harmonia descrita na Sagrada Escritura entre o Criador, a humanidade e a criação foi quebrada pelo pecado de Adão e Eva, do homem e da mulher, que pretenderam ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-se como suas criaturas. Em consequência, ficou deturpada também a tarefa de «dominar» a terra, de a «cultivar e guardar» e gerou-se um conflito entre eles e o resto da criação (cf. Gn 3, 17-19). O ser humano deixou-se dominar pelo egoísmo, perdendo o sentido do mandato de Deus, e, no relacionamento com a criação, comportou-se como explorador pretendendo exercer um domínio absoluto sobre ela. Mas o verdadeiro significado do mandamento primordial de Deus, bem evidenciado no livro do Gênesis, não consistia numa simples concessão de autoridade, mas antes num apelo à responsabilidade. Aliás, a sabedoria dos antigos reconhecia que a natureza está à nossa disposição, mas não como «um monte de lixo espalhado ao acaso», [10] enquanto a Revelação bíblica nos fez compreender que a natureza é dom do Criador, o Qual lhe traçou os ordenamentos intrínsecos a fim de que o homem pudesse deduzir deles as devidas orientações para a «cultivar e guardar» (cf. Gen 2, 15). [11] Tudo o que existe pertence a Deus, que o confiou aos homens, mas não à sua arbitrária disposição. E quando o homem, em vez de desempenhar a sua função de colaborador de Deus, se coloca no lugar de Deus, acaba por provocar a rebelião da natureza, «mais tiranizada que governada por ele». [12] O homem tem, portanto, o dever de exercer um governo responsável da criação, preservando-a e cultivando-a. [13]

7. Infelizmente temos de constatar que um grande número de pessoas, em vários países e regiões da terra, experimenta dificuldades cada vez maiores, porque muitos se descuidam ou se recusam a exercer sobre o ambiente um governo responsável. O Concílio Ecumênico Vaticano II lembrou que «Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos». [14] Por isso, a herança da criação pertence à humanidade inteira. Entretanto o ritmo atual de exploração põe seriamente em perigo a disponibilidade de alguns recursos naturais não só para a geração atual, mas sobretudo para as gerações futuras. [15] Ora não é difícil constatar como a degradação ambiental é muitas vezes o resultado da falta de projetos políticos clarividentes ou da persecução de míopes interesses econômicos, que se transformam, infelizmente, numa séria ameaça para a criação. Para contrastar tal fenômeno, na certeza de que «cada decisão econômica tem consequências de caráter moral», [16] é necessário também que a atividade econômica seja mais respeitadora do ambiente. Quando se lança mão dos recursos naturais, é preciso preocupar-se com a sua preservação prevendo também os seus custos em termos ambientais e sociais, que se devem contabilizar como uma parcela essencial da atividade econômica. Compete à comunidade internacional e aos governos nacionais dar os justos sinais para contrastar de modo eficaz, no uso do ambiente, as modalidades que resultem danosas para o mesmo. Para proteger o ambiente e tutelar os recursos e o clima é preciso, por um lado, agir no respeito de normas bem definidas mesmo do ponto de vista jurídico e econômico e, por outro, ter em conta a solidariedade devida a quantos habitam nas regiões mais pobres da terra e às gerações futuras.

8. Na realidade, é urgente a obtenção de uma leal solidariedade entre as gerações. Os custos resultantes do uso dos recursos ambientais comuns não podem ficar a cargo das gerações futuras. «Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um fato e um benefício, mas também um dever. Trata-se de uma responsabilidade que as gerações presentes têm em relação às futuras, uma responsabilidade que pertence também a cada um dos Estados e à comunidade internacional». [17] O uso dos recursos naturais deverá verificar-se em condições tais que as vantagens imediatas não comportem consequências negativas para os seres vivos, humanos e não humanos, presentes e vindouros; que a tutela da propriedade privada não dificulte o destino universal dos bens; [18] que a intervenção do homem não comprometa a fecundidade da terra para benefício do dia de hoje e do amanhã. Para além de uma leal solidariedade entre as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da mesma geração, especialmente nas relações entre os países em vias de desenvolvimento e os países altamente industrializados: «A comunidade internacional tem o imperioso dever de encontrar as vias institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, com a participação também dos países pobres, de modo a planificar em conjunto o futuro». [19] A crise ecológica manifesta a urgência de uma solidariedade que se projete no espaço e no tempo. Com efeito, é importante reconhecer, entre as causas da crise ecológica atual, a responsabilidade histórica dos países industrializados. Contudo os países menos desenvolvidos e, de modo particular, os países emergentes não estão exonerados da sua própria responsabilidade para com a criação, porque o dever de adotar gradualmente medidas e políticas ambientais eficazes pertence a todos. Isto poder-se-ia realizar mais facilmente se houvesse cálculos menos interesseiros na assistência, na transferência dos conhecimentos e tecnologias menos poluidoras.

9. Um dos nós principais a enfrentar pela comunidade internacional é, sem dúvida, o dos recursos energéticos, delineando estratégias compartilhadas e sustentáveis para satisfazer as necessidades de energia da geração atual e das gerações futuras. Para isso, é preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas estejam dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia e melhorando as condições da sua utilização. Ao mesmo tempo é preciso promover a pesquisa e a aplicação de energias de menor impacto ambiental e a «redistribuição mundial dos recursos energéticos, de modo que os próprios países desprovidos possam ter acesso aos mesmos». [20] Deste modo, a crise ecológica oferece uma oportunidade histórica para elaborar uma resposta coletiva tendente a converter o modelo de desenvolvimento global segundo uma direção mais respeitadora da criação e de um desenvolvimento humano integral, inspirado nos valores próprios da caridade na verdade. Faço votos, portanto, de que se adote um modelo de desenvolvimento fundado na centralidade do ser humano, na promoção e partilha do bem comum, na responsabilidade, na consciência da necessidade de mudar os estilos de vida e na prudência, virtude que indica as ações que se devem realizar hoje na previsão do que poderá suceder amanhã. [21]

10. A fim de guiar a humanidade para uma gestão globalmente sustentável do ambiente e dos recursos da terra, o homem é chamado a concentrar a sua inteligência no campo da pesquisa científica e tecnológica e na aplicação das descobertas que daí derivam. A «nova solidariedade», que João Paulo II propôs na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,[22] e a «solidariedade global», a que eu mesmo fiz apelo na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2009, [23] apresentam-se como atitudes essenciais para orientar o compromisso de tutela da criação através de um sistema de gestão dos recursos da terra melhor coordenado a nível internacional, sobretudo no momento em que se vê aparecer, de forma cada vez mais evidente, a forte relação que existe entre a luta contra a degradação ambiental e a promoção do desenvolvimento humano integral. Trata-se de uma dinâmica imprescindível, já que «o desenvolvimento integral do homem não pode realizar-se sem o desenvolvimento solidário da humanidade». [24] Muitas são hoje as oportunidades científicas e os potenciais percursos inovadores, mediante os quais é possível fornecer soluções satisfatórias e respeitadoras da relação entre o homem e o ambiente. Por exemplo, é preciso encorajar as pesquisas que visam identificar as modalidades mais eficazes para explorar a grande potencialidade da energia solar. A mesma atenção se deve prestar à questão, hoje mundial, da água e ao sistema hidrogeológico global, cujo ciclo se reveste de primária importância para a vida na terra, mas está fortemente ameaçado na sua estabilidade pelas alterações climáticas. De igual modo deve-se procurar apropriadas estratégias de desenvolvimento rural centradas nos pequenos cultivadores e nas suas famílias, sendo necessário também elaborar políticas idôneas para a gestão das florestas, o tratamento do lixo, a valorização das sinergias existentes no contraste às alterações climáticas e na luta contra a pobreza. São precisas políticas nacionais ambiciosas, completadas pelo necessário empenho internacional que há-de trazer importantes benefícios sobretudo a médio e a longo prazo. Enfim, é necessário sair da lógica de mero consumo para promover formas de produção agrícola e industrial que respeitem a ordem da criação e satisfaçam as necessidades primárias de todos. A questão ecológica não deve ser enfrentada apenas por causa das pavorosas perspectivas que a degradação ambiental esboça no horizonte; o motivo principal há-de ser a busca duma autêntica solidariedade de dimensão mundial, inspirada pelos valores da caridade, da justiça e do bem comum. Por outro lado, como já tive ocasião de recordar, a técnica «nunca é simplesmente técnica; mas manifesta o homem e as suas aspirações ao desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais. Assim, a técnica insere-se no mandato de “cultivar e guardar a terra” (cf. Gen 2, 15) que Deus confiou ao homem, e há-de ser orientada para reforçar aquela aliança entre ser humano e ambiente em que se deve refletir o amor criador de Deus». [25]

11. É cada vez mais claro que o tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós, os estilos de vida e os modelos de consumo e de produção hoje dominantes, muitas vezes insustentáveis do ponto de vista social, ambiental e até econômico. Torna-se indispensável uma real mudança de mentalidade que induza a todos a adotarem novos estilos de vida, «nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento». [26] Deve-se educar cada vez mais para se construir a paz a partir de opções clarividentes a nível pessoal, familiar, comunitário e político. Todos somos responsáveis pela proteção e cuidado da criação. Tal responsabilidade não conhece fronteiras. Segundo o princípio de subsidiariedade, é importante que cada um, no nível que lhe corresponde, se comprometa a trabalhar para que deixem de prevalecer os interesses particulares. Um papel de sensibilização e formação compete de modo particular aos vários sujeitos da sociedade civil e às organizações não-governamentais, empenhados com determinação e generosidade na difusão de uma responsabilidade ecológica, que deveria aparecer cada vez mais ancorada ao respeito pela «ecologia humana». Além disso, é preciso lembrar a responsabilidade dos meios de comunicação social neste âmbito, propondo modelos positivos que sirvam de inspiração. É que ocupar-se do ambiente requer uma visão larga e global do mundo; um esforço comum e responsável a fim de passar de uma lógica centrada sobre o interesse egoísta da nação para uma visão que sempre abrace as necessidades de todos os povos. Não podemos permanecer indiferentes àquilo que sucede ao nosso redor, porque a deterioração de uma parte qualquer do mundo recairia sobre todos. As relações entre pessoas, grupos sociais e Estados, bem como as relações entre homem e ambiente são chamadas a assumir o estilo do respeito e da «caridade na verdade». Neste contexto alargado, é altamente desejável que encontrem eficaz correspondência os esforços da comunidade internacional que visam obter um progressivo desarmamento e um mundo sem armas nucleares, cuja mera presença ameaça a vida da terra e o processo de desenvolvimento integral da humanidade atual e futura.

12. A Igreja tem a sua parte de responsabilidade pela criação e sente que a deve exercer também em âmbito público, para defender a terra, a água e o ar, dádivas feitas por Deus Criador a todos, e antes de tudo para proteger o homem contra o perigo da destruição de si mesmo. Com efeito, a degradação da natureza está intimamente ligada à cultura que molda a convivência humana, pelo que, «quando a “ecologia humana” é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental». [27] Não se pode pedir aos jovens que respeitem o ambiente, se não são ajudados, em família e na sociedade, a respeitar-se a si mesmos: o livro da natureza é único, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a da ética pessoal, familiar e social. [28] Os deveres para com o ambiente derivam dos deveres para com a pessoa considerada em si mesma e no seu relacionamento com os outros. Por isso, de bom grado encorajo a educação para uma responsabilidade ecológica, que, como indiquei na encíclica Caritas in veritate, salvaguarde uma autêntica «ecologia humana» e consequentemente afirme, com renovada convicção, a inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases e condições, a dignidade da pessoa e a missão insubstituível da família, onde se educa para o amor ao próximo e o respeito da natureza. [29] É preciso preservar o patrimônio humano da sociedade. Este patrimônio de valores tem a sua origem e está inscrito na lei moral natural, que é fundamento do respeito da pessoa humana e da criação.

13. Por fim não se deve esquecer o fato, altamente significativo, de que muitos encontram tranquilidade e paz, sentem-se renovados e revigorados quando entram em contacto direto com a beleza e a harmonia da natureza. Existe aqui uma espécie de reciprocidade: quando cuidamos da criação, constatamos que Deus, através da criação, cuida de nós. Por outro lado, uma visão correta da relação do homem com o ambiente impede de absolutizar a natureza ou de a considerar mais importante do que a pessoa. Se o magistério da Igreja exprime perplexidades acerca de uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo e no biocentrismo, fá-lo porque tal concepção elimina a diferença ontológica e axiológica entre a pessoa humana e os outros seres vivos. Deste modo, chega-se realmente a eliminar a identidade e a função superior do homem, favorecendo uma visão igualitarista da «dignidade» de todos os seres vivos. Assim se dá entrada a um novo panteísmo com acentos neopagãos que fazem derivar apenas da natureza, entendida em sentido puramente naturalista, a salvação para o homem. Ao contrário, a Igreja convida a colocar a questão de modo equilibrado, no respeito da «gramática» que o Criador inscreveu na sua obra, confiando ao homem o papel de guardião e administrador responsável da criação, papel de que certamente não deve abusar mas também não pode abdicar. Com efeito, a posição contrária, que considera a técnica e o poder humano como absolutos, acaba por ser um grave atentado não só à natureza, mas também à própria dignidade humana. [30]

14. Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação. A busca da paz por parte de todos os homens de boa vontade será, sem dúvida alguma, facilitada pelo reconhecimento comum da relação indivisível que existe entre Deus, os seres humanos e a criação inteira. Os cristãos, iluminados pela Revelação divina e seguindo a Tradição da Igreja, prestam a sua própria contribuição. Consideram o cosmos e as suas maravilhas à luz da obra criadora do Pai e redentora de Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, reconciliou com Deus «todas as criaturas, na terra e nos céus» (Cl 1, 20). Cristo crucificado e ressuscitado concedeu à humanidade o dom do seu Espírito santificador, que guia o caminho da história à espera daquele dia em que, com o regresso glorioso do Senhor, serão inaugurados «novos céus e uma nova terra» (2 Pd 3, 13), onde habitarão a justiça e a paz para sempre. Assim, proteger o ambiente natural para construir um mundo de paz é dever de toda a pessoa. Trata-se de um desafio urgente que se há-de enfrentar com renovado e concorde empenho; é uma oportunidade providencial para entregar às novas gerações a perspectiva de um futuro melhor para todos. Disto mesmo estejam cientes os responsáveis das nações e quantos, nos diversos níveis, têm a peito a sorte da humanidade: a salvaguarda da criação e a realização da paz são realidades intimamente ligadas entre si. Por isso, convido todos os crentes a elevarem a Deus, Criador omnipotente e Pai misericordioso, a sua oração fervorosa, para que no coração de cada homem e de cada mulher ressoe, seja acolhido e vivido o premente apelo: Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação.

 
Vaticano, 8 de Dezembro de 2009.
BENEDICTUS PP. XVI

 
[1] Catecismo da Igreja Católica, 198.
[2] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 2008), 7.
[3] Cf. n. 48.
[4] Dante Alighieri, Divina Comédia: O Paraíso, XXXIII, 145.
[5] Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 1990), 1.
[6] Carta ap. Octogesima adveniens, 21.
[7] Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 1990), 10.
[8] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 32.
[9] Catecismo da Igreja Católica, 295.
[10] Heráclito de Éfeso (± 535-475 a.C.), Fragmento 22B124, in H. Diels-W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (Weidmann, Berlim 19526).
[11] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 48.
[12] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 37.
[13] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 50.
[14] Const. past. Gaudium et spes, 69.
[15] Cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 34.
[16] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 37.
[17] Pont. Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 467;cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 17.
[18] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 30-31.43.
[19] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 49.
[20] Ibid., 49.
[21] Cf. São Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 49, 5.
[22] Cf. n. 9.
[23] Cf. n. 8.
[24] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 43.
[25] Carta enc. Caritas in veritate, 69.
[26] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 36.
[27] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 51.
[28] Cf. ibid., 15.51.
[29] Cf. ibid., 28.51.61; João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 38.39.
[30] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 70.



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